Larvas, moscas e o caso dos três porcos mortos no jardim da USP
Em São Paulo, uma bióloga usa métodos mau cheirosos para pesquisar como insetospodem ajudar a polícia a solucionar crimes. Crédito: Cecília Bastos/ USP Imagens

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Larvas, moscas e o caso dos três porcos mortos no jardim da USP

Em São Paulo, uma bióloga usa métodos mau cheirosos para pesquisar como insetos podem ajudar a definir pistas sobre investigações criminais.

Maria Luiza Cavallari é indiferente ao odor da morte. Para a doutoranda em medicina legal, a morte é um meio para chegar onde quer. "Quando sinto o cheiro de podre, penso: 'tá dando tudo certo'", diz.

A bióloga de 33 anos ficou conhecida em julho quando um de seus experimentos se tornou alvo dos defensores dos direitos dos animais e virou matéria por causa do fedor que emanava dos objetos da sua pesquisa. Eram, afinal, três porcos que apodreciam nos jardins da Faculdade de Medicina da USP, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo.

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"Cheiro de morto aqui na calçada sempre teve, mas por causa do IML. Acho que o impacto dessa vez foi maior por associarem o cheiro com a visão dos animais", me disse Cavallari em seu laboratório, uma pequena sala com azulejos azul-bebê, rodeada de potes de requeijão recheados com moscas banhadas em solução de Dietrich.

Após o mestrado, ela decidiu estudar a entomotoxicologia, ramo da entomologia forense que identifica droga ou veneno por meio da análise das larvas e insetos encontradas em cadáveres. Como parte dos estudos, compilou dados sobre mortes em São Paulo e percebeu o grande número associado a overdose e envenenamento por um veneno para rato conhecido como chumbinho.

"Aí eu pensei: e se encontram um cadáver e ele foi envenenado ou usou droga. Será que tem diferença de um para outro? Será que um deles vai atrair mais insetos? As larvas vão comer menos ou mais? Vão morrer?"

Os três porcos expostos. Crédito: Cecília Bastos/ USP Imagens

E assim chegamos aos três tristes porcos mortos na faculdade de medicina da USP necessários para responder às perguntas da cientista. A um foi fornecido uma dose de chumbinho, a outro cocaína pura — fornecida pela polícia e com autorização judicial —, e um terceiro ficou como controle, ou seja, não recebeu nada.

Da rua era possível ver uma das gaiolas coberta por um plástico branco, que deixava à mostra um pedaço do bicho morto. E a exposição do experimento permitiu que alguém gravasse um vídeo e enviasse para a Anda (Agência de Notícias de Direitos do Animais), que publicou uma matéria com um print do currículo lattes, foto e email da bióloga.

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Ela então conheceu a fúria dos haters que bombardearam seu email com ofensas e críticas. Cavallari aguentou firme, com a consciência tranquila — o experimento havia passado pelo comitê de ética da universidade. Além disso, é um tipo de pesquisa em que o uso de animais é imprescindível.

Essa "sucessão entomológica" permite aos peritos ter maior precisão do dia da morte, o que pode ser usado em um julgamento para condenar ou inocentar um suspeito

O estudo estava circunscrito ao campo da entomologia forense, que usa insetos para identificar a data e o local da morte de um corpo em decomposição, um instrumento usado em investigações criminais. "Em geral, depois de 72 horas o médico-legista começa a ter dificuldades para precisar quando foi a hora em que a pessoa morreu. Aí que entram os insetos. Logo após a morte, a mosca vem e bota ovo. Ela sempre vai se desenvolver da mesma maneira: coloca o ovo, o ovo eclode, vira larva, depois pupa (o casulo) e então emerge o adulto", explica.

Mais: o corpo em decomposição vira um pequeno ecossistema no qual diferentes moscas chegam em diferentes estágios de putrefação, algumas com interesse em sangue ainda fresco; outras para predar as larvas das espécies pioneiras e, por fim, algumas que vêm quando quase não há mais carne podre. Essa "sucessão entomológica" permite aos peritos ter maior precisão do dia da morte, o que pode ser usado em um julgamento para condenar ou inocentar um suspeito.

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Crédito: Cecília Bastos/ USP Imagens

Em 2009, durante o mestrado, a pesquisadora também teve que usar animais. Ela comprou dois leitões, que vieram mortos, e os colocou em duas regiões bem distintas: um na própria USP e outro em Jureia, no litoral sul de São Paulo. A intenção era identificar os "marcadores" (espécies endêmicas de cada região), para ajudar na construção de um banco de dados que vai determinar de onde vem cada inseto. O objetivo também é pericial: saber de onde vem a mosca vira uma pista para definir se o local no qual o cadáver foi encontrado é o mesmo em que ele foi morto.

Cavallari está tão acostumada a mortes, carcaças e moscas que não se afeta quando explica os detalhes da pesquisa.Por exemplo: no verão, como é mais quente e úmido, a decomposição é mais rápida. "Na Jureia, coletei três mil insetos e depois acabou o corpo. Ficou só o esqueleto. No inverno, foram quatro mil ao longo de 15 dias."

Maria Luiza ainda não tem os resultados da nova pesquisa, mas a sala onde trabalha ostenta uma generosa coleção de moscas transpassadas por alfinetes dispostas dentro de maletas marrons.

Crédito: Cecília Bastos/ USP Imagens

"Agora vou ver se teve diferença quantidade de insetos atraídos e nas larvas que se alimentaram de cada uma das carcaças. E se houve alguma modificação nas larvas que viraram mosca", diz. A intenção é ver se a substância ingerida antes da morte altera de alguma maneira a atração e a formação dos insetos.

Paradas e mortas, as varejeiras até parecem simpáticas. Cavallari pode não manifestar muita ternura pelos leitões, mas os insetos quebram o gelo técnico da pesquisadora. "As moscas são o meu xodó", diz. "Você tem que ver como elas ficam bonitas na lupa."

Crédito: Cecília Bastos/ USP Imagens