Cozinhar com sangue me convenceu a deixar de ser vegetariana

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Cozinhar com sangue me convenceu a deixar de ser vegetariana

Entendi como um pouco de sangue no meu estômago pode significar menos sangue em minhas mãos.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Alpes.

Um dia, quando eu tinha nove anos, decidi não tocar num pedaço de frango que estava no meu prato. Bem ali, percebi que se eu realmente amava os animais e os considerava meus amigos, eu tinha que parar de comê-los. Assim me comprometi com a causa — daquele dia em diante, boicotei qualquer coisa que meus pais tentavam me dar que tivesse carne ou peixe. Com os anos, achei razões mais complexas para ficar longe da carne, então sou vegetariana e parcialmente vegan há 15 anos.

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Isso mudou quando conheci Laura Schälchli. Laura é uma especialista em alimentos de 34 anos que investiu metade de sua vida em questões políticas e morais levantadas pelo modo como nos alimentamos. Ela estava estudando Gestão de Design em Nova York e trabalhando como garçonete meio período quando se interessou pela cultura da comida. Ela seguiu esse interesse na Universidade de Ciências Gastronômicas (UNICG) na região de Piedmont na Itália. Aquela escola focava na relação entre comida e cultura, e foi fundada por Carlo Petrine, o mesmo cara que fundou o Movimento Slow Food.

Depois da UNICG, ela se tornou presidente da Juventude Slow Food da Suíça, e começou a lançar vários restaurantes pop up. Ela também dá palestras e oficinas sobre como podemos expandir nossos hábitos alimentares — e foi assim que entrei em contato com ela. Minutos depois que atendeu o telefone, Laura rapidamente demoliu meu sistema de crenças.

Não entendo como alguém pode ser vegan ou qualquer tipo de comedor consciente comprando chocolate e banana.

"Não entendo como alguém pode ser vegan ou qualquer tipo de comedor consciente comprando chocolate e banana", ela disse. "Todo mundo sabe que as condições nas fazendas de banana e cacau são desumanas para os trabalhadores." É verdade, eu sei que é quase impossível achar uma barra de chocolate que não seja resultado de trabalho infantil e escravidão, e sei que trabalhadores da indústria da banana enfrentam os mesmos tipos de condições. Como a escritora Joanna Blythman escreveu para o Guardian: "Os trabalhadores [das fazendas de banana] geralmente vivem em barracos lamentáveis perto da plantação, ou viajam de ônibus por horas para trabalhar um dia longo e punitivo. Pagos por produção, eles têm que trabalhar até cair para conseguir o suficiente para sobreviver". Enquanto isso, o preço que você paga por uma maçã ou pera cultivada localmente em muitos supermercados da Inglaterra [e até mesmo aqui no Brasil] é mais que o dobro do preço das bananas que vêm do outro lado do mundo.

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Sabendo disso, seria muito mais justo e sustentável comer ocasionalmente uma peça de carne orgânica de uma vaca local, em vez de todas as bananas e barras de chocolate que engoli nos últimos 15 anos.

Laura acredita que pessoas que comem carne devem se comprometer a consumir o animal inteiro — incluindo o sangue. Usar sangue em pratos é uma tradição milenar, mas mesmo que você já tenha experimentado chouriço, esse tipo de coisa vem se tornando cada vez menos popular com os anos. Nas aulas que Laura dá em Zurique, na Suíça, ela ensina sobre degustação de vinho ou missô, mas também faz oficinas sobre cozinhar com sangue. No telefone, ela disse que achava que era hora de uma vegetariana obstinada como eu reconsiderar comer o que eu comia. E como eu tinha perdido a última oficina, ela me convidou para ir à casa dela em Zurique para preparar uma de suas receitas sangrentas.

O sangue com que Laura e eu vamos cozinhar é de uma fonte garantida — Laura compra o sangue de sua fazenda favorita, nos arredores de Zurique. Os donos são Claudia e Nils Müller, que anestesiam e abatem os animais no pasto. Então, em vez de ser transportado para um matadouro a horas de distância e se estressar no caminho, o gado é abatido num cenário familiar. Nils e Claudia são os primeiros fazendeiros da Suíça a obterem permissão para fazer esse tipo de abate — uma permissão que foi dada em maio de 2016.

Assim acabamos na casa da Laura com uma garrafa de sangue morno, que horas antes ainda estava pulsando nas veias de um novilho feliz de dois anos. Laura abre a garrafa e prova o líquido vermelho, que parece um pouco com suco de beterraba. Me vejo colocando uma colher de chá de sangue na boca momentos depois, e imediatamente fico com nojo. Isso não é suco de beterraba, é sangue. Conheço o gosto do meu próprio sangue (não sou tão militante assim para não lamber o sangue quando machuco as cutículas), mas isso claramente não tem o mesmo gosto. É o sangue de um animal. Não tem gosto de nada.

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Laura explica que um porco abatido resulta em 2,5 litros de sangue, enquanto um novilho, como o nosso, perde 4,5 litros de sangue. Isso geralmente acaba virando ração ou indo para a indústria farmacêutica, mas você também pode fazer ravióli com sangue, que é a receita que vou preparar com a Laura.

Vamos preparar a receita com Vin Cuit — vinho quente suíço. A receita é a interpretação de Laura do prato tradicional de Vin Cuit com cebolas. A primeira coisa que Laura me pede para fazer é sovar a massa, o que é um alívio. Misturo farinha, gema de ovo e óleo na massa. Conforme acrescento o sangue, a massa fica com uma cor magenta brilhante. Ainda assim, é fácil esquecer que estou trabalhando com um fluído corporal que mantinha um animal vivo até hoje de manhã.

Laura também faz oficinas com crianças. "Vejo muitas crianças que têm medo de tocar na comida, o que é um choque para mim", ela diz. "Quando precisam passar pedaços de fruta da tábua de corte para uma tigela, muitas delas usam os talheres em vez das mãos." Segundo Laura, isso mostra que somos criados para manter distância da nossa comida — especialmente quando consideramos que as crianças geralmente tocam tudo o que conseguem no dia a dia.

O sangue tem um ponto de ebulição baixo, então temos que aquecer o líquido com cuidado. O sangue vai se tornando cada vez mais grosso durante o processo e enquanto mexo a panela, não consigo parar de pensar no animal que deu sua vida pelo meu ravióli.

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Enquanto isso, Laura colocou a massa na máquina de macarrão e já está pronta para fazer os raviólis. Ela também prepara um recheio de ricota misturada com sangue, e diz que a ricota suaviza o gosto do sangue. Isso com certeza ia me ajudar a comer o ravióli sem pensar tanto em morte e horror. Finalmente, ela joga os raviólis na panela com água, sal e manteiga de sálvia.

Já estou faminta quando Laura e eu nos sentamos para jantar com o fotógrafo Raphael Erhart. Laura me olha curiosa enquanto mastigo meu primeiro pedaço de ravióli de sangue. Não sinto o gosto de nada estranho — não tem um sabor tão metálico como a Laura disse que teria. A imagem de um boizinho inocente de olhos grandes ainda aparece na minha cabeça, mas não me incomodo tanto. Raphael claramente luta mais que eu com a ideia de comer sangue.

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Mas sim, ficou muito gostoso. Noto que fico passando a língua nos dentes para ver se tem algum sangue preso — até lembrar que só estou comendo massa e não sou o Eric Northman. Me sirvo um segundo prato, e tenho que dizer que prefiro o ravióli de ricota ao de Vin Cuit. O novilho na minha cabeça dá um suspiro desapontado.

Posso ter traído o boizinho, mas parece que não traí meu sistema digestivo — sobrevivi no dia seguinte sem nenhum desconforto físico. E posso dizer agora que depois de 15 anos evitando carne religiosamente, não sou mais restritamente vegetariana. Se eu souber de onde veio o sangue, a carne ou os miúdos e como o animal morreu, vou comer. Da mesma maneira, vou cortar bananas da minha dieta se elas não vierem de uma fonte justa e reduzir drasticamente meu consumo de chocolate, abacate, quinoa e outras coisas deliciosas que podem não me deixar com sangue no estômago, mas me deixam com um pouco de sangue nas mãos.

Tradução do inglês por Marina Schnoor.

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