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Como conquistar a síndrome de impostor

Um trecho dum livro de Nathalie Olah: um conjunto de instruções de como existir no local de trabalho e na sociedade como um cidadão da classe trabalhadora.
Imposter Syndrome an extract from Nathalie Olah's book Steal As Much As You Can
Ilustração por Eva Bee.

O livro de estreia de não-ficção de Nathalie Olah brotou de alguns anos de ruminações. Como uma jornalista de 'cultura', ela se sentia frustrada por ter pouca cultura de mérito ou dinamismo político com que se engajar. “A guinada de classe média alta que nossa cultura tomou na última década é gritante. Agora há centenas de Cumberbatches afetados para cada Hugh Grant que havia nos anos 1990”, ela disse a VICE. “Se Naomi Campbell e Kate Moss eram as maiores beldades daquela década, agora elas foram substituídas em grande parte por garotas de escola particular de Bedales ou Wycombe Abbey. Escritores que lidavam descaradamente com questões de classe – como Julia Davis, Caroline Aherne ou Ruth Jones, por exemplo – foram substituídos por verdadeiros aristocratas.”

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É um problema, e Steal As Much As You Can: How to Win the Culture Wars in an Age of Austerity dá a pessoas normais afetadas pela austeridade e políticas conservadoras um enquadramento para desafiar essas novas normas culturais. Pense no livro como um conjunto de instruções de como existir no local de trabalho e na sociedade mais ampla como um cidadão da classe trabalhadora. É um guia para criar coisas de valor e verdadeiras quando a cultura pop de classe média alta dominou, e afetou as políticas britânicas de um jeito muito real. Ou, como Olah chama o que você está prestes a fazer, realizar “atos de roubo”; fodendo o sistema antes que ele te foda.

Percebendo e incorporando o roubo que ela descreve no livro, Olah disse a VICE que ela se tornou mais confiante. “Você não está louco ou é psicologicamente deficiente por se sentir inadequado num sistema que desvaloriza quem você é, sua comunidade e as pessoas que você ama. Um sistema pensado para te fazer sentir inadequado”, ela diz. “Mas você pode começar a rejeitar a lógica que te faz sentir assim. Quero que as pessoas parem de respeitar os guardiões do portal do poder da classe média, e o sistema que os mantém ali.”

Leia um trecho de Steal As Much As You Can, sobre síndrome de impostor, abaixo:

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Síndrome de impostor – descrita pela revista Time como um sentimento de fraude ou inadequação no local de trabalho – já rendeu uma boa porção de colunas e tempo na TV. Mas mesmo que nomear essa tendência tenha sido um grande passo para ajudar muitos de nós, quando começamos a questionar sua definição, também começamos a entender sua ocorrência totalmente natural dado o jeito como as sociedades capitalistas e seus sistemas de valores funcionam. Assim como objetos numa galeria, o local de trabalho moderno reduz os seres humanos a um sistema de equivalência, para que participantes de origem na classe trabalhadora e minorias sejam valorizados tanto quanto seus colegas brancos de classe média, é exigido que eles moderem o jeito como falam, se vestem e se comportam. Para muitos, isso não é considerado uma grande perda – afinal de contas, mobilidade social muitas vezes é movida por um desejo de se juntar as fileiras dos bem-vestidos e com cultura, mas na medida que essa é uma necessidade ditada pelo local de trabalho moderno, isso também constitui uma grande quantidade de trabalho não-remunerado e não-creditado.

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Esse é um fenômeno que Alexandria Ocasio-Cortez chama de “troca de código”. Favorecendo automaticamente os poderosos, e por extensão perpetuando o status quo, o neoliberalismo conseguiu suplantar os comportamentos e valores dos detentores de poder da classe média nas nossas percepções mais profundas do que constitui profissionalismo, qualidade e até saúde mental. Em vez de desmascarar esse mecanismo e expor suas origens altamente manipuladas e problemáticas, a mídia aderiu esmagadoramente a síndrome do impostor, administrando conselhos para pessoas de classe trabalhadora de como se conformar melhor e “resolver” qualquer aspecto divergente de sua personalidade e aparência para ter sucesso. Isso representa uma inépcia lamentável de criticar as estruturas de poder que governam a sociedade, sendo cúmplice num julgamento de valor que atribui deficiência e até transtorno mental a qualquer um que agora diverge de um conjunto muito estreito de significantes da classe média, aprovados pelo local de trabalho moderno.

Meu conselho pra quem estiver lendo é resistir a essa linha de raciocínio. Enquanto isso pode contrariar as ideias vendidas pela maioria dos livros de autoajuda, sugiro que em vez de internalizar a vergonha cultural imposta pelo local de trabalho corporativo, além de certas instituições de aprendizado e círculos sociais, é importante continuar vigilante para os jeitos como ela nos desumaniza e nos despe de nossa identidade. Perder isso de vista, e atribuir essa sensação a alguma deficiência psicológica, é internalizar o capitalismo e perder de vista nossa identidade essencial – e, por extensão, nossa criatividade. Fraude num sistema que em si é fraudulento, manipulado e insincero é basicamente um termo impróprio. Por outro lado, esse sentimento de fraude pode ser apenas uma luz guia que precisamos seguir no velho oeste do neoliberalismo de simbolismos, significados e verdades corrompidas.

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Essa sentimento de impostor é baseado na recusa em ser grato pelas oportunidades que outros tiveram no nascimento. Crucialmente, isso não deve invadir nosso senso fundamental mais profundo, espiritual, religioso ou de qualquer outro tipo de gratidão, que é básico para qualquer contentamento, ou paz, mas sim no jeito muito específico que nos relacionamos com o mundo profissional, corporativo e capitalista.

Nesse sentido, o que estou defendendo é uma redistribuição radical de oportunidade, não só na linha financeira – o que acredito que virá como resultado de, e trabalhando em conjunto com, esses objetivos – mas da produção cultural e na autodeterminação das comunidades trabalhadoras e de classe média baixa. O que estou defendendo é uma mudança para pessoas reais compartilharem histórias reais, contarem piadas reais e compartilharem música real num vernáculo que é entendido pela maioria das pessoas nesse velho oeste de economia de livre mercado e sob os auspícios de uma classe governante que não tem a menor ideia de como se relacionar com ele. Diferente da redistribuição radical de riquezas que vai exigir novas políticas e novas leis de impostos, já temos todas as ferramentas necessárias para criar uma cultura radicalmente nova, e agora simplesmente temos que dispensar qualquer respeito residual que temos pelas velhas instituições culturais, que servem como guardiões do portal do mainstream e que continuamente excluem qualquer desafiante.

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Para fazer isso, é essencial lembrar que na economia de mercado, você – seu corpo e sua mente – é apenas uma commoditie aos olhos do seu empregador, e que qualquer tentativa que ele possa fazer para melhorar seu bem-estar é apenas para assegurar o lucro. Seu patrão não é seu amigo. Culpa e qualquer obrigação além de aparecer e servir seu tempo designado não são emoções de que seu empregador comprou os direitos.

Retenha esse sentimento de impostor, e através dele veja as muitas maneiras como o local de trabalho corporativo e seus frequentadores descartam sua legitimidade e a legitimidade da sua cultura. Veja como seu gerente fala com os faxineiros que limpam a sala dele. Veja como ele fala com os comerciantes no telefone e reclama da equipe de transporte que o ajuda na sua jornada para o trabalho. Veja ele tentar cultivar amizade com seus empregados para assegurar um bom relacionamento profissional, apesar de todas as maneiras discretas como ele vai explorá-los na primeira oportunidade que surgir, como insistindo em hora extra que nunca é remunerada e os enviando para o outro lado do mundo para vagar por corredores sem alma de centros de conferência, rindo da ideia de que isso pode ser apresentado como um privilégio.

Veja como seu chefe tenta ser mais "gente como a gente" satirizando uma cultura negra que ele na verdade teme no dia a dia, passado no ambiente estéril e branco de sua casa vitoriana com terraço; enquanto ele ironicamente, e bêbado, toca reedições de músicas de hip hop e R&B na festa de Natal da firma, suas preferidas sendo “Pink Ring” do Wu-Tang ou “Doo-Wop” da Lauryn Hill – músicas que ele fingiu gostar durante seus três anos de diversão na faculdade. Veja seu chefe do jeito frio e distante que permita que você o explore do mesmo jeito que ele te explora. Pegue seu dinheiro e vá embora, é o que estou dizendo, sem ser sugado para as partes mais macias da cultura corporativa, que nada mais são que uma tentativa um pouco menos velada de tornar o processo de desvalorização necessário para o local de trabalho moderno mais agradável e simpático. Isso será particularmente relevante para os tipos de locais de trabalho emergindo das indústrias de tecnologia e criativa, cujo “capitalismo crew-neck” esconde um tipo mais desumanizante do que a versão anterior de terno e gravata.

Com essa abordagem, você poderá navegar melhor num sistema de que a maioria é forçada infelizmente a participar, usando a experiência como um jeito de aprender os sistemas do capitalismo para poder desmantelá-los. Com esse dinheiro e seu tempo livre, encontre maneiras de usar essa experiência como impostor: escrevendo sobre suas experiências, aproveitando a dinâmica que você testemunha para montar movimentos políticos e construir comunidades com uma visão para criar uma mão de obra mais empoderada; trabalhando com jornalistas para expôr comportamentos ilegais e exploradores. Se junte a um sindicato e trabalhe com a equipe dele para estabelecer o que você pode ou não dizer no domínio público; e continue doando parte desse dinheiro para seus representantes socialistas no Parlamento, cuja suposição de poder será o jeito mais rápido e confiável de garantir justiça para todos nós que somos desumanizados pelas entidades corporativas.

Steal As Much As You Can foi publicado pela Repeater Books no Reino Unido em 8 de outubro de 2019. Compre o livro aqui.

@nrolah / @evabee_draws

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