N.Ed.: Este texto não contém revelações sobre o enredo.Nessa altura do campeonato, não é mais preciso escrever uma sinopse de Bacurau, dirigido por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho e lançado semana passada nos cinemas brasileiros. O filme já foi visto por mais de 86 mil pessoas desde sua estreia e, antes, por mais de 20 mil espectadores nas pré-estreias disputadas quase aos tapas nas salas de cinema. Por enquanto, é um dos trabalhos artísticos mais emblemáticos do Brasil bolsonarista.
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Uma das preciosidades do filme são as referências de gêneros cinematográficos e acontecimentos históricos do Brasil inseridas de forma inteligente e sem presumir que o espectador é limitado demais para entendê-las. Cito isso pensando no último de Tarantino, Era Uma Vez Em Hollywood, onde cada mínima metalinguagem ou referência sobre o cinema ou televisão dos EUA aparecem como se fossem indicadas por placas de neon para que seus espectadores entendam e se sintam inteligentes. Bacurau não emburrece o espectador, pelo contrário, ele traz mais repertório, o que foi surpreendente para mim.Nos últimos filmes de Mendonça, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o medo do diretor de deixar ambiguidades na narrativa e, consequentemente, ser mal entendido, era tão grande que deixou os filmes literais e cansativos. Em alguns momentos de O Som ao Redor os diálogos me pareceram memes. Em Bacurau há uma confiança muito clara e aposta na sagacidade do espectador, sem precisar explicar tudo e deixando pontas soltas na narrativa.No caldeirão de gêneros trazidos para a história de Bacurau e já mencionados por críticos de cinema, estão desde a construção narrativa típica de filmes do John Carpenter, takes e transições de cena do gênero western spaghetti e homenagens ao Cinema Marginal e o Cinema Novo, especialmente nas obras de Glauber Rocha, onde o sertão um personagem tão importante quanto os atores — ele permanece lindo e quente, enquanto tudo explode em torno dele.
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Evidente que a pequena cidade de Bacurau também nos lembra uma Canudos distópica, isolada na seca, sem acesso à água em um Brasil separado em dois (possivelmente entre o Sul e o Norte). No entanto, ao contrário de Canudos, não há uma figura mística única que dita as vontades e o destino dos habitantes de Bacurau. Não existe nenhuma necessidade de cultivar deuses ou mestres em uma comunidade onde todos estão no mesmo pé de igualdade — da médica às prostitutas e os cangaceiros cyberpunk.
Embora o filme pareça uma cutucada no atual cenário geopolítico brasileiro no mundo, ele não foi feito com esse propósito. O longa começou a ser idealizado entre Mendonça e Dornelles (que trabalhou como diretor de arte nos filmes anteriores de Kleber) em 2009 e terminou de ser filmado no final do ano passado. Não há referências diretas sobre figuras políticas que aparecem no noticiário político ou acontecimentos recentes, há apenas a imaginação de futuros possíveis para o Brasil — um país onde é quase impossível prever o estado das coisas para os próximos cinco anos.A narrativa ambientada em futuros próximos apareceu também em outro filme nacional em 2019. Divino Amor do cineasta Gabriel Mascaro também se passa em um Brasil futurista, consolidado na estética neopentecostal e da burocracia nacional. Porém, Mascaro foca numa protagonista que acredita e quer radicalizar ainda mais o sistema em que vive. Já Bacurau mostra que é possível o levante feito por quem está fora do sistema. Seja lá como ele for.Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter, Instagram e YouTube.