Os ex-boleiros que escolheram pinga, motel e churrasco como ganha-pão

FYI.

This story is over 5 years old.

VICE Sports

Os ex-boleiros que escolheram pinga, motel e churrasco como ganha-pão

Depois dos clubes fecharem as portas em suas caras, eles foram atrás duma aposentadoria curtição.
CT
ilustração por Cassio Tisseo

Motel, escuna, costela no bafo e até pinga da boa. Ao citar essas palavras numa rodinha de futebol, as primeiras coisas que vêm à cabeça são coisas como férias, lazer, curtição, Adriano Imperador, certo? Para quatro ex-jogadores de grandes clubes do futebol nacional, não. Significam trabalho, muito trabalho.

Sinval (ex-Botafogo, Portuguesa e Coritiba), Guga (ex-Santos, Flamengo e Botafogo), Douglas Silva (ex-Flamengo e Grêmio) e Mozart (ex-Palmeiras, Flamengo e seleção brasileira) são daqueles casos em que a vida profissional virou de ponta cabeça depois de pendurar as chuteiras. O cheiro de grama, da festa da torcida e de hotéis tiveram que ser substituídos pelos aromas de carne na brasa, de brisa marítima e de, bem, fluídos alegres de casais. Os quatro até tentaram continuar no futebol, mas a conta não fechou. Como há mais ex-boleiros do que boas vagas nos clubes, tomaram portada na cara e tiveram que se virar. E deu certo. Hoje nenhum deles pensa em trocar de vida. "Qualidade de vida, sol, pessoas alegres sempre com paz e tranquilidade em lugares bonitos. Pretendo é continuar nessa", disse Guga, 52 anos, que hoje pilota escuna em excursões turísticas em Ilha Grande, no Rio de Janeiro.

Publicidade

Antes de encontrar o negócio ideal, por pouco o ex-artilheiro santista não viu a morte depois de se aventurar no ramo de lotéricas no Rio de Janeiro. O negócio ia bem, mas havia o problema da segurança. Foram dez assaltos em suas duas lojas. Chegou uma hora que não dava mais. "Tive até síndrome do pânico e meus filhos me pediram pra largar as lotéricas porque eu poderia morrer", contou.

A decisão de parar foi tomada, e a cidade para um novo rumo também: Ilha Grande, terra natal de sua mulher e que trazia boas lembranças de férias. O ex-artilheiro foi pensando, pensando, até que veio a ideia da escuna. "Um primo meu tinha agência de turismo e começou a me dar a ideia, me chamou e eu topei. Comecei pela agência dele, e isso já foi um facilitador no começo."

Começava ali, em 2005, os passeios da escuna Pavarotti. Nela, nos últimos 15 anos, Guga toca a vida com alegria. Não é o condutor, mas coordena o som, é barman, explica os pontos turísticos e ainda conta um pouco da carreira para os que são fãs de futebol. "Não quero ser rico; mas só viver a vida. Trabalho com lazer vendo pessoas felizes em lugares bonitos."

Conselho de um dono de motel: não façam merda

O recado pra boleirada atual é óbvio, mas muitos preferem não escutar: não ostente, pense no futuro. No bom português: não façam merda. "Jogador não se prepara pra parar, acha que nunca vai ficar velho", diz o ex-atacante Sinval. "Muitos vêm de família pobre e que os familiares querem tirar proveito, vira meio de vida. Aí eles vão e perdem dinheiro com carro, noite. Nunca tiveram dinheiro e começam a ganhar. Aí faz muita merda, ostenta, quer mostrar que tem mais do que o outro."

Sinval é um exemplo de cara que se planejou. Ele previu que, lá na frente, a aposentadoria poderia lhe trazer um aperto financeiro. Quando ainda fazia gols decidiu comprar um motel em sua cidade natal, Andradina, no interior de São Paulo, e deu para seu irmão administrar.

Publicidade

"Meu sonho de ter motel foi desde quando vi uma revista Placar, em 88, em que o ex-atacante Mendonça tinha um motel em Sorocaba. Aí tive um sonho de ter um motel. Em 2000 eu adquiri o motel de um cara em Andradina e pensei ´já comprei minha aposentadoria´. Dei pro meu irmão administrar enquanto fazia mais pé-de-meia jogando bola", relatou a revelação da Portuguesa.

"Motel quase não tem crise. Às vezes não tem nem lugar pro cliente entrar"

Hoje com 49 anos, Sinval toca os dois motéis no interior junto do irmão. Cuida mais da parte estética, de decoração, enquanto seu familiar gere mais as questões financeiras. Sinval é só elogios à qualidade de vida que tem em seu trabalho e transpira orgulho por ter dado certo. "Ganhar dinheiro quando é jogador é fácil, mas tem que tirar chapéu pro que não ganha muito e faz gerar mais coisas e ter seu próprio negócio pra depois. A melhor coisa desse ramo é que você não precisar ir atrás do cliente, ele vem. Motel quase não tem crise, e às vezes não tem nem lugar pro cliente entrar", brincou. Ainda assim, Sinval conta que já teve seus entreveros. Algumas situações foram bem delicadas. "O lado ruim são algumas coisas da madrugada. É cara bêbado, mulher que pega o marido lá dentro, homem que flagra a mulher. Mas isso vamos nos habituando com o tempo."

A salvação da pinga e da carne

Nos tempos de volante, Mozart, 37 anos, era daqueles carrapatos. Marcador implacável, teve a ideia de, após encerrar a carreira, talvez para aliviar a tensão das divididas, trabalhar com pinga da boa. O negócio começou a tomar forma enquanto perambulava pelos gramados da Itália, onde jogou por Reggina e Livorno.

Sua origem já ajudava. Ele é natural da cidade de Morrete, no Paraná, uma das mais tradicionais do país quando o assunto é cachaça. Os familiares de sua esposa já tinham fábrica e estavam no ramo há décadas. Sempre pintou um interesse de se aventurar ali. Mas ele fez questão de separar as coisas: não queria entrar de cabeça em algo que tivesse família junto. Decidiu fazer seu próprio caminho.

Publicidade

Em 2005, a cachaçaria Porto Porretes estava em crise e precisava de um aporte financeiro para continuar as atividades. Decidiu entrar. "Estavam sem dinheiro para a questão de marketing e visibilidade. Já tinham alambique e fui nessa parte de divulgação."

Anos depois, a Porto se fundiu à empresa Dragos, uma das exportadoras. E a cachaçaria foi ganhando mais e mais mercados. "Viramos uma binacional, tomou uma proporção que nem imaginávamos. Já exportávamos para os Estados Unidos e abrimos um mercado agora na Europa também", contou.

A cachaça de Mozart chegou a ser enviada para uma degustação na Casa Branca, em Washington, para a comitiva da então Secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, que foi candidata à presidência do país neste ano.

"Nos EUA aumentou muito o consumo, é visto como um produto nobre, bem melhor do que aqui. A Hillary estava lá na época que a cachaça foi servida pra eles, só não sei se ela degustou", brincou.

Outro que foi para o lado relax e gourmet da coisa foi Douglas Silva, campeão brasileiro pelo Atlético Paranaense em 2001. Ele é o retrato da maioria dos ex-boleiros: tentou muito não largar o futebol, mas chegou uma hora que teve que desistir. "Parei de jogar cedo por conta de lesões no joelho, fui pro sindicato de atletas do Rio, pensei em ser treinador e trabalhei em projetos com jogadores desempregados", conta.

Sem mais espaço nos gramados, resolveu investir na costela no bafo. "Sempre gostei de fazer churrasco e, por morar muito tempo no Sul (quatro anos em Curitiba e um ano em Porto Alegre), eu acompanhava muito o churrasco que era feito por eles. E costela no bafo é coisa rara no Rio, poucos lugares aqui tem isso. Aí fui preparando do meu jeito, aprendi a fazer o tempero", explicou.

Publicidade

O local fica no bairro de Padre Miguel, subúrbio da zona oeste do Rio. É uma esquina, com tenda com cadeiras de plástico. Por cerca de R$ 40 se degusta o prato, que, segundo o ex-volante, dá pra servir até quatro pessoas.

"A costela faz sucesso aqui no Rio de Janeiro. Onde eu passo e frequento, muitos falam. Quem já comeu faz bons elogios. Isso é gratificante pra caramba, aprender a fazer algo que dá certo e gostando, não precisa nem ganhar dinheiro."

O ex-volante de 36 anos disse que dá total liberdade pros compradores palpitar se está bom ou ruim. "Já recebi elogios pelo tempero que aprendi a fazer. Aprendi em uma semana, mas nem sempre é vitória. Tem algumas derrotas. Algumas vezes as pessoas falam que está com pouco sal, não está assado, muito crua, não gosta de gordura. Quando eu faço a entrega, dou total liberdade pra pessoa fazer crítica ou elogio. Quero ouvir pra melhorar."

Douglas também resume o espírito de todos os seus colegas que aprenderam a se virar: "Uma coisa que sempre falo quando acordo é que, tendo saúde, levo a vida sossegado sem tirar de ninguém e sem pisar em ninguém."