​A delicada rotina de quem ganha a vida extraindo veneno de aranhas e escorpiões
Fomos ao recém-inaugurado biotério do Butantan, em São Paulo, para entender o trabalho das responsáveis por criar remédios contra os venenos dos peçonhentos que mais picam no Brasil. Na imagem, Denise. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

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​A delicada rotina de quem ganha a vida extraindo veneno de aranhas e escorpiões

Fomos ao recém-inaugurado biotério do Butantan, em São Paulo, entender o trabalho das responsáveis por criar remédios contra os venenos dos bichos peçonhentos que mais picam no Brasil.

Denise Candido está sentada em uma cadeira de escritório em frente a uma capela de sucção. A sala branca de laboratório tem o som de um aspirador de pó moderno. Veste jaleco, máscara e touca brancos. A sua esquerda, três vasilhas com uma centena de escorpiões amarelos.

Sem luvas de proteção e com uma pinça de uns 15 centímetros na mão direita, Denise segura o escorpião no ponto exato da última articulação antes do ferrão. Com a outra mão, prende o corpo. O animal fica de ponta-cabeça, a bióloga larga uma pinça e desliza a mão sobre o bicho, segurando-o com os dedos na secção anterior ao telso, o ferrão. Meio centímetro separa o dedo de Denise do amargo veneno do artrópode.

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A seguir, ela encosta o ferrão no que parecem dois fios desencapados de uma máquina chamada de ignitor de venenos. O choque contrai as glândulas de veneno e o telso expele uma micro-gota de veneno que a bióloga deposita em um potinho de 2 ml. Um já foi. Faltam 99.

Vasilha com os escorpiões que vão ter o veneno extraído por Denise. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

Denise Candido executa a tarefa há 27 anos, quando entrou no laboratório de artrópodes do Instituto Butantan, em São Paulo. Sua tarefa é extrair uma quantidade suficiente de veneno que será injetado em cavalos e depois se transformará em soro para atender acidentes de escorpionismo – picadas de escorpiões – que vem aumentando por todo Brasil.

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2015 o número de casos reportados de picadas de escorpião chegou a 74,5 mil — um crescimento de 600% ao comparar com 2000. Dessas, 119 pessoas morreram, um número maior que de mortes por cobras (107) e aranhas (30). Nos últimos meses, em cidades do interior de São Paulo, tem sido comum a notícia de que terrenos mal limpos acabam infestados de escorpiões. Tatuí, a 150 quilômetros da capital, é a mais recente a enfrentar a invasão dos animais em suas casas.

Bandeija de grilos, a refeição das aranhas e dos escorpiões. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

Os casos de picadas por aranhas também dispararam: foram 3.275 notificações em 2000 para 26.298 — a maior parte no Sudeste. Cabe lembrar, porém, que o aumento pode ter acontecido, em parte, pelo aumento do registro dos casos.

"Tenho respeito por eles. Nunca tive nenhum acidente", diz Denise. Como na ponta das patas o aracnídeo tem duas unhas que se prendem no equipamento de segurança e atrapalham o manuseio do bicho, usar luvas acaba sendo mais inseguro.

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Rosana em um dos biotérios do novo centro de artrópodes do Instituto Butantan. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

O acesso ao laboratório, inaugurado em janeiro, é proibido a visitantes e alunos de escolas. Imprensa pode. Para entrar no espaço, é preciso colocar todo o aparato de segurança. A única vez em que ser jornalista teve alguma vantagem foi para entrar em um local cheio de veneno e animais mortíferos. Faz sentido.

"Fui devolvê-la para gaiola, ela bateu no fundo, voltou e picou meu dedo. Cinco minutos depois, a dor chegava até o ombro. Parece que caiu água fervendo na mão."

Quem guiou e detalhou o funcionamento do laboratório que é a visão do inferno para muitos foi a bióloga Rosana Martins. Além de didática e sempre pronta para transformar essa reportagem em uma boa leitura para os atrasados do Enem, ela é corajosa pra caralho: trabalha na extração de veneno da aranha-marrom e da aranha mais agressiva de todas — a armadeira.

Ela demonstrou para nós como se tira o veneno das duas espécies. A marrom é tranquilo, sem riscos pois o bicho não consegue perfurar o látex da luva. Com a armadeira, o peso do negócio é outro. É um animal agressivo, cujas presas são capazes de atravessar a luva. Dentro do pote, ela sente o risco e se arma para o ataque. Levanta as patas dianteiras e deixa o cefalotórax (olha o Enem!) perpendicular ao chão. Expõe suas quelíceras, um tipo de pinça na região da boca, onde ficam as glândulas de veneno.

Escorpião-amarelo com ninhada de filhotes no dorso. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

Rosana já foi picada duas vezes. Uma por uma aranha bem jovem, sem nenhuma consequência. Outra, há 10 anos, por uma armadeira macho, depois de ter seu veneno extraído. Aí foi feio. "Foi descuido meu, estava me sentindo segura demais, o que é ruim. Fui devolvê-la para gaiola, ela bateu no fundo, voltou e picou meu dedo. Cinco minutos depois, a dor já chegava até o ombro. Parece como quando cai água fervendo na mão. É uma dor que lateja, que parece que está te arrebentando", contou. E riu.

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Entende-se por que a aranha queria se vingar. Processo de extração põe de joelhos um animal que é majestoso. Rosana a imobiliza com uma pinça longa, vira o animal e com uma das mãos pega todas as patas e as traz para detrás do tronco. Mal comparando, lembra os cabelos daquelas meninas da escola que as mães exageravam na força com que prendiam a chuquinha. A aranha fica à mercê da pesquisadora.

Aranha-marrom adulta já em idade para extração do veneno. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

"Imobilizei e agora estou segura". Por contraste, a armadeira, sempre combativa, está tão subjugada que resta a ela defecar sobre si mesma como último recurso de defesa. Não adianta. A seguir levará o choque e o veneno será extraído com uma micropipeta por Denise. Ela é devolvida ao pote sem maiores complicações.

Saímos da sala de extração e Rosana segue pelos corredores para nos explicar o funcionamento do laboratório. Se o Ministério da Saúde precisa de milhares de doses de soro, então é preciso de milhares de aranhas e escorpiões que, por sua vez, precisam ser alimentados por milhares de insetos. E assim entramos no biotério — salas onde ficam predadores (escorpiões e aranhas) e seu alimento (grilos e baratas).

Rosana e Denise precisaram extrair o veneno da aranha-marrom em dupla. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

A primeira sala é a das presas. Milhares de grilos dentro de caixas de plástico dispostas em armários nas laterais. Ao entrar, ouve-se um cri-cri constante, suave, quase melancólico. A bióloga diz que há especialistas que conseguem definir se são sons de defesa ou de acasalamento. Leigos como eu sentem apenas que é o canto da morte.

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Na sala seguinte, ficam os escorpiões. Rosana percorre os corredores com uma pinça metálica de uns 30 centímetros com a qual vira, mexe e desvira os bichos com graça e técnica. Tem unhas pintadas de rosa-claro. Mostra os animais em todos os seus estágios — de bebês com um ou dois dias a adultos com mais de um ano. E explica mais um conceito: essa espécie nasce por partenogênese, a saber, as fêmeas não precisam de macho para reproduzir — as células reprodutivas simplesmente se dividem e cada uma dá origem a um embrião.

Caranguejeira, puta aranha gigante que dá um medo do caralho. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

"O escorpião-amarelo é considerado hoje um problema de saúde pública, porque eles se adaptam facilmente a diferentes ambientes. Cada fêmea tem três gestações por ano onde geram, em cada uma, 18 filhotes", diz.

Extração de veneno da armadeira. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

Ela ainda explicou outros conceitos, mas eu me distraí por um minuto com um pensamento pouco profissional invadiu que minha cabeça: e se naquele exato momento acontecesse um terremoto em São Paulo e todos aqueles seis mil escorpiões amarelos caíssem sobre nós como um filme B de terror? Escanteei a possibilidade irracional trazida por um medinho e continuamos o trajeto.

Local onde são guardados os venenos depois da extração. Crédito: Felipe Larozza/ VICE

Nas salas seguintes, passamos por mais aranhas marrons e armadeiras. Vimos também caranguejeiras de 22 centímetros ou outras espécies de escorpiões menos venenosos, mas mais agressivos. Muitas pessoas ao encontrarem esse tipo de bicho, levam até o Butantan, vinculado à Secretaria do Estado de São Paulo, para identificação. Nem entramos no último espaço, paramos na porta. Era outra sala de presas, mas só com baratas gigantescas. Não faziam nenhum som. Estavam ali, imóveis dentro de caixas brancas, circulando em embalagens de ovo e comendo ração. Transmitiam a paz de que não tem nem ideia de que a morte está próxima.

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