A história do desmanche do melhor fim de noite da Bahia

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A história do desmanche do melhor fim de noite da Bahia

Por mais de 30 anos, o Mercado do Peixe foi um dos mais tradicionais e populares complexos de botecos de Salvador. A atual gestão do prefeito ACM Neto, porém, pôs fim no espaço ao privatizar a orla da cidade.

Se você já foi a Salvador, talvez já tenha tomado uma cerveja no Mercado do Peixe. Apesar do nome, o lugar não vendia peixe: o complexo de bares, a maioria administrado por famílias pobres, servia bebida barata e comida caseira, trazidas por garçons chamados pelo nome pela clientela. Isso 24 horas por dia, sete dias por semana — um dos únicos locais de Salvador que não parava nunca. Não à toa, o espaço era considerado o fim de noite mais famoso da Bahia.

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O Mercado do Peixe em 2009, antes das duas reformas. Foto: Samuel Barros e Ledson Chagas/LUPA

Em 2015, porém, o Mercado do Peixe foi demolido. O espaço ficou meses fechado para obras e, depois de reinaugurado, estava totalmente irreconhecível: antigos botecos deram lugar a onze restaurantes — alguns como filiais de famosos pontos da cidade, como o Caminho de Casa. Bares clássicos, como o Pérola Negra, deram lugar a nomes como RV Lounge. Saíram as mesas de plástico, entraram decks de madeira e quiosques envidraçados. A cerveja, que saia por R$ 5, passou a custar R$ 10. E, então reaberto, o conhecido Mercado do Peixe foi rebatizado como Praça Caramuru.

"Passo por aqui e me dá uma saudade danada. Sinto falta da minha rotina, acordar cedo, fazer as compras, tomar conta disso aqui", diz Alex Nunes, 31 anos, ex-administrador de um dos bares do antigo Mercado do Peixe. Nunes conversa enquanto caminhamos pelo novo espaço e me conta que começou a trabalhar no espaço aos 12 anos, ajudando no box do seu pai, Antônio Nunes — que também perdeu o negócio com a reforma do local. "A conversa toda sempre foi da gente ficar. Nunca disseram que a gente ia sair", diz o comerciante.

Alex Nunes, 31 anos, ex-administrador de um dos bares do antigo Mercado do Peixe. Foto: Taisa Sganzerla

O espaço que, por mais de 30 anos, abrigou o Mercado do Peixe entrou no escopo das obras de requalificação do bairro do Rio Vermelho, essas por sua vez parte do projeto milionário de reforma de toda a orla de Salvador promovido pela gestão ACM Neto (DEM) — prefeito reeleito da capital baiana no primeiro turno com 74% dos votos, vencedor em todas as 20 zonas eleitorais da cidade. Das praias das ilhas da Baía de Todos os Santos até Itapuã, praticamente todo o comércio da orla da cidade será administrada pela iniciativa privada, que até o início do verão deverá construir quiosques padronizados e terá a liberdade de alugá-los para quem — e pelo preço — que quiser.

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HISTÓRIA

A história do Mercado do Peixe tem início ainda nos anos 1950. Naquela época, o Mercado Municipal do Rio Vermelho, nome oficial do espaço, estava localizado no Largo da Mariquita, no centro do bairro do Rio Vermelho. Ali se vendia peixe, carne, frutas e verduras. Nos anos 1980, o mercado foi transferido para o outro lado da rua, de frente para o mar.

Foi nessa época que Antônio Nunes adquiriu um box no local. Ex-funcionário de uma das empresas do polo petroquímico de Camaçari, Nunes saiu em uma das baixas do polo e resolveu investir no comércio.

"Quando nós abrimos não era à noite [que funcionava o Mercado], seis horas fechava. Mas aí um foi ficando, outro foi ficando, até que a noite virou o forte do lugar. Porque o pessoal saia à noite, ia pra festa. E aí quer tomar aquela saideira, vamo pro Mercado, vamo pro Mercado comer um feijão. E lá a gente vendia feijão, rabada, dobradinha, maniçoba", conta.

Numa quarta-feira de julho de 2015, apenas um mês antes do início das novas obras firmadas pela prefeitura de ACM Neto, os permissionários souberam que deveriam sair do Mercado do Piexe.

Em 2010, durante a gestão do prefeito João Henrique Carneiro (hoje PR), a prefeitura firmou uma parceria com uma marca de cerveja para substituir os antigos barracões por boxes de alvenaria, com a contrapartida da exclusividade da venda das bebidas da marca até 2020. Naquela ocasião, todos os permissionários mantiveram seus negócios no local.

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Para Antônio, o período imediatamente após a reforma foi um dos melhores. "Consegui assinar a carteira de todos os meus funcionários", conta. A reforma ampliou a quantidade de boxes de 13 para 36. Em 2015, quando o Mercado fechou, só haviam 16 boxes funcionando.

Numa quarta-feira de julho de 2015, apenas um mês antes do início das novas obras firmadas pela prefeitura de ACM Neto, os permissionários souberam que deveriam sair. Quem deu o recado foi Rosemma Maluf, nome à frente da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), que regula o comércio informal da cidade. "Fomos avisados que a orla toda tinha sido vendida e que não tinha como ficarmos ali. Que a gestão agora não seria mais dessa secretaria. Que o mercado tinha acabado, que era a iniciativa privada que ia gerir e, se quiséssemos voltar, teríamos que procurá-la e se virar", relata Nunes.

A MUDANÇA

Após a reunião com a funcionários da Semop, Antônio Nunes, 65, pai de Alex e permissionário do Mercado desde 1980, se revoltou. Tentou convencer os outros a fechar a rua no Rio Vermelho, a ir à prefeitura, qualquer coisa. "A gente tinha dois caminhões que faziam frete lá. Eu falei: gente vamos botar essas mesas, cadeiras, vamo todo mundo, permissionário, funcionário, tudo para a porta da prefeitura. A impressa vai chegar, eles vão perguntar por que e nós vamos explicar".

Com ajuda do Rio Vermelho em Ação, grupo de ativistas contrário à reforma do bairro, um protesto foi realizado no local. Ainda assim, a reforma seguiu em frente. "Eu era um pingo d'água no oceano. O pessoal [do Mercado] achava que não ia resolver, que não adianta a gente forçar a barra", relembra Nunes.

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Antônio Nunes, 65, parou de trabalhar desde que saiu do Mercado em 2015. Foto: Taisa Sganzerla

Com 65 anos, Seu Nunes, como é conhecido, vive hoje em uma pequena casa no bairro de baixa-renda do Engenho Velho da Federação. Aposentado com salário mínimo, e com problemas de saúde no coração, parou de trabalhar desde que saiu do Mercado em 2015. "O Mercado me deixou doente. Eu chorei. Não dormia, precisava tomar remédio. E agora continuo tomando, ficou um vício."

Já Alex conseguiu um emprego em um projeto do governo estadual de capacitação de empreendedores. Mas se preocupa com o pai. "Uma pessoa com 65 anos, 30 anos de Mercado. Achou que estava no horizonte da vida, néra? Tava bem, tranquilo. Depois desse choque emocional, ele desenvolveu uma síndrome do pânico. Não sai sozinho, não fica sozinho."

Glauber de Jesus, outro ex-permissionário a perder seu negócio no Mercado do Peixe, também alega falta de transparência nas negociações com a prefeitura em relação a reforma do local. "No início de 2015 disseram que ia reformar, que ia abrir uma licitação. Tudo bem, achávamos que teríamos chance de concorrer. Só soubemos que iríamos sair de vez faltando 30 dias para as obras começarem".

Segundo Glauber, o preço para ter direito à concessão de um box na nova Praça Caramuru sairia por cerca R$ 100 mil, excluindo o aluguel do espaço — ambos pago às concessionárias que hoje administram o local. "Com o país do jeito que tá, como que você tirar 100 mil assim da noite para o dia?", questiona ele.

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Apenas quatro dos antigos permissionários conseguiram arcar com os custos e abriram novos restaurantes na Praça Caramuru.

"Não somos contra a reforma ou contra ninguém que entrou", fala Alex. "O local estava mesmo precisando de melhoras. Mas podia ter sido menos truculento conosco. Podiam ter nos requalificado, por exemplo."

GOURMETIZAÇÃO

Após três mandatos como deputado federal, ACM Neto assumiu a prefeitura de Salvador em 2012 com um forte discurso a favor do envolvimento do capital privado na administração pública. Promoveu, por exemplo, uma total reestruturação do modelo de patrocínio do carnaval da cidade, que desde 2014 passou a prever exclusividade do patrocinador na venda de cervejas em todo o circuito.

No entanto, ao contrário de outros colegas do DEM, evita atrelar essas medidas a outros princípios comumente associados à direita — se posiciona à favor dos direitos LGBT e até propôs até um sistema de cotas raciais para servidores municipais, indo de encontro a posições do seu próprio partido.

Jamais se posiciona diretamente a favor do "estado mínimo" — sua gestão, inclusive, promoveu o maior aumento do IPTU em décadas — e no lugar disso encarna o papel do 'bom gestor'.

O carro chefe de sua gestão é a requalificação da orla de Salvador. Em setembro de 2014, uma área total de mais de 14 mil metros quadrados, distribuídas em diversos pontos da praia, foi arrendada a três empresas vencedoras da licitação: a Nova Orla SPE, a Tuvalu Turismo, Lazer e Empreendimentos SPE e a a Salvador Kiosk e Turismo, que poderão explorar os espaços por um prazo de 15 anos. Esta última é a que possui a concessão do espaço da Praça Caramuru. As informações são de documentos obtidos junto à prefeitura via Lei de Acesso à Informação, é possível ter acesso a eles aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

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Mercado do Peixe já reformado depois do programa de privatização da orla de Salvador. Foto: Taisa Sganzerla

As empresas vão investir um total de 49 milhões no projeto, sendo nove milhões de outorga e o restante em construção de quiosques padronizados, os quais podem ser locados para outras empresas do ramo de bares, restaurantes ou atividades turísticas. Apesar de já estar toda licitada, algumas partes da orla ainda estão em obras. O valor investido no Rio Vermelho foi de R$ 70 milhões, e no Mercado do Peixe especificamente foi de R$ 1,520 milhão.

Em julho de 2015, o Ministério Público Federal na Bahia abriu um inquérito para investigar possíveis violações ambientais e ao patrimônio histórico, cultural no projeto requalificação do Rio Vermelho. A medida foi tomada após o coletivo Rio Vermelho em Ação entrar com uma representação no órgão. O MPF pediu esclarecimentos a cinco órgãos sobre as obras no bairro — incluindo o IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) e o IPHAN da Bahia, que recentemente se tornou notório por ter liberado, ainda em 2014, a construção do edifício La Vue, no bairro da Barra, onde o ex-ministro Geddel Vieira Lima possui um apartamento. O Largo de Santana, epicentro do Rio Vermelho que entrou no escopo da requalificação (todo o seu piso de pedras portuguesas trocado por granito) consta como tombamento provisório pelo IPAC.

O coletivo Rio Vermelho em Ação também realizou diversos protestos contra a reforma do bairro no ano passado — exigindo principalmente que a prefeitura realizasse uma audiência pública sobre a reforma, o que não aconteceu. No lugar disso, a prefeitura realizou diversos encontros com a AMARV (Associação de Amigos e Moradores do Rio Vermelho) que, segundo o coletivo, aconteceram a portas fechadas. A AMARV se posicionou a favor da reforma em diversas ocasiões na imprensa de Salvador.

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SITUAÇÃO DOS PERMISSIONÁRIOS

Uma Permissão de Uso de Área Pública permitia que Alex e Antônio Nunes administrassem boxes no Mercado do Peixe, uma licença concedida pela Semop aos comerciantes informais da cidade, entre administradores de boxes em mercados municipais e vendedores ambulantes. A licença previa o pagamento de uma taxa mensal — no caso do Mercado do Peixe, o valor variava entre R$ 1500 e R$ 4 mil.

Diferentemente da nova concessão municipal, essa licença pode ser revogada a qualquer momento pela prefeitura. E foi isso que aconteceu. No dia 6 de maio de 2015, todas as licenças dos permissionários do Mercado do Peixe foram revogadas, conforme publicação no Diário Oficial do Município. A cassação foi feita com base num artigo do código de polícia administrativa de Salvador, no qual está prevista interdição caso o "estabelecimento, a atividade, o equipamento ou aparelho, por constatação do órgão competente, constituírem perigo à saúde, higiene, segurança pública e/ou individual".

Por e-mail, a secretaria Rosemma Maluf afirmou que "foram ofertadas [aos ex-permissionários] pela Semop oportunidades em outros equipamentos [municipais] a exemplo dos mercados municipais em outros pontos da cidade. A adesão ficou a cargo dos permissionários, sendo que muitos deles buscaram alternativas próprias".

Nosso ramo é de bar, nosso material todo era fogão, engradado, freezer. — Alex Nunes

Alex e Antônio, por sua vez, dizem que a oferta da secretaria não foi exatamente assim. "[A Semop] disse que não tinha lugar nenhum para irmos, porque os mercados já estavam completos. Poderiam no máximo conseguir alguma vaga para vender folha, produtos da roça, o que não era nosso ramo. Nosso ramo é de bar, nosso material todo era fogão, engradado, freezer."

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Com ajuda do vereador Antônio Lima (DEM) — falecido no início desse ano —, a secretaria conseguiu novas vagas para os antigos permissionários no mercado de Cajazeiras, localizado na periferia de Salvador, a 23 km de distância do antigo Mercado do Peixe. "Foi com a luta de Lima que nós conseguimos ir pra Cajazeiras. Se não, nem isso teria", diz Alex.

No novo local, segundo relato dos Nunes, os permissionários encontraram outras dificuldades: o mercado tinha pouco movimento; os boxes que lhes foram ofertados ficavam no último andar. Não vendiam quase nada. "Eu ia lá e vendia dez, doze, quinze, vinte reais por dia. E ainda gastava vinte reais de gasolina pra ir pra Cajazeiras e voltar".

NEGOCIAÇÕES

Antônio, Glauber e Alex acusam o empresário Cleodo Mércio de Jesus de ter enganado os permissionários do mercado quanto às condições da reforma, e facilitado o desmanche do local junto à prefeitura.

Cleodo Mércio adquiriu um box no Mercado do Peixe em 2011, quando também se tornou presidente da associação de permissionários. Hoje, ele possui um dos restaurantes da Praça Caramuru, o Cantina da Lua, filial de um tradicional estabelecimento do Pelourinho fundado por seu pai, Clarindo Silva, na década de 50. Mércio, inclusive, também preside a nova associação dos comerciantes da Praça Caramuru — agora, dos "sub-concessionários" da praça.

"[Mércio] começou a ir pras reuniões escondido, com a prefeitura e o conselho de moradores [AMARV] e lá ele dizia que todo mundo tinha interesse que [o Mercado do Peixe] acabasse, que ninguém mais queria o box, ninguém mais queria nada, o que não era verdade", diz Alex.

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Queríamos também mudar o perfil do mercado, acabar com esse negócio de ser um lugar para só se comer de madrugada. — Cleodo Mércio

Antônio, que já foi presidente da mesma associação no passado, confirma: "Ele ia pra a reunião com a prefeitura e a associação de moradores do Rio Vermelho para nos representar, só que a gente não sabia que ele era a favor do desmanche do mercado".

Em entrevista por telefone, Mércio disse que muitos permissionários o procuraram e manifestaram vontade de ir para outros lugares. Segundo ele, a reforma de 2010 patrocinada por uma marca de cerveja foi mal projetada, com boxes muito pequenos e infraestrutura precária. "Queríamos também mudar o perfil do mercado, acabar com esse negócio de ser um lugar para só se comer de madrugada".

Perguntando quanto pagou à concessionária pela concessão de um dos quiosques, Mércio não quis informar.

DAQUI PRA FRENTE

Seu Antônio diz não culpar o prefeito pelo que aconteceu. "Eu sou carlista, sempre fui carlista", diz. "Sou carlista desde que ACM fez a barragem da pedra do cavalo, que trazia água pra Salvador. Eu morava no Nordeste de Amaralina, antes disso não tinha água, minha família acordava três horas da manhã pra pegar um balde de água na casa da vizinha".

Seu Antônio, no entanto, acredita que faltou articulação e resistência por parte dos permissionários. "A gente não foi à luta. Porque em qualquer lugar, até um prédio que é invadido, os caras não deixam a polícia botar pra fora. Nós não fizemos nada. Nem procurar um advogado. Nada, nada. Daí foi segunda-feira todo mundo pegando as coisas, botando dentro do caminhão e indo embora, entendeu? Por que eu posso culpar ele [ACM Neto]? Eu não posso culpar", desabafou.

A vista segue a mesma, o acesso que agora é outro. Foto: Samuel Barros e Ledson Chagas/LUPA

Por volta das 21h de um sábado em setembro, a Praça Caramuru fervilha. Sob luzes coloridas de discoteca, um DJ toca um som eletrônico, enquanto clientes conversam e bebericam coquetéis. Os seguranças do quiosque dão conta de espantar três cachorros vira-latas que tentavam juntar-se aos clientes. A presença de uma dezena de cachorros, fiéis frequentadores do local nos velhos tempos, é o único vestígio de continuidade entre o Mercado do Peixe e a Praça Caramuru — ainda que agora circulem baratinados, carentes do paparico dos clientes antigos. Dali a poucas horas o local estará deserto — os quiosques passaram a fechar por volta da uma da madrugada. Os cachorros poderão revirar o lixo à vontade, mas o público de outros tempos terá que encontrar outro lugar para ver o dia amanhecer.

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