Cientistas brasileiros driblam atrasos de verba do governo para pesquisar zika
A crise política que virou o Brasil do avesso também atrapalhou os acertos entre laboratórios e governo. Crédito: Wikimedia Commons

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Cientistas brasileiros driblam atrasos de verba do governo para pesquisar zika

A crise política que virou o Brasil do avesso também atrapalhou os acertos entre laboratórios e governo.

No último ano, a comunidade científica brasileira topou com um de seus maiores desafios: desvendar o zika, um vírus pouco conhecido que despontou no país provocando morte e má-formação em fetos. Em poucos meses, as respostas dos pesquisadores começaram a estampar os jornais. Eles conseguiram traçar a relação do vírus com os casos de microcefalia, apontar seus vetores de transmissão e estudar sua atuação no cérebro.

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Tudo isso foi realizado apesar do atraso no repasse de dinheiro prometido pelo governo federal. "A resposta brasileira foi muito rápida, mostrando que o país possui corpo intelectual compatível com o de qualquer outro no mundo", diz Rodrigo Stabeli, vice-presidente de Pesquisa e Laboratórios de Referência da Fiocruz. "Mas o financiamento foi muito aquém do que necessitávamos. Apesar de o marco legal ter sido instituído no começo deste ano, o governo federal ainda não demonstrou ter uma política clara de financiamento."

Ele se refere ao anúncio feito pelo governo no início de 2016 que prometia abrir linhas de financiamento para as pesquisas voltadas ao vírus zika. Desde então, alguns editais foram abertos pelo CNPQ, Capes e Finep, mas o dinheiro ainda demora a chegar na mão dos pesquisadores. "A Capes, por exemplo, soltou um edital fazendo uma encomenda tecnológica para alguns pesquisadores. Ele foi aprovado, os pesquisadores foram contatados, mas ainda não foi liberado o dinheiro", diz.

O cientista aponta dois motivos principais para o atraso no repasse das verbas: "O primeiro é que existe um trâmite arcaico no lançamento de edital, fazendo com que não haja a rápida liberação dos recursos. Além disso, estamos passando por um período de contingenciamento e restrição orçamentaria."

Os pesquisadores afirmam que a crise política que virou o Brasil do avesso também atrapalhou nos acertos entre laboratórios e governo. "Muitas negociações eram feitas diretamente com os gabinetes dos ministros, que foram todos remanejados", diz o microbiologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. "Como muitos desses contatos tiveram que ser reconstruídos, houve atraso no pagamento."

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Os principais afetados pela demora no repasse das verbas foram os grupos de pesquisa que dependiam primeiramente do financiamento federal. "As universidades federais foram bastante afetadas. Na UFRJ, por exemplo, eles passaram um ou dois meses em uma situação aflitiva", diz Paolo.

Segundo o pesquisador, o dinheiro dos editais está começando a ser liberado, e não deve demorar a chegar nesses pesquisadores: "Agora, estamos começando a ver a irrigação do financiamento federal. Em um mês ou dois teremos uma situação financeira interessante para as pesquisas sobre o zika. Isso é bom porque coincidirá com o momento do surto."

Sobrevivendo à crise

Nos últimos meses, os pesquisadores brasileiros afirmam que conseguiram driblar a falta de verba federal e produzir ciência de ponta. "A produção científica sobre o Zika no Brasil foi inédita. Desde o ano passado foram cerca 150 trabalhos sobre o tema", diz Paolo Zanotto. "Só nosso grupo da USP publicou cinco papers nas revistas mais prestigiadas do mundo. Publicamos em dois meses o que não conseguimos em dez anos."

Tudo isso foi possível porque os cientistas usaram outras fontes de recursos para fazer os estudos. Em São Paulo, a Fapesp, instituição de financiamento do governo estadual, acabou bancando boa parte das pesquisas. "Eles usaram um método que fornece aditivos para projetos já em andamento e que pudessem ser redirecionados para responder à emergência do Zika. Esse método se mostrou tão eficaz que passou a ser usado pelo governo federal", diz Paolo Zanotto, que teve financiamento da Fapesp.

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Em outros locais, os pesquisadores precisaram usar recursos de suas próprias instituições, que estavam destinados para outros setores. Foi o caso da Fiocruz, um dos principais centros de estudo sobre a epidemia no país, onde os cientistas precisaram usar verbas que estavam alocadas para pesquisas sobre outras doenças, como as arboviroses.

"Nós possuímos uma rede 50 laboratórios que respondem a várias doenças. Como temos um compromisso com a saúde pública, canalizamos esse orçamento para responder ao zika", diz Rodrigo Stabeli, da Fiocruz. "Mas esse orçamento faz falta na instituição. O remanejamento dos recursos deixou outras doenças descobertas."

"O governo atual fez o anúncio de corte em 20% das bolsas de Iniciação Científica, no Prouni e no Fies. Também anunciou a desvinculação das verbas do SUS. O Ministério da Ciência e Tecnologia trabalha com um orçamento compatível com o 2011. É o pior cenário para o financiamento de pesquisas dos últimos tempos."

Stabeli não vê com otimismo o futuro do financiamento para essas e outras pesquisas no Brasil no novo governo Temer. "O governo atual fez o anúncio de corte em 20% das bolsas de Iniciação Científica, no Prouni e no Fies. Também anunciou a desvinculação das verbas do SUS. O Ministério da Ciência e Tecnologia trabalha com um orçamento compatível com o 2011. É o pior cenário para o financiamento de pesquisas dos últimos tempos."

Essa posição não é compartilhada por todos os pesquisadores. Pelo menos no caso do zika, Paolo Zanotto diz que o novo governo tem cumprido com os compromissos firmados pelo anterior. "Uma emergência desse tamanho leva qualquer governo a agir. O dinheiro dos editais de financiamento está começando a chegar aos pesquisadores. O atraso aconteceu por causa de dificuldades burocráticas."

Independentemente disso, o enfrentamento ao zika já trouxe avanços que serão colhidos nos próximos anos pela ciência brasileira. "Os chineses falam que toda crise traz riscos e oportunidades", diz Zanotto. "A crise do zika teve um custo humano terrível. Mas a comunidade científica conseguiu aproveitar a oportunidade para melhorar sua atuação. Vários grupos de pesquisa tiveram que correr contra o tempo e criaram mecanismos de ação conjunta, mais eficiente e multidisciplinar. Isso já é um aprendizado que pode ficar para os próximos anos."