Vinte Anos em Zonas de Guerra com Jack Picone

FYI.

This story is over 5 years old.

Viagem

Vinte Anos em Zonas de Guerra com Jack Picone

Ele é o cara para quem você pergunta como é ser ferido com estilhaços na Armênia, a diferença entre guerras rebeldes e guerras tradicionais, e a importância da fotografia documental.

Jack Picone é um fotojornalista premiado que vive em Banguecoque e vem cobrindo zonas de guerra desde os anos 1990. Picone viajou pelo Oriente Médio, Leste Europeu e África – onde cobriu o Genocídio de Ruanda em 1994, quando mais de um milhão de pessoas foram assassinadas. Resumindo, ele é o cara para quem você pergunta como é ser ferido com estilhaços na Armênia, a diferença entre guerras rebeldes e guerras tradicionais, e a importância da fotografia documental.

Publicidade

VICE: Oi, Jack. Para começar, qual foi o primeiro conflito que você fotografou, quantos anos você tinha e o que te fez ter certeza de que queria estar nesse tipo de posição?
Jack Picone: Oficialmente, foi a Primeira Guerra do Golfo, mas fiquei pouco tempo em Bagdá. Fui preso pela polícia secreta iraquiana e deportado para a Jordânia por fotografar tropas iraquianas cruzando a fronteira com o Kuwait.

Meu verdadeiro "batismo de fogo" foi durante a guerra Nagorno-Karabakh, do final dos 1980 até metade dos 1990, na Armênia, então acho que eu tinha uns 29 ou 30 anos. Eu me sentia atraído por esse trabalho muitos anos antes de estar finalmente preparado para ir. Acho que eu queria me desafiar; queria encarar todas essas coisas e ver se conseguia manter a cabeça no lugar – literal e metaforicamente.

Você disse que demorou um tempo para se decidir, o que foi responsável pelo empurrão final nessa direção?
O catalizador final foi um livro chamado As I Walked Out One Midsummer Morning, de Laurie Lee. É sobre um jovem em 1943 que sai de sua casa em Cotswolds, Inglaterra, com um violino para encontrar seu destino e acaba na Espanha. Lee realmente capturou a atmosfera da Espanha que viu, colorida por seu idealismo juvenil. Ele pintou um retrato real de um país violento e da guerra civil espanhola enquanto ela acontecia.

Essa é uma reação muito romântica a uma escolha muito perigosa. Você se considera um viciado em adrenalina?
As pessoas sempre dizem que os correspondentes vão para as guerras porque são viciados em adrenalina – isso não se aplica a mim. Claro, zonas de guerra são carregadas de adrenalina, mas, na verdade, é isso que permite pensar com clareza em situações tão perigosas.

Publicidade

Numa dessas zonas de guerra, você se viu na mira de um francoatirador. O que passou por sua cabeça naquela hora?
Sim, esse foi o "batismo de fogo" que mencionei na Guerra Nagorno-Karabakh na Armênia. Foi uma experiência muito surreal porque foi a primeira vez em que estive num tiroteio. Eu me protegi das balas e das bombas deitando num buraco raso. Lembro de ter pensando: já tenho uma cova.

Olhei em volta e um soldado armênio atirou contra o atirador e gritou para que eu corresse até ele. Eram só um 80 metros, mas a corrida pareceu demorar uma eternidade. Tomei alguns estilhaços na parte de baixo das costas e na cabeça, mas nada sério.

Essa foi a única vez em que você achou que ia morrer?
Ah, não. Eu deveria ter morrido pelo menos umas cinco vezes. Uma vez, encarei uma multidão em Ruanda que queria matar eu e meus colegas belgas. Um soldado sudanês colocou uma pistola na minha cabeça e gritou que ia puxar o gatilho. É um milagre eu ter escapado nessas duas vezes; a multidão e o soldado estavam empenhados mesmo em me matar.

Você já trabalhou em muitas zonas de conflito: Israel, Angola, Ruanda, Somália, Sudão, Libéria, Serra Leoa, Ásia Central Soviética e ex-Iugoslávia. Pode-se dizer que a maioria desses conflitos não eram guerras convencionais, com soldados lutando por milícias, facções rebeldes lutando entre si ou contra unidades regulares do exército. Isso afeta seu trabalho em campo?
Definitivamente. Nesses tipos de guerras, você não está incorporado a um dos lados, como seria no Iraque e no Afeganistão. Em guerras rebeldes e de milícia, em teoria, não é possível cobrir os dois lados – ou em alguns conflitos, múltiplos lados.

Publicidade

Claro, isso pode deixar você vulnerável a ser acusado de espião quando cruza as linhas inimigas. Nos conflitos menos estruturados do mundo em desenvolvimento, você tem mais liberdade para se mover e contribuir para reportagens menos censuradas. No entanto, é muito mais fácil um fotógrafo de guerra "desaparecer" numa dessas guerras menos estruturadas.

Durante muitos dos conflitos africanos que cobri, fotógrafos foram mortos em bloqueios de estrada, por soldados entediados que muitas vezes estão bêbados ou drogados. O porquê não é um mistério: correspondentes de guerra em geral carregam mais dinheiro em forma de equipamentos do que um soldado rebelde esfarrapado já viu na vida.

Muitos fotojornalista falam da "foto que não fizeram". Você tem uma dessas?
Essa é uma pergunta difícil. Não lembro de nenhuma situação assim – apesar de ter fotos de que me arrependo de ter tirado. Em uma ocasião, eu me vi caminhando sobre cadáveres num vestíbulo de uma igreja em Ruanda. Eu conseguia sentir os corpos sendo esmagados embaixo dos meus pés. Fiquei mortificado e a experiência foi horrível. Era como andar sobre esponjas molhadas e o cheiro era pútrido.

Só consigo lidar com a culpa e o arrependimento focando no fato de que eu estava documentando algo extraordinariamente importante, a evidência de um genocídio.

E alguém já tentou impedir você de tirar essas fotos?
Algumas fotos foram retiradas de mim, sim. Em 1991, entrei em Gaza no porta-malas de um carro com a Organização de Libertação da Palestina. Fiz isso porque não queria ficar oficialmente ligado ao Exército Israelense.

Publicidade

Lá, testemunhei soldados israelenses perseguindo um garoto palestino num mercado; a perseguição terminou com eles atirando no menino pelas costas. Foi um ato desnecessário e covarde, e eles me viram fotografar isso. Tentei correr, mas me pegaram. Eles tomaram minhas câmeras e o filme, e me deportaram para Israel. No aeroporto de Jerusalém, eles me entregaram o filme processado por E-6 e me disseram para nunca mais voltar. Acho que essa é uma foto que me arrependo de nunca ter visto.

Você recebeu suas câmeras de volta com o filme processado, mas as fotos tinham sumido?
Sim, o Exército Israelense é famoso por esse tipo de coisa. No aeroporto, eles seguraram o filme processado contra a luz e me mostraram quais seções tinham cortado. Era uma maneira de me desmoralizar.

Eles fizeram algo parecido com Stephen DuPont: eles ligaram a máquina de raio-X no máximo enquanto escaneavam o filme, cozinhando e arruinando todas as fotos. Eles são muito vingativos, mas não estou reclamando, é tudo parte do jogo.

Muitos correspondentes de guerra já foram sequestrados, feridos gravemente ou mortos enquanto relatavam conflitos. Como você se prepara para esse tipo de ameaça quando entra numa zona de guerra?
Há muitos cursos bons disponíveis hoje para jornalistas de conflito, assim como treinamento militar como reservista ou soldado normal. Aconselho qualquer fotógrafo que pense em ir para a guerra que faça um desses. Muita coisa é instinto. No entanto, em ambientes extremos e não racionais, não importa que você tenha PhD se um soldado louco com uma AK-47 quiser explodir sua cabeça.

Publicidade

Você testemunhou muitas atrocidades e genocídios, especialmente em Ruanda. Como você separa suas emoções do trabalho?
Os correspondentes de guerra existem numa escala entre aqueles que insistem que não são afetados e aqueles profundamente traumatizados pelos eventos. Separar suas emoções é um pouco mais fácil na hora de autorizar as imagens, porque um fotógrafo tem um papel tão importante a representar numa zona de guerra quanto um jornalista.

Os problemas emocionais vêm mais tarde, sugerindo que aqueles que dizem que isso não os afeta estão errados. Depois de Ruanda, fiquei num choque profundo. A ressaca emocional de ter testemunhado um genocídio não pode ser descrita. Eu disse a meus amigos que não tinha sido afetado pelo que vi, mas depois comecei a ter pesadelos que continuaram por oito anos. Eu me automediquei com álcool e drogas, o que só prolongou o problema.

Ainda hoje não me conformo com o que testemunhei, mas não tento mais controlar minhas emoções com álcool e drogas. Tento simplesmente coexistir com elas.

Como você explica seu trabalho para sua família?
Para meus filhos eu não explico, não quero vinculá-los a isso. Minha esposa é jornalista; ela entende por que faço o que faço. Dito isso, sou muito mais seletivo em ir para zonas de guerra agora e não vou se não achar que há algo realmente importante que precisa ser mostrado.

É simplesmente uma lei de probabilidades: cedo ou tarde você será ferido. Morrer nunca foi meu medo nas zonas de guerra; meu medo é ser mutilado, cegado ou desfigurado e me tornar um fardo para minha família.

Publicidade

Na última década, você tem documentado a pandemia de HIV e AIDS nas Montanhas Nuba no Sudão do Sul, Tailândia, Austrália e na fronteira de Hong Kong; você tem trabalhado com o Terrence Higgins Aids Trust de Londres. Fale mais sobre isso.
Nos últimos anos, fotografei diversas histórias de HIV e AIDS em todo o mundo para a Terrence Higgins. Esse é o trabalho mais importante e significante de minha carreira.

Isso tem um conceito visionário, um balanço ético na execução e é algo de muita necessidade para aqueles que vivem com HIV e AIDS. As histórias são íntimas, emocionais e permitem que o público se conecte com o assunto. Para mim, isso confirmou a importância da fotografia em neutralizar o estigma e criar a conscientização.

Que fotógrafos são uma influência para você?
Há fotógrafos que admiro, mas poucos que realmente me influenciaram. Mesmo que a influência de colegas seja considerada a norma, eu me vejo mais influenciado pelas pessoas e histórias que documento.

Que conselho você daria para outros fotógrafos?
Para ser um grande fotógrafo você precisa viver, respirar, amar e odiar isso; mas nunca se render a isso.

Siga o Bradley no Twitter: @HennyWilliams

Um homem é baleado pelos soldados do MPLA durante a guerra civil mais longa de Angola. O MPLA estava recrutando aldeões à força. O homem metralhado tinha se recusado a se juntar ao MPLA.

Combatentes muçulmano-bósnios sob fogo cruzado. Norte de Tulsa, ex-Iugoslávia.

Rebeldes kamajor. Devido às suas práticas animistas, eles acreditam que não podem ser mortos por balas ou morteiros. Serra Leoa.

Rebeldes kamajor. Devido às suas práticas animistas, eles acreditam que não podem ser mortos por balas ou morteiros. Serra Leoa.

Um dos muitos locais de matança ao norte de Kigali. Ruanda, 1994.

Andrew Knox era um heterossexual hemofílico de 28 anos de Sydney, Austrália. Ele foi diagnosticado com HIV quando tinha 14 anos, depois de receber uma transfusão. Ele acabou desenvolvendo demência ADC-AIDS, uma das manifestações mais temidas e menos compreendidas da AIDS. Andrew morreu em 16 de janeiro de 1999.

Milícia civil ao sul de Kigali. Ruanda, 1994.

Moradores tentam se proteger durante um combate na mais longa guerra civil angolana. Cuito, Angola.

Bomba explode nas proximidades (de uma base hútu), enquanto as tropas da RPF avançam para Kigali durante o genocídio em Ruanda.

A mulher segurando o próprio pescoço acabou de confessar aos soldados da RPF (na porta) ter matado pessoalmente sete tútsis. Ela foi presa junto com a milícia patrocinada pelo governo responsável pelas mortes em massa no distrito de Gikoro. Ruanda, 1994.

Tútsis feridos refugiados numa escola em Ruhengeri. Ruanda, 1994.