Publicidade
Mubin Shaikh: Você está lidando com um movimento social. Isso vai além de um grupo terrorista. E movimentos sociais têm narrativas de queixa. E a razão para essa narrativa influenciar as pessoas é porque ela é baseada em fatos. Isso pode ser a maneira como eles interpretam esses fatos, mas, quando eles dizem que a luta deles é contra as políticas estrangeiras dos países ocidentais, particularmente os bombardeios a países muçulmanos – eles estão falando a verdade.Quando eu estava envolvido com esses grupos em 1995, assistíamos a fitas e depois DVDs [de propaganda jihadista]. Você está sentado em frente à TV ou à tela de um computador, assistindo a essas imagens várias vezes – isso te traumatiza. Seus olhos ficam sobrecarregados com imagens de morte, destruição, assassinato, tortura e opressão [de muçulmanos].
Publicidade
Isolamento e marginalização. O contexto na América do Norte é diferente do da Europa. Na Europa, isso é muito pior, especialmente na França. A França foi um colonizador do norte da África, particularmente da Argélia. Colonizadores tendem a não conseguir integrar bem populações colonizadas em suas próprias sociedades. Logo, há níveis altos de desemprego, falta de oportunidade – é isso que acontece. Não estou dizendo que a pobreza causa terrorismo, porém o que é pobreza além de falta de oportunidade? Então, para aqueles que enfrentam essa falta de oportunidade, há poucas opções além de se voltar para o submundo do crime. É muito fácil recrutar jovens que vivem nessas condições para o extremismo. E não é coincidência que a França tenha o maior número de combatentes estrangeiros na Síria.
O que tenho feito é me envolver diretamente com esses indivíduos, e minha abordagem é o que chamo de "pró-Islã, antiterrorismo". Dizemos claramente: as fontes islâmicas nunca permitiram violência contra civis em espaços públicos. Não há exceção para isso. É proibido.
Publicidade
Sim. Acho irônico como o ISIS e tipos como os novos ateístas, tipos antimuçulmanos, citam os mesmos versos da mesma maneira. Eles dizem: "O Islã é terrorista, e esse versículo prova isso". Então eu lembro a eles que eu também acreditava nessas coisas. Eu costumava citar os versículos da mesma maneira que eles. Portanto, eu fazia a mesma coisa com o Capítulo 9, Versículo 5. Eu dizia: "Olha o que o versículo diz: 'Mate os kuffar, onde quer que eles estejam'". Mas não é o que o versículo realmente prega. Isso é parte de um capítulo inteiro. E esse trecho diz: "Al-Mushirikin". Isso fala sobre politeístas. Quando o estudioso na Síria estava tentando me desradicalizar, ele me falou: "Você realmente começa a ler um capítulo pelo versículo 5? Talvez você devesse começar pelo versículo 1. Sei lá, só uma ideia".O Versículo 1 fala sobre "Os politeístas… Isso é sobre os politeístas com quem havia um tratado e que violaram o tratado". O Versículo 4 cita: "Não estão incluídos nessa instrução os politeístas que mantiveram o tratado, que não te atacaram e participaram de violência contra você. Mantenha os termos do acordo com eles". Isso deixa tudo muito claro. O conteúdo é muito específico; ou seja, os que estão lutando fazem isso ilegalmente, pois são muçulmanos. Nesse contexto, os politeístas estavam lutando contra os muçulmanos porque eles eram muçulmanos, porque eles obedeciam a um só Deus. Assim, você vê que [o Estado Islâmico] distorceu isso completamente. Agora, eles aplicam esse versículo para incluir judeus e cristãos.
Publicidade
Com certeza. Eles escreveram isso num manifesto chamado Bandeiras Negras de ROMA, em que dizem "Vamos eliminar a zona cinza da coexistência" e criar uma vida tão difícil para os muçulmanos, isolá-los, revoltá-los e marginalizá-los ainda mais, a fim de que eles se voltem para a violência. Esse é o objetivo deles. A triste realidade é que você tem pessoas da direita obedecendo diretamente às ordens do ISIS, porque eles estão fazendo o trabalho para eles.
Publicidade
Essa é uma razão para eu dizer que tive fatores protetores na minha história. A razão para eu não ter partido para a violência foi porque eu tinha meus dois pais. Claro que havia tensão quando eu era adolescente, mas tivemos sempre uma relação positiva e eu tive algum treinamento religioso, uma boa educação, eu não fui humilhado nem sofri bullying. Não é surpresa para mim que eles tenham visto isso nesses caras. Isso acontece principalmente com pessoas de famílias disfuncionais. A síndrome do pai ausente que vemos é comum no crime jovem de todo tipo: branco, negro, asiático. Isso transcende raça, cultura e religião. Quando o pai não está lá, você vai encontrar evasão escolar, você vai encontrar delinquência.Outra coisa que vemos é que eles não tiveram uma boa criação religiosa. Há várias entrevistas de desertores do ISIS, de prisioneiros que foram libertados, e eles comentam: "Essas pessoas… Elas nunca viram um Corão, nunca os vi orando, eles são analfabetos religiosos". E isso não é surpresa, porque eles têm um ódio estabelecido antes de a ideologia entrar. Você já tem essa raiva, você já é revoltado com o mundo, e você vai encontrar alguma coisa que valide isso e te dê uma justificativa para sua raiva.
Publicidade
Isso pode ajudar, mas devo apontar que, na audiência do Senado sobre radicalização, no Quebec especialmente, foi mostrado que 75% dos casos de extremismo não são motivados por religião – são casos de supremacistas brancos. Assim, acho que o centro de desradicalização deve ter uma abordagem ampla para lidar também com extremistas de direita, além de extremistas religiosos. Não queremos abordar apenas um grupo. Se realmente queremos reverter o extremismo violento, é preciso incluir todos os grupos que caem nessa categoria.Quebec parece mesmo ter um problema com uma certa porcentagem de jovens muçulmanos radicalizados; então, também há muita islamofobia. O que deveria ser feito lá?
O contexto de Quebec está profundamente ligado com o contexto francês. E o governo local tem controle sobre suas políticas de imigração. Eles trazem muçulmanos falantes de francês principalmente do norte da África, dos países árabes colonizados pela França. Logo, já há essa narrativa de queixa, e isso alimenta alguns indivíduos radicalizados, e existe um grupo assim no Quebec. Também não ajuda o fato de eles terem uma união simbiótica com os anti-islâmicos, pois eles alimentam um ao outro.
Publicidade
Trabalhei como agente do Serviço Canadense de Inteligência de Segurança em várias investigações, algumas delas online, procurando recrutadores em salas de bate-papo, pessoas sendo recrutadas, identificando ameaças nesse contexto – e, claro, diretamente, me infiltrando em grupos e coisas assim. Em muitos casos, isso envolvia absolver pessoas de acusações falsas de envolvimento com extremistas.Ter trabalhado como agente prejudicou sua credibilidade na comunidade muçulmana?
O público e a comunidade muçulmana canadense em geral estão em negação diante da radicalização da juventude muçulmana. Não conseguimos acreditar que isso possa acontecer aqui porque o Canadá é um país ótimo, somos tolerantes, etc. Coisas ruins não acontecem com pessoas boas, certo? Claro que acontecem; além disso, mesmo nas sociedades mais tolerantes, você vai ter pessoas que são marginalizadas e que buscam uma ideologia que lhes dê uma sensação de propósito, de pertencimento e de identidade – e não dá para competir com isso, você precisa lidar com isso. Eu entendo a mentalidade de cerco que a comunidade muçulmana sente. Acho que isso explica por que eles negam o que aconteceu no caso de Toronto [18]. Há muita desinformação. Fui acusado de armação, e isso é simplesmente impossível, porque eles já tinham a trama em mente, eles já tinham alugado o local para o acampamento de treinamento, eles já tinham convidado todas aquelas pessoas para irem ao acampamento. E isso foi antes que eu me infiltrasse no grupo.Descobri dois anos depois que o CSIS já sabia tudo sobre isso 12 dias antes de me mandarem. Assim, é impossível que isso seja uma armação. Mas tenho de dizer: sete pessoas foram inocentadas por causa do meu testemunho. O governo queria retratá-las como caras com treinamento barra-pesada. E eles não eram. Eles eram amadores. Sim, eles tinham esses pensamentos sublimes de invadir o Parlamento, sequestrar os membros e cortar a cabeça deles, porém não havia como eles realizarem isso.Agora a comunidade muçulmana começou a entender. Eles estão percebendo que "Vamos perder nossos filhos, vamos ter de responder sempre que houver um ataque, vamos sempre ter de dizer que o Islã não tem nada a ver com terrorismo". No entanto, agora é preciso que a comunidade muçulmana estabeleça essa ideia, que entenda que somos as pessoas mais perto disso, somos a vítima número um disso – dos dois lados – e podemos trazer uma solução melhor para todos.Esta entrevista foi editada em extensão e contexto.Siga o Aaron Maté no Twitter.Tradução: Marina Schnoor.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.