Sob o domínio da China, Hong Kong perde sua liberdade e sua comida de rua
Um manifestante em Mong Kok em fevereiro. Foto por Lam Yik Fei / Getty Images

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Sob o domínio da China, Hong Kong perde sua liberdade e sua comida de rua

Uma batalha por democracia enquanto o governo de Pequim aumenta seu domínio sobre a cidade semiautônoma.

Esta matéria foi originalmente publicada no Munchies .

O Sra. Ng* serve linguiças vermelhas espetadas em palitos de madeira, junto com bolinhos de carne suando gordura. É a primeira noite de clima bom em Hong Kong num começo de dezembro, e logo depois das 18h, homens de negócio famintos saem de seus escritórios e vão até a barraquinha de Ng. Eles mergulham os palitos nos molhos grátis de pimenta e amendoim que ela deixa em tigelas de metal em cima do balcão.

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No meio de seu carrinho de espetos, ela frita bolinhos de peixe — o carro-chefe, ela diz. "Não entendo muito de democracia", diz Ms. Ng, "mas quando tem protesto, é muito bom para os negócios". A barraca dela fica em Wan Chai, a alguns quarteirões do prédio do governo em Hong Kong, na frente do qual a maioria dos protestos políticos em Hong Kong acontecem.

Uma batalha por democracia se aproxima enquanto o governo de Pequim aumenta seu domínio sobre a cidade semiautônoma. Mas entre todas as mudanças políticas, Hong Kong tem uma constante cultural: o bolinho de peixe. Um petisco simples e fácil degustado por quase todo mundo aqui — Hong Kong come 55 toneladas de bolinhos de peixe por dia. E para muitos, o bolinho de peixe representa a luta da cidade para manter sua identidade cantonesa, cada vez mais erodida pelo estado comunista.

Os bolinhos de peixe de Hong Kong geralmente são feitos de amido e fritos num molho sabor peixe. Ambulantes vendem o petisco em esquinas da cidade toda, junto com outros pratos cantoneses tradicionais, como o siu mai. Os bolinhos geralmente vão por cima de macarrão de arroz num caldo com uma mistura de temperos.

Os bolinhos de peixe onipresentes são mais que apenas um lanche rápido para a cidade. O petisco iniciou uma suposta revolução em fevereiro de 2016, quando a polícia começou a fechar barracas de bolinho na área de pedestres Mong Kok por não terem licença. Aquela noite terminou com vários feridos depois de um confronto violento entre manifestantes e a tropa de choque.

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Pode parecer um catalisador estranho para protestos violentos, mas em Hong Kong, democracia — assim como bolinho de peixe — é parte do DNA cultural da cidade, onde até comer é um ato político. Hong Kong desfruta de liberdades políticas básicas e um governo semidemocrático; a cidade tem a autonomia permitida por sua própria miniconstituição, a chamada Lei Básica.

A autonomia da cidade do estado comunista é consagrada num princípio constitucional chinês chamado Um País, Dois Sistemas. Mas quanto mais democrática Hong Kong se torna, mas enfurecido e intransigente o governo de Pequim se mostra.

"O povo de Hong Kong está infeliz, Pequim está infeliz, e estamos enfrentando muitos problemas", disse Emily Lau, uma das legisladoras liberais mais antigas da cidade. "Hong Kong não pode perder sua ousadia — é preciso lidar com Pequim de forma não-violenta", disse Lau.

O Movimento Guarda-chuva de 2014, que paralisou o distrito financeiro enquanto manifestantes pediam voto universal e a renúncia do líder de Hong Kong, foi um esforço corajoso, mas não conquistou nenhum desses objetivos.

E desde a Revolução do Bolinho de Peixe em fevereiro, Pequim comunista vem corroendo a democracia de Hong Kong num ritmo vertiginoso.

"Muitos moradores de Hong Kong estão preocupados com o que aconteceu em 2015, o que começou com o sumiço de Lee Bo e os vendedores de livros", disse Maya Wang, uma pesquisadora da China para o Human Rights Watch. Lee, que vendia ficção satírica sobre o governo chinês, supostamente foi sequestrado por agentes do continente em dezembro passado.

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O incidente desencadeou uma raiva que explodiu nos conflitos de fevereiro de 2016: muita gente não entendia por que a polícia não fez nada por Lee, mas agora estava tentando fechar barracas de bolinho de peixe. Quatro outros vendedores que trabalhavam com Lee também desapareceram na época.

"Hong Kong está gradualmente sendo empurrada para Um País, Um Sistema — claro, com trepidações e medo", disse Wang. "Há uma sensação de impotência aqui em como resistir a Pequim."

Dias depois da confissão televisionada de Lee Bo, em março de 2016, a gigante do e-commerce chinesa Alibaba finalizou sua tomada sobre o jornal independente em inglês da cidade, o South China Morning Post. O jornal, antes um dos mais lucrativos do mundo sob o comando de Rupert Murdoch, começou a perder rapidamente sua independência editorial. Em novembro de 2016, o Guardian o chamou de um jornal "pró-establishment" — implicando que ele apoia abertamente o governo central chinês.

E em outubro, o jornal fechou uma revista de 25 anos que era propriedade sua, a HK Magazine, conhecida por seu conteúdo com sátira política. A última edição foi adequadamente intitulada "Adeus, e Obrigado por Todos os Bolinhos de Peixe".

Em Mong Kok, onde aconteceu a Revolução do Bolinho de Peixe, a Sra. Fan* frita bolinhos dourados em seu carrinho. Ela também vende tofu frito, que embrulha em sacos de papel gordurosos, passados num molho de pimenta salgado similar a sriracha. "Estou com medo do que vem por aí", disse ela. "Essa cidade está se tornando cada vez mais como a China."

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O maior golpe político para Hong Kong — desde que foi devolvida para a China pela Inglaterra em 1997— aconteceu em novembro de 2016, quando o governo central chinês passou por cima de decisões do tribunal de Hong Kong e depôs dois legisladores pró-democracia que defendiam a independência total da cidade.

O caso dos legisladores foi ao tribunal porque eles saíram do roteiro enquanto liam seus juramentos de posse em setembro. Eles brandiram bandeiras dizendo "Hong Kong não é a China" e se recusaram a jurar lealdade ao país comunista. Pequim rapidamente resolveu o problema por conta própria e os depôs, em vez de esperar a decisão do tribunal — uma ação sem precedentes.

"As pessoas estão desesperadas, claro — queremos mudança, mas não conseguimos encontrar uma solução eficiente", disse Icarus Wong, um analista político que trabalha na ONG Civil Human Rights Front.

A revolução de fevereiro de 2016, que desencadeou um ano de retrocessos políticos dramáticos, claro, tem pouco a ver com bolinho de peixe. Mas o futuro da identidade da cidade — que tem orgulho de seus valores democráticos — está em jogo agora, e o que vai acontecer no futuro é muito incerto.

Quando cobri a Revolução do Bolinho de Peixe para a HK Magazine (a publicação extinta) em fevereiro, monitores de direitos humanos e policiais me disseram que aquilo era apenas o começo da violência. Na época, o governo de Hong Kong até considerou comprar um tanque para controlar os protestos.

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"É importante para nós manter nossos valores — democracia, valor da lei e respeito pelos direitos humanos — porque é isso que diferencia a sociedade de Hong Kong da sociedade chinesa do continente", disse Wong.

E Hong Kong, forte em seus princípios, mas sem exército ou mesmo o direito de conduzir relações internacionais, tem poucas opções para afastar o governo central chinês.

"Não acho que a maioria de Hong Kong quer independência, e não há meios — não temos armas, aviões, comida, água", disse Lau. "Ninguém pode garantir que Pequim não se infiltre de novo, mas ainda podemos tentar fazer o melhor possível usando meios pacíficos e persuasão."

Voltando à barraquinha da Sra. Ng em Wan Chai, ela me serve um copo de papel com bolinhos de peixe por cima de chang fen — um rolo grosso de massa de arroz que ela corta com uma tesoura. Ela cobre os bolinhos com pimenta, molho de amendoim e sementes de gergelim. Seus clientes ainda estão aproveitando o tempo bom, mas enquanto a noite cai, é impossível ignorar a densidade sufocante do ar. A China vem enfrentando poluição recorde, e a fumaça está chegando agora a Hong Kong.

*Os nomes das fontes foram mudados para proteger a identidade delas.

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