Como um reality show alavancou o rap na China

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Noisey

Como um reality show alavancou o rap na China

Que mané censura... O hip hop está bombando em Chongqing e Chengdu.

Matéria originalmente publicada no Noisey UK .

Com os braços magrelos gesticulando a milhão, e dreads estilo tarântula dependurados sobre óculos escuros grandalhões, extravagantes, Cheng Jianqiao chega chegando em uma casa de chá na cidade de Chongqing, sudeste da China. Marquei uma conversa com ele logo após sua aparição no reality The Rap of China, muito popular no país, uma espécie de The Voice. Com o nome artístico Bridge, o cara destruiu e chegou às finais da competição. Logo de cara, quando apresentou o rap “Boss”, sua marca registrada, os jurados — com copos de bebidas vitamínicas à mão, merchan nada sutil — não pestanejaram em aprová-lo. Bridge segurou o microfone como uma metranca, e fez caras e bocas enquanto simulava tiros.

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"Todo mundo agora sabe quem eu sou!", Bridge comentou enquanto eu servia o chá verde e indagava se ele tinha ficado famoso com o programa. "É como disse o próprio MC HotDog, jurado do programa. A música hip hop vive oculta no underground há muito tempo já. É hora de subir e tomar um fôlego ao ar livre."

Realmente, The Rap of China não foi bem uma catapulta para o hip hop chinês, foi mais como uma turbina. Lançado na iQiyi, plataforma online de vídeos, em junho do ano passado, o reality foi visto mais de 700 milhões de vezes só no primeiro mês. Os puristas do gênero desceram o cacete nele por ter julgadores pop e chupinhar o formato de outros programas, mas em setembro a audiência já chegava à marca de 2,5 bilhões de visualizações (a cargo de comparação, outro dia o programa britânico The X Factor teve sua pior baixa de audiência, com 4,3 million de espectadores em um episódio). Na miúda do underground desde que surgiu, nos anos 90, e sempre na mira dos censores governamentais, o hip hop finalmente estourou na China.

Bridge, membro do grupo de rap GO$H, da cidade de Chongqing, foi um dos oito finalistas da competição. GAI, outro integrante do GO$H, foi um dos grandes vencedores, junto a PG One, de Xian, nordeste da China. Mas o sucesso da dupla de Chongqing não surgiu do nada. Mesmo antes de The Rap of China chegar às telinhas, a cidade já era um novo berço de talento em hip hop, em boa parte porque a música trap é forte por lá — assim como em Sichuan, província vizinha — desde 2015. Mas, então, o que essa região tem de tão especial para os rappers? Será que The Rap of China é a plataforma do futuro para o gênero, ou só um capricho da moda? E como exatamente esses artistas conseguem se dar bem em um sistema com tantas restrições à liberdade de expressão e à mídia?

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No começo dos anos 90, quando Bridge ainda usava fraldas, em vez das camisetas largonas e correntes mil, os DJs começaram a importar os álbuns americanos de hip hop e tocar nas baladas de Xangai. Só dez anos depois, no entanto, é que emergiram grupos de rap no país, sobretudo o quarteto multicultural Yin Ts’ang, de Pequim, cuja formação original incluía um americano e um canadense. No final dos anos 2000, o trio IN3, também de Pequim, conquistou sucesso moderado com suas batidas opacas, meio lesadas, e letras levemente maliciosas sobre detestar professores e corrupção.

“Some sleep in underground passages, some use government money to pay for their banquets” [Tem gente que dorme em passagens subterrâneas, tem gente que paga banquetes com grana do governo], o IN3 cantou em uma de suas músicas mais famosas, “Beijing Evening News”. Está longe de ser uma chamada revolucionária às armas, mas dá uma cutucadinha nas autoridades. A letra — “Some drink, some take drugs and fuck around without a condom” [Tem gente que bebe, tem gente que se droga e trepa adoidado sem camisinha” — também não deve ter agradado muito o Ministério da Cultura da China.

Grupos como o IN3 e veteranos como o Old Panda, de Chengdu, influenciaram toda uma nova geração de rappers, apresentada em The Rap of China — ainda que não tanto quanto os clássicos americanos, que os novatos escutam na internet. Bridge, por exemplo, conta que se iniciou em hip hop vendo jogos de NBA na TV, com rappers como Chingy, que costumam ser associados ao basquete. Ele encontrou outros fãs do estilo no QQ, software chinês de bate-papo online, com quem compartilhava links para músicas de Nas, JAY-Z, 50 Cent, e similares. “Não tivemos professores, então a internet foi nossa professora”, disse ele.

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Muitos desses garotos aficionados por hip hop e basquete se sentiram acolhidos pelo GO$H à medida que passaram a trabalhar em músicas próprias, em estúdios improvisados (isto é, em casa, com laptops). O coletivo surgiu em Chongqing, em 2013, a partir de uma comunidade dispersa de hip hop chamada Keep Real, formada em 2003. Desde o início, o GO$H se destaca por um som de influência deliberadamente americana — procure ouvir “Gang$te”, do rapper GAI (assista ao clipe abaixo), ou “Work Every Day”, sonzeira trap do Bridge com o K Eleven que rendeu ao coletivo sucesso na cena underground. E a galera do GO$H não está sozinha na produção de rap influenciado por trap: também tem o Ty e o quarteto Higher Brothers em Chengdu, capital da província de Sichuan.

A música de Ty é melódica e fluida. Canções como “Real Life” têm um pezinho no R&B, empapado em auto-tune, além do trap batidão. Por outro lado, os rappers de Chongqing, como GAI, tendem a ser mais agressivos, uma particularidade que Bridge atribui à cidade, mais barra-pesada que a vizinha. “O hip hop pode soar agressivo, e o pessoal de Chongqing tem uma mentalidade grosseira mesmo”, disse ele. “Como uma pimenta, prestes a acabar com suas papilas gustativas.” No entanto, apesar dessas diferenças, Chengdu e Chongqing são vistas por muitos, em conjunto, como o epicentro do renascimento do hip hop chinês. Casas como o Little Bar, em Chengdu, e a Nuts Live House, em Chongqing, vivem lotadas. O quarteto Higher Brothers é a revelação de Chengdu – a música “ Made In China” já chegou a 8 milhões de visualizações no YouTube, façanha impressionante, visto que o acesso ao YouTube é bloqueado na China, por controle do governo. A banda vai fazer uma turnê nos Estados Unidos mês que vem, e assinou contrato com a 88rising, empresa de agenciamento e produção.

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Além da presença no YouTube, é de admirar que as pessoas estejam de fato fazendo hip hop na China, em primeiro lugar. O presidente Xi Jinping vem reprimindo as artes no país, e desde que assumiu o poder, em 2012, a censura se intensificou. Letras consideradas vulgares, pornográficas ou antiautoritárias são proibidas com frequência, e os músicos por vezes são forçados a se desculpar em público ou, como já aconteceu com o IN3, acabam enfrentando consequências mais severas.

Em 2015, o Ministério da Cultura da China publicou uma lista com 120 músicas “banidas” do país por conta do conteúdo, sendo 17 delas do IN3. As músicas eram, em grande parte, da década anterior, mas mesmo assim os membros do grupo foram encapuzados e conduzidos pela polícia a uma penitenciária localizada numa extremidade de Pequim, onde permaneceram detidos durante cinco dias, sem acusações formais. A polícia alegou que as letras infringiam a lei, e desde então o trio deixou de se apresentar em público, para se preservar.

Semana passada, PG One, um dos vencedores de The Rap of China, foi forçado a se desculpar por usar a palavra “bitch” [vadia] em “Christmas Eve”, música de 2015. Ele foi denunciado às autoridades depois da vitória no programa. “Fui muito influenciado pela música negra no início, quando descobri a cultura hip hop, e não interpretei muito bem os princípios básicos da cultura hip hop”, declarou. Deselegante é pouco.

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FUCKSKY

Depois de ficar sabendo de casos drásticos como esses, entenderia total se os rappers vivessem com medo de um cassetete bater à porta. Contudo, esse parece não ser o caso — Bridge disse que, para trabalhar com o gênero, é preciso “vê-lo como um jogo, assim como o reality. O país estabelece regras contra mim, mas sempre dou um jeito de burlar. Essa é a parte divertida do jogo.”

Para Bridge, ao que tudo indica, a estratégia é escrever letras sobre ganhar dinheiro e manter no jogo, mil grau — experimente ouvir “Boss”, faixa brilhante, animadona. “Minhas letras passam no crivo porque meu estilo trata da vida cotidiana, são suaves e positivas”, disse ele, deixando escapar marolas de fumaça sobre a mesa. “Nunca pensei em fazer letras antigoverno — amo meu país! Estamos na maior hoje porque o país está promovendo a cultura hip hop. Se não estivesse, não receberíamos essa atenção toda.

Já os Higher Brothers brincam com fogo, ainda que com destreza e bom humor. Na música “WeChat”, sobre o app de mensagens mais popular da China, driblam a censura transformando críticas em odes cômicas ao aplicativo. “There’s no Skype, no Facebook, no Twitter, no Instagram… we use WeChat here!” [Não tem Skype, não tem Facebook, Twitter ou Instagram… usamos o WeChat aqui!], cantam eles, entre sons de alerta de mensagem e a voz rouca de Keith Ape, rapper cult sul-coreano que colaborou com a faixa.

“Quando escrevemos músicas, evitamos certos temas”, contou Masiwei, um dos quatro integrantes do grupo. “Escrevemos sobre o que queremos escrever, sem tocar em assuntos intocáveis.” Numa conversa pelo celular, ele acrescentou ainda que as letras “vulgares” que tanto preocupam o governo são menos problemáticas que as letras antiautoritárias. “Palavrões fazem sentido nas músicas de hip hop em inglês”, disse ele, “mas não funcionam muito bem em músicas chinesas”. Temos sociedades e culturas diferentes — o nosso ambiente é mais conservador.”

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Qualquer letra subversiva pode ser dilapidada antes mesmo dos criadores a botarem no papel, mas o movimento de hip hop de Chongqing e Chengdu, e mesmo da China como um todo, não se deixa abater. Os caras do Higher Brothers estão de olho no cenário internacional, o GO$H está numa turnê fervorosa na China, e poucos meses atrás o New York Times chegou a declarar que o hip hop chinês ”estava dominando a cena mainstream do país” .

Pouco antes de deixar Chongqing, passei na casa de chá Jiaotong e notei como o hip hop se tornou onipresente mesmo na China: era um grande salão onde o Go$H já tinha gravado vários clipes. E por acaso, o Allight, outro grupo de rap já estabelecido, estava filmando lá quando entrei, vomitando letras para as câmeras enquanto o pessoal local da terceira idade bebericava chá e jogava mahjong na mesa ao lado.

“Começamos a ouvir hip hop em 2012 — e imaginamos que fazer rap seria uma boa para descolar garotas”, disse Jiang Shihao, 23 anos, entre uma tomada e outra, com uma bandana envolta na cabeça. Jiang atende por FUCKSY na cena rap, e é muito mais polido do que o nome sugere. “A paixão pelo hip hop vingou, e virou minha razão de viver”, acrescentou ele, sorrindo, ostentando uma boombox retrô sobre o ombro. Jiang está longe de ser o único entusiasta na China, mas por onde seguir agora? Yang, fundador da Zhong.tv, já deu a deixa: “Bom, ouvi dizer que os testes para a segunda temporada de The Rap of China começam daqui a um ou dois meses…”

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Informações complementares por Paula Jin.