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Identidade

Nome social é “questão de vida e morte” para transexuais

Pessoas trans relatam as dificuldades de retificar o nome de registro no Brasil.

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O nome social é algo imprescindível para quem se identifica como trans. Além de ajudar na criação da identidade de gênero da pessoa, também auxilia a execução de tarefas que parecem corriqueiras para nós, mas podem ser um problema para quem é transexual. Seja abrir uma conta no banco, se candidatar para uma vaga de emprego ou se matricular em um curso, o uso e a aceitação do nome social deveria ser obrigatório em todos os estabelecimentos e instituições para evitar o constrangimento de usarem seu nome de registro.

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Atualmente, os direitos trans ainda caminham em marcha lenta no país. A solução temporária foi a permissão do uso do nome social em repartições públicas, para fazer o ENEM e também em carteirinhas de estudantes e de advogados. As medidas, porém, ainda são tímidas e nada facilitam o complicado processo de retificação do nome de registro para esse setor populacional.

"Dentro de algumas políticas públicas as diretrizes administrativas permitem o nome social, mas na hora que é para valer mesmo ele não tem uma validade legal. Normalmente exigem também uma passabilidade cis, senão te consideram uma farsa", explica Luiza Coppieters, 37, militante transfeminista do PSOL, que se candidatou à vereadora, em 2016, em São Paulo.

Segundo Luiza, mesmo com a permissibilidade do nome social, ainda há o constrangimento de ser questionada por falsidade ideológica na hora de apresentar o RG ou a carteira de motorista com o nome de registro. "Teve um caso de uma moça que foi viajar e foi banida do avião porque o nome social dela não condizia com o nome de registro." Segundo a militante, as normas administrativas que aceitam o uso do nome social são "penduricalhos" e não direitos básicos.

Hoje, a única forma legal no Brasil de uma transexual ou travesti retificar o nome de registro é recorrer à Lei de Registros Públicos de 1973. É um processo que pode demorar de seis meses a dois anos, dependendo do entendimento do juiz e também da do endereço do requerente. Thales Coimbra, advogado militante em direitos LGBT e mestre em Filosofia do Direito na USP, explica que costuma utilizar dois requisitos para justificar a alteração para pessoas trans: apelido público notório (por exemplo, o ex-presidente Luiz Inácio que registrou "Lula" e a própria Xuxa) e também nome constrangedor, já que se o nome que está na certidão de nascimento não condiz com a identidade de gênero da pessoa, isso se torna algo muito constrangedor para ela.

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Para embasar o pedido de mudança de nome, Coimbra junta uma série de documentos que provam a necessidade de retificar o nome de registro. "Peço para as minhas clientes apresentarem documentos que já estão com o nome social, como a carteirinha do SUS, de estudante e da academia para usar como prova. Além disso, precisa ter declaração de três pessoas que atestam ao juiz que ela é conhecida pelo nome social e também costumo juntar depoimentos das mesmas testemunhas sobre os constrangimentos que a requerente passou em filas de baladas, hospitais e etc."

Além do cansaço que é passar por um processo judicial, ainda é muito comum juízes exigirem laudos médicos e psicológicos atestando que a pessoa tem de fato disforia de gênero, dado que a transexualidade ainda é considerada um transtorno psiquiátrico na Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID). "Os juízes interditam a voz desse sujeito de direito e muitas vezes não permitem a retificação de nome até que ela faça um procedimento esterilizante como tirar o útero, no caso de homens trans", explica Coimbra.

Luiza Coppieters. Foto: Márcia Alves/Facebook.

"Eu tenho tudo pronto, mas seguro porque questiono muito esse processo. Sou uma pessoa pública e não quero referendar essa patologização", diz Coppieters. "É um ato político com um ônus, porque toda vez que eu vou viajar e embarcar num voo eu sou questionada. A mulher fala que eu estou errada porque meu nome não está no documento, entre tantos constrangimentos. Quero que as pessoas trans tenham o direito de retificar o nome sem ter que depender de um respaldo médico." Na doutrina legal, é possível exigir uma cirurgia de redesignação de gênero para assim conseguir trocar o nome, mesmo a cirurgia sendo bastante concorrida no SUS.

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Em um caso raro na Justiça brasileira, a designer e publicitária Neon Cunha, 44 anos, conseguiu o direito de retificar o seu nome de registro sem a necessidade de apresentar laudos que comprovassem sua identidade. Na ação que moveu exigindo a modificação do seu nome sem precisar apresentar laudos médicos disse ainda que se esse direito lhe fosse negado prefere ter direito de ter a morte assistida pelo Estado.

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Embora a decisão de retificação do nome de registro de Neon se torne um exemplo importante para casos futuros, a designer lembra que não há motivo para comemorar. "Pouco se fala do que vem depois, que me exige ir ao cartório onde fui registrada quando nasci e pedir a retificação na minha certidão de nascimento. Tenho que ir, por conta própria, para todos os lugares onde fui registrada para modificar os documentos. Tenho cursos e diplomas que não serão mais válidos por conta disso. É como se uma parte da minha vida desaparecesse", conta. "Eu acho o processo injusto e uma violência com a pessoa trans", reclama Maria Eduarda Aguiar, advogada carioca do grupo Pela Vida Rio, que recentemente conseguiu colocar o nome social na sua carteirinha da OAB. "Eles obrigam a gente a fazer uma cirurgia de redesignação, sendo que é impossível conseguir fazer uma pelo sistema de saúde [público]. Não existe uma lei que a gente possa ir atrás, a gente fica dependendo do entendimento mais aberto dos juízes."

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Aguiar é advogada há nove anos e está ainda no trâmite judical de retificar oficialmente seu noem de registro. Também só conseguiu recentemente modificar sua carteirinha perante à OAB-RJ após uma decisão do Conselho Federal da OAB permitir a emissão de certificados e carteirinhas com o nome social de  advogadas travestis ou transexuais. A travesti Márcia Rocha foi a primeira advogada atuante no Brasil beneficiada pela decisão.

Maria Eduarda foi atrás assim que a decisão foi comunicada, mas conseguiu mudar seu nome de primeira no registro. Isso porque os próprios funcionários da OAB do Rio de Janeiro, cidade onde reside, não sabiam que a mudança era possível. Assim como Maria Eduarda, outras pessoas transgêneras reclamam da desinformação em instituições quando o assunto é a mudança de nome. "É tão perverso que quando você é respeitada, fica feliz que foi tratada bem. Como se fosse excepcional", relata Luiza.

"Nome social não é um favor que você está fazendo a uma transexual, é o mínimo." - Neon Cunha

Propostas de lei que democratizam o acesso à mudança de nome social, como projeto de Lei de Identidade de Gênero, conhecido como João W. Nery — em referência ao primeiro homem trans no Brasil a fazer a cirurgia de redesignação de gênero e mudar seu nome de registro —, segue engavetado no congresso mais conservador do país desde a ditadura militar.

O que resta é contar com decisões de juízes de primeira instância para gerar antecedentes, como o caso de Neon. Outra possibilidade é o julgamento favorável do Recurso Extraordinário nº 670422 no STF que avaliará a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo, tramitando desde 2014 sob a relatoria do ministro Dias Toffoli e aguarda ainda a decisão do Supremo.

Neon Cunha. Foto: Facebook.

As entrevistadas que toparam contar suas histórias à VICE denunciam o preconceito diário de um país onde mais se mata travestis e transexuais perante à Justiça e todos os setores da sociedade. Os seus pronomes não são respeitados e não é incomum serem alvos de deboche devido à ignorância da população sobre a transexualidade. "Nome social não é um favor que você está fazendo a uma transexual, é o mínimo", afirma Cunha.

"O que ninguém se pergunta depois é: o nome social estará gravado na nossa lápide? Eu tenho uma amiga que morreu anos atrás cujo nome social não está escrito lápide. A maioria das minhas amigas da adolescência estão mortas e em muitas não sei como prestar homenagem porque o nome social não foi para lápide delas. Pra gente isso é questão de vida e morte."

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