rapariga segura cartaz feminista
Foto por Sérgio Felizardo, originalmente publicada aqui.

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Opinião

A mulher portuguesa quer-se como a sardinha, caladinha

"Não há uma plataforma digna que as proteja, não há uma autoridade que não use o maldito provérbio 'entre marido e mulher' ou, pior que tudo, não há uma mulher que se levante por elas todas".

No inicio foi o Weinstein, o produtor de cinema que, de um dia para o outro, foi apanhado – e bem - por acusações de assédio sexual. Era vê-las a saírem da sua toca inibidora e, juntas, meterem a capa de super-mulher, deixarem a vergonha descabida de lado e acusarem o senhor, até ali intocável, de investidas desonestas. Foram histórias horríveis de como manipulou actrizes que queriam somente trabalhar, a escolherem terem um bom papel a troco de favores sexuais ou viverem na miséria. Nomes como Ashley Judd e Gwyneth Paltrow que, no nosso imaginário, seriam donas de uma vida focada e pacifica e, afinal, sofreram horrores e reprimiram a quase violação durante anos.

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Depois, Kevin Spacey. Quem não se lembra de Lester Burham ou, mais recentemente, Francis Underwood, a criar empatia pelo sofrimento de um marido frustrado, ou a dar a conhecer o maquiavelismo da presidência americana, respectivamente. O Mundo acordou com a denúncia de assédio a um menor há 30 anos e – pior - com Spacey a desculpar-se com o facto de ser homossexual. Péssima escolha de marketing que ofendeu toda a gente. A desilusão foi geral, ao ponto de a Netflix decidir acabar a série onde ele, tão bem, desempenhava o papel de presidente dos Estados Unidos da América e ficou, até agora, como ovelha negra, a desculpar-se e a prometer tratamento. Algo que, sinceramente, deve significar um Spa de 5 estrelas, onde ouve cânticos tibetanos e frases de santo exupery. Tempo perdido, portanto.

Louis C.K., Deus me perdoe, maior desgosto de sempre. De todos os assédios, o "menor", pedia a quem apanhava, que permitisse que se masturbasse com público. Exibicionismo puro e duro, mas, nesta fase, a simples abertura de braguilha seria o suficiente para uma acusação e, assim, o afastamento do brilhante humorista de stand up para a escuridão, onde, aliás, deveria ter ficado para se masturbar.

Desde aí, não há dia em que não haja um depoimento de acusação de assédio por parte de um famoso. Um dia, um estudo irá confirmar que em casa de cada família existe um vídeo ou um CD de alguém que, agora, está a ser denunciado por este tipo de abuso. Até aqueles que pensávamos serem quietinhos a cantarem no coro da aldeia onde os avós viviam, está, agora, a ser denunciado e, vai-se a ver, fazia loucuras com alguém… a contragosto desse alguém.

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E em Portugal?

Se formos ao Google e procurarmos “assédio em Portugal”, há duas entradas repetidas; Filipa Penetra e Maria Vieira. Vamos esquecer a Maria Vieira e focarmos-nos na Penetra que, até hoje, foi das únicas a levantar um pouco o véu do que podem ser os bastidores do show bizz português. Eu sei que há assédio, tu sabes que há assédio, toda a gente sabe que há assédio. É como os carros que a Oprah oferece, mas aqui, quem denuncia vai de carrinho. “Ou comes ou és comido” e quando só se tem quatro canais de televisão onde trabalhar, mais vale calar e engolir e seguir o sonho, do que voltar para a terrinha depois de tanto sacrifício. Há o mito urbano de que essas coisas chatas fazem parte do casting. Uma piada como qualquer outra que, no fundo, só esconde a verdade.

Procurei a acusação da Filipa e foram estes alguns dos comentários que li referentes à noticia em causa:

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Meti-me na pele da Filipa e, mesmo não sendo muito cobarde, preferia desistir antes que a comunicação social fosse buscar o meu ex e o mesmo fosse primeira capa de uma revista rosa, com todos os meus segredos a descoberto.

A desacreditação decorrente da sua participação num programa que, por mais audiência que tenha, ninguém assume ver, juntamente com a piadola rasca com o seu nome, prova que a mentalidade portuguesa ainda tem muito para evoluir. As pessoas ainda não aprenderam que não há isso de “meter-se a jeito”, ou de “estar a pedi-las”. O 25 de Abril foi há tanto tempo, mas ainda hoje se sente a força do silêncio da mulher, que carrega o sentimento de culpa de cada vez que algo lhe acontece.

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Os dados revelados ainda recentemente pelo jornal Público confirmam o que estou a escrever: “De 733 queixas, só 75 foram consideradas legitimas. Isso em 2016, no entanto, todos os dias a toda a hora, há assédio, tentativa de violação ou, mesmo, violação”. O Mundo é dos homens e essa coragem que agora nos aparece em forma de noticias pela televisão ou jornais, está longe de inspirar as mulheres portuguesas a fazerem o mesmo.

Não há uma plataforma digna que as proteja, não há uma autoridade que não use o maldito provérbio “entre marido e mulher” ou, pior que tudo, não há uma mulher que se levante por elas todas, acuse sem medos quem a tenha chantageado e abra a boca, não para favores ao predador, mas para gritar que não, que isso não é admissível. Há pedidos para que se conte por mail sob nome fictício o que aconteceu, aconselha-se o afastamento dos homens em vez de, de uma vez por todas, ouvirem um berro (e oh meu deus se a mulher sabe gritar).

Ainda é tudo muito encapotado, a mulher ainda é tratada como a pobre coitada traumatizada, em vez de se lhe dar uma injecção de força e a promessa de que pode apontar o dedo, está tudo bem, acreditamos em ti. Há um incomodo quando se fala no assunto, porque todas as mulheres se sentem culpadas e todos os homens culpados se sentem. Foge-se para a piada, para o empurrar com a barriga. Manobras de diversão na esperança vã de que a coisa se esquecerá.

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A mulher portuguesa, infelizmente, ainda se quer como a sardinha, caladinha. Nao há acendalha que acenda o fogo que permita queimar este poder que insiste em resumir-nos a objecto sexual. Somos pequenos, fomos grandes, podemos voltar a sê-lo, só falta alguém dar o primeiro passo. Terá todo o meu apoio. O vosso também. Eu sei que sim.


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