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Tudo na vida é política, inclusive o esporte

Não se deixe enganar por vozes robóticas: lutas raciais, de gênero e de classe sempre foram e sempre serão parte importante de qualquer competição esportiva.
Tommie Smith e John Carlos, donos das medalhas de ouro e bronze nos 200 m rasos, nas Olímpiadas de 1968. Crédito: Wikimedia Commons

Cidade do México, 1968: Tommie Smith e John Carlos, donos das medalhas de ouro e bronze nos 200 metros rasos, cada um com uma luva preta até o cotovelo, descalços, sobem no pódio, recebem as medalhas e, na hora do hino americano, fazem o gesto dos Panteras Negras: punho levantado e cabeça baixa. Ao lado deles, o australiano Peter Norman, vice-campeão da prova, levava no peito o mesmo broche vestido pelos norte-americanos, do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos, um movimento criado por atletas em nome da igualdade de direitos raciais.

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A manifestação “deu ruim” na visão limitada de certos apresentadores de reality show e colunistas de revistas de bacana. De fato, Smith e Carlos foram expulsos imediatamente da Vila Olímpica e praticamente proibidos de praticar o esporte de forma profissional. Norman, desde sempre ativista em seu país natal, foi relegado ao esquecimento dos cartolas e nunca mais voltou a uma Olimpíada – nem mesmo nos Jogos de Sydney em 2000, quando já estava aposentado, foi chamado a colaborar na organização, ao contrário de outros ex-atletas. Só foi “perdoado” na Austrália em 2012, com a leitura de uma moção no parlamento local. Tarde demais: Norman morrera seis anos antes, em 2006, aos 54, vítima de uma parada cardíaca.

Mas será que isso é mesmo “dar ruim”? Cinquenta anos depois, Smith, Norman e Carlos são lembrados até hoje, vistos como ícones, como pessoas emblemáticas que fizeram diferença na história. Sem o gesto, ninguém se lembraria de nenhuma cerimônia de pódio nos Jogos do México. Os três seriam atletas como milhares de outros na história olímpica: vencedores e nada mais. Acho que nenhum dos três se arrepende do que fez.

Como certamente não está arrependido o quarterback Colin Kaepernick, pioneiro das manifestações realizadas durante toda a última temporada da NFL, a bilionária e conservadora liga de futebol americano. As ajoelhadas de Kaep, seguidas por centenas de jogadores de todas as equipes, podem ter deixado “Trump pistola” (como escreve o jornalista que fez seu nome como repórter esportivo, mas acha que esporte é só entretenimento), mas também fizeram muita gente pensar sobre a realidade vivida pelos negros norte-americanos. Realidade vivida na pele, inclusive, por outro jogador: Michael Bennett, do Seattle Seahawks, que levou uma geral de policiais em Las Vegas, semanas antes do início da temporada da NFL, depois de sair do hotel onde havia assistido a uma luta de boxe. Houve tiros na região, e o crime de Bennett foi estar ali por perto: “Nada mais do que simplesmente ser um homem negro no lugar errado e na hora errada”, declarou.

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A política está em tudo

Em vídeos mais viralizados que gif de gatinho, o filósofo Mario Sergio Cortella explica que a palavra “idiota” surgiu na Grécia Antiga e tem origem nas pessoas que não tinham o menor interesse coletivo, apenas na própria vida; já “política” se origina daquele que “é capaz de ir além de si mesmo e pensa no bem coletivo”.

Oras, tudo na vida é política. Costumo dizer aos meus alunos que a roupa que eles vestem e o tênis sujo que usam é uma opção política. E obviamente o esporte está incluído nesse “tudo” e não é de hoje. Os próprios gregos sediaram a primeira Olimpíada da era moderna, em 1896, sem a presença de mulheres – o Barão Pierre de Coubertin, líder do movimento olímpico, aquele do “O Importante não é vencer, mas competir”, era contra esse negócio de direitos iguais para as mulheres e via o esporte como algo somente masculino.

Em 1934, a Itália ganhou a Copa do Mundo em casa, ao olhos do Duce Mussolini e aos pedidos de “Vencer ou morrer”. Quatro anos depois, na França, entrou em campo nas quartas de final contra os donos da casa num uniforme inteiramente preto, como as camisas dos fascistas. Os italianos venceram por 3 a 1 e partiram para a conquista do bicampeonato.

Entre as duas Copas vencidas pela Itália, a Alemanha recebeu a Olimpíada de Berlim, vista por Hitler como uma forma de consagrar a superioridade ariana. Neste caso, deu ruim para o Fuhrer, que viu de camarote as quatro medalhas de ouro conquistadas pelo negro Jesse Owens. A história de que Hitler deixou o estádio sem cumprimentar o vencedor tem um que de lenda, admitida inclusive pelo próprio corredor, que contaria depois ter se magoado mesmo com o então presidente americano, Franklin Roosevelt. “Hitler me acenou de longe e me saudou. Roosevelt não me mandou nem um telegrama”. Depois de se aposentar, Owens se juntou a movimentos de direitos civis e ajudou a fundar a primeira liga de beisebol para negros nos Estados Unidos.

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Na mesma Alemanha de Hitler, décadas depois o St. Pauli, clube hoje na segunda divisão local, se consolidaria como defensor de pautas progressistas, como os direitos dos gays, dos negros, das mulheres e dos refugiados.

No Brasil, os campos e quadras já foram palco de várias manifestações políticas, a despeito dos dirigentes que tentam dar um ar cada vez mais asséptico ao espetáculo. Em novembro de 1982, o Corinthians entrou cinco vezes em campo com a inscrição “Dia 15 Vote”, em referência às eleições estaduais e municipais realizadas naquele ano, as últimas sob a ditadura militar. O clube ainda foi o palco da chamada Democracia Corinthiana, movimento que tentava dar mais consciência de classe aos jogadores e procurava, entre outras coisas, acabar com as concentrações.

É verdade que o movimento foi mais simbólico do que causou efeitos práticos de longo prazo – Sócrates, um de seus líderes, foi embora para a Itália depois que a emenda das Eleições Diretas foi derrotada, em 1984, e o esquema de sempre voltou.

Não deixa de ser irônico, porém, que hoje Casagrande seja funcionário da Globo e colega de Leifert – e que a empresa, por meio de seus canais a cabo Sportv e Premiere, tenha patrocinado o bandeirão que a torcida do Timão exibiu no último sábado, na vitória sobre o Palmeiras. Mas a vida também é feita de símbolos, e as lembranças mais marcantes deixadas por Sócrates sem dúvida são o toque de calcanhar e a luta pela democracia.

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A preocupação de Leifert com o uso eleitoral da Copa também não se mostra real. Se em 1970 Medici posou com a taça e em 1994 o Brasil elegeu Fernando Henrique Cardoso na estreia do Real e do tetra, em 2002 o penta não evitou que o indicado por FHC, José Serra, fosse batido nas urnas por Lula – assim como os fiascos de 2006, 2010 e 2014 não impediram as vitórias governistas de Lula e Dilma.

Hoje em dia, o futebol brasileiro reflete a visão da sociedade. Boleiros têm manifestado apoio em entrevistas ao deputado Jair Bolsonaro, casos do corintiano Jadson e do palmeirense Felipe Melo, enquanto movimentos feministas também deixam seu recado: torcedoras do Atlético-MG se queixaram contra modelos de biquíni na apresentação de um uniforme do clube e se posicionaram contra a permanência de Robinho, condenado por estupro na Itália. Quase todos os clubes têm hoje setores da torcida alinhados ao movimento LGBT para combater a homofobia e a violência de gênero nos estádios.

O texto não é a primeira patada de Leifert na política. Ele já havia feito essa defesa ainda nos tempos de jornalista esportivo em palestras em universidades, e na semana passada, em sua atual função, apresentador do Big Brother Brasil, descascou a eliminada Nayara, negra e feminista, dizendo que “representatividade não leva a nada”. Nenhuma novidade. Branco, hétero, rico, apresentador da Globo, Leifert obviamente é da turma que prefere ver o povão alienado, sem pensar em nada, achando que “política é coisa de ladrão”, enquanto é roubado e feito de trouxa por seus patrões e quem eles representam – aqueles que gostam de política e sabem usá-la para seus privilégios.

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Claro que os donos do futebol se incluem nisso. A Fifa já se posicionou várias vezes contra mensagens políticas. Na Copa da Rússia, em junho, jogador que erguer a camisa será punido com cartão. Estamos surpresos de ver grupos de comunicação nacionais alinhados a essa gente? Não estamos surpresos.

A má notícia, meu caro Leifert, é que as manifestações políticas no esporte não vão acabar só porque você não gosta delas. Kaepernick está processando a NFL com a acusação de estar sendo proibido de trabalhar – e, mesmo que não vença, já ganhou dinheiro o suficiente para se satisfazer com a condição de ícone e ativista, sem achar que o desemprego “deu ruim”.

Crédito: Divulgação/ Grêmio Antifascista

Que o esporte brasileiro tenha mais e mais exemplos como o dele, para mudar não só o esporte, e sim o país. Que os cozinheiros escrevam o que quiserem com o catupiry da pizza, que os torcedores possam erguer faixas contra a Globo e quem quiserem nos estádios sem precisar entrar com elas escondidas na cueca.

E, aliás, me avisem onde compra a garrafa de vinho que diz “Fora Temer” quando é aberta – vou comprar uma dúzia pra distribuir entre os amigos.

Fernando Cesarotti, 39, é jornalista, professor, palmeirense e acredita na política. Siga-o no Twitter: @cesarotti
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