carpideiras Romania
Anica Bulz (60), Ana Heidel (79) e Catrina Cilian (77). Fotos por Roxana Pop.
MEMENTO MORI

A tradição das carpideiras na Romênia

As mulheres que vão ao funeral de pessoas que não conhecem – para chorar e cantar.

Quando eu era criança, cresci ouvindo histórias sobre as bocitoare – mulheres que iam a velórios de estranhos para chorar em voz alta e cantar músicas tristes. Elas são como “carpideiras” (mas não são pagas pelo serviço), que sempre imaginei como senhorinhas usando lenço na cabeça, vestido preto e se descabelando para um cadáver. E acontece que é exatamente assim que elas são.

Quando ouvi dizer recentemente que essa prática estava morrendo, eu quis encontrar as carpideiras que restam ainda tentando manter o ritual vivo.

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Entrei em contato com os historiadores mais proeminentes da Romênia, mas a maioria me disse que a tradição tinha desaparecido em sua área; eles não conheciam nenhum grupo ativo de carpideiras. Felizmente, acabei falando com Gabriela Herța – uma professora de primário no pequeno vilarejo de Romuli, no norte do país – que me disse que eu não estava procurando fantasmas: havia algumas carpideiras em atividade na Romênia, e elas gostariam de compartilhar suas histórias.

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A casa de Gavrilă Catrina (esquerda).

A neve cai pesada quando chego a Romuli. Estaciono na rua principal, depois subo a colina para o único ponto visível lá longe – uma antiga cabana turquesa que parece saída de um conto de fadas.

Gavrilă Catrina, Ana Heidel e Anica Bulz me recebem na porta da casa com um “Deus te abençoe!” coletivo e uma taça de licor de mirtilo, que deixa minhas bochechas vermelhas imediatamente. Elas viram suas próprias taças com facilidade. A pedido de Herța, as mulheres estão vestidas em trajes tradicionais locais: camisas brancas com intrincados bordados em fio preto.

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Ana Heidel.

O trabalho delas é bem simples: as carpideiras vão a todos os velórios locais, sem convite da família ou qualquer pagamento por seus serviços. Elas choram e cantam músicas de luto, muitas vezes escritas especialmente para a pessoa que morreu.

As mulheres me mostram seu manual de confiança: “100 versos para os mortos – Canções funerais para meninas, crianças, mulheres e homens”, um livro publicado em 1930 que as mulheres usam como inspiração para suas letras. Muitas vezes, as carpideiras se encontram antes do velório e preparam um verso específico para a pessoa por quem vão chorar. Elas tiram algumas partes, acrescentam outras, improvisam um pouco, mas o produto final é baseado no livro de 80 anos que é passado de geração para geração.

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Pergunto se elas podem cantar uma de suas músicas de velório. Elas olham uma pra outra, concordam com o verso e limpam as gargantas.

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Anica Bulz experimenta um traje tradicional.

Elas sabem que a tradição está morrendo, e já aceitaram que podem ser o último grupo romeno de enlutadas profissionais.

“Os jovens não querem cantar para os mortos”, diz Bulz, que, aos 60 anos, é a mais nova das carpideiras. “Como se fosse uma vergonha cantar.” Bulz não lembra quantos anos tinha quando começou, mas diz que sempre gostou de participar.

Aos 79, Ana Heidel é a mais velha e engraçada do grupo.

“Quer dizer, o quê? Você acha que pode se livrar de nós?”, ela pergunta. “Chuva ou neve, vamos vir e cantar quando você morrer. Servimos na Guarda Patriótica [um grupo paramilitar voluntário criado sob o regime comunista de Ceaușescu para resistir à interferência estrangeira no país]. Você acha que temos medo de alguma coisa? Sabemos atirar com metralhadoras!”

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Peisajele de poveste și satele răsfirate ale Ardealului ascund tradiții arhaice, dar și o populație din ce în ce mai îmbătrânită și o depopulare atât de accelerată încât toate obiceiurile se pierd de la o zi la alta

Conversando com essas mulheres, a morte se torna menos algo a ser temido, e mais uma parte mundana da vida. Mas isso não conta a história toda: o luto cobra um preço delas. Catrina diz que muitas vezes sonha com a pessoa por quem elas choraram por dias depois do enterro. O mesmo vale para Anica, que recentemente perdeu a irmã e está achando difícil cantar e chorar em velórios no momento.

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Padre Nicolae Târgoveț.

Heidel não sonha com os mortos como as outras, mas todas dizem que funerais com pessoas que morreram muito jovens, ou onde a família está completamente devastada, são incrivelmente difíceis. Ainda assim, elas vêm a tradição, e seu papel nela, como uma parte fundamental da comunidade. Isso une as pessoas, elas dizem, mostrando para a família do falecido que eles não estão sozinhos, e que seu luto é compartilhado pelo vilarejo.

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Corina Bejinariu é a gerente do Museu de Arte e História em Zalău, uma cidade no norte da Romênia. Ela estuda ritos funerais como parte de seu PhD e me explicou que a maioria das pessoas guarda sua dor para si, e que isso muitas vezes só piora as coisas. As carpideiras podem normalizar demonstrações públicas de luto, permitindo “que o processo de luto prossiga”.

“Hoje em dia, perdemos o desejo de mostrar o luto publicamente”, disse Bejinariu. “A morte vem se tornando cada vez mais tabu, chorar se tornou um sinal de fraqueza numa sociedade que privilegia indivíduos fortes.”

Segundo Bejinariu, os jovens não são os únicos culpados pelas carpideiras não serem mais tão populares como no passado: “Num esforço para se tornar a única autoridade em morte, a Igreja quer acabar com o que acredita ser um ritual pagão, inconsistente com os ensinamentos cristãos”.

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Fie ploaie, fie viscol, bocitoarele sunt mereu la datorie

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O livro de músicas que as carpideiras usam para criar seus versos.

E sim, a Igreja Ortodoxa em Romuli não é muito fã das carpideiras. O padre do vilarejo, Nicolae Târgoveț, tem feito esforços consideráveis para impedir essa prática “não-cristã”, além de outros rituais tradicionais. Quando chegou a Romuli quatro anos atrás, ele diz que ficou chocado com várias práticas antigas no vilarejo.

“As pessoas estavam enterrando seus mortos com uma cruz de verdade nos pés”, ele lembra. “Eu achei que os coveiros estavam bêbados.” Os aldeões disseram a ele que o morto precisaria da cruz no Dia do Julgamento, para ajudá-lo a se levantar de novo. “Eu não conseguia acreditar na explicação”, disse o Padre Târgoveț. “Levei dois anos para convencê-los de que isso não fazia sentido. Então as carpideiras não são a única tradição que tenho tentado mudar.”

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Târgoveț argumenta que as carpideiras vão contra as tradições ortodoxas porque velórios devem encorajar a esperança diante da morte, lembrando as pessoas que seus entes queridos vão ressuscitar no pós-vida.

“Durante os sermões, tendo dar esperança às pessoas, e uma crença de que a morte não é o fim do caminho”, ele diz. “E o que [as carpideiras] fazem? Elas veem e choram com essas letras dramáticas que não ajudam a família enlutada. Honestamente, é um teatro sem noção.”

Târgoveț acrescenta que ele já tentou conversar com as carpideiras muitas vezes, porque, no fundo, ele sabe que elas são mulheres de fé. Mas elas nunca ouvem, ele diz.

“Foi isso que o padre falou?”, pergunta Anica Bulz, surpresa. “Ele vai se acostumar. Imagine não cantar para os nossos mortos porque é isso que o padre quer!”

Matéria originalmente publicada pela VICE Romênia.

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Tradução do inglês por Marina Schnoor.