Dei um tiro impensado que me rendeu 27 anos de cadeia
Ilustração por Tyler Boss.

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Relato

Dei um tiro impensado que me rendeu 27 anos de cadeia

Implorei pra ele, de moleque pra moleque: “Por favor, não morre. Por favor, não morre”.
TB
ilustração por Tyler Boss
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Matéria originalmente publicada em colaboração com o Marshall Project.

Em breve, vou sair da prisão pela primeira vez em 27 anos. Estou me preparando para esse dia há muito tempo, e sei exatamente como será: minha esposa vem me buscar nos portões de Sing Sing, e vamos de carro até Hudson Link, o programa de faculdade para detentos que me ajudou a conseguir meu bacharelado. Eles têm um computador e um terno esperando por mim. Depois vamos até o Departamento de Trânsito; estou estudando para tirar minha carteira de motorista. Li que demora muito para conseguir qualquer coisa lá, mas espero terminar tudo em tempo de buscar meu filho na escola.

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Enquanto isso, estarei pensando em Tremain Hall. E no garoto que eu era décadas atrás, antes de ser preso.

Eu tinha 14 anos quando meus pais se divorciaram. Meu pai e eu nos mudamos de um bairro de classe média em Laurelton, Queens, para um conjunto habitacional em Jamaica, Queens. Era uma comunidade forjada sob os símbolos típicos dos guetos urbanos: tênis pendurados nas linhas de telefones, ruas sujas com parafernália de uso de drogas e apartamentos decadentes.

"Você se via lutando para conseguir sobreviver. Fosse vendendo drogas, roubando carros, assaltando vizinhos"

As pessoas se sustentavam como podiam. Se você não tinha sorte de conseguir um emprego das 9 às 17h, e às vezes mesmo se tinha, você se via lutando para conseguir sobreviver. Fosse vendendo drogas, roubando carros, assaltando vizinhos – jovens e velhos estavam envolvidos nessa luta.

Para garotos ingênuos, esses meios de vida eram estimulantes, revigorantes e até excitantes. A motivação dos colegas rendia uma adrenalina eufórica que acompanhava o risco, nos levando mais fundo a cada dia. Rapidamente fui assimilado nesse novo mundo onde garotos de bolsos vazios e olhos agressivos podem comprar a última moda e atrair as garotas mais bonitas.

Relato de um PM

Mas em dois anos, o estilo de vida se voltou contra mim. Enquanto eu estava sentado no cruzamento entre a 150th Street e a 89th Avenue com alguns amigos, uma moto virou a esquina e acelerou na nossa direção. O carona puxou uma arma e abriu fogo.

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"Acordei no hospital com tubos saindo de quase todos os buracos do meu corpo; levei quatro tiros"

Acordei no hospital com tubos saindo de quase todos os buracos do meu corpo; levei quatro tiros. Meu pai estava do meu lado, suas feições geralmente severas suavizadas por uma emoção que eu nunca tinha visto antes. Enxugando as lágrimas, ele me perguntou o que tinha acontecido. Tentei explicar, mas não havia muito o que dizer. Ele sempre me avisou sobre o que acontecia nessa parte da cidade, mas não ouvi e não tinha uma desculpa. Em vez disso, decidi me desculpar e prometer que ele nunca mais me veria naquela situação de novo.

Meu pai fez que sim. Depois colocou a cabeça entre as mãos e sussurrou: “Por que isso está acontecendo comigo?”. Fiquei confuso. “Nada aconteceu com você, pai. Aconteceu comigo”, pensei. Levaria muito tempo para eu entender como ele se sentiu – uma dor que vem de confrontar alguém que você ama tanto que sente a dor da pessoa visceralmente como sua, apagando os limites corporais que te separam. É uma dor que vem de perceber que você falhou em proteger alguém que jurou que protegeria – talvez iludido achando que podia. Era uma dor de um pai que quase perdeu o filho.

"Eu tinha um medo persistente da morte, paranoia onde quer que fosse e era cético com todo mundo que conhecia"

Duas semanas depois, recebi alta. Minhas feridas estavam começando a fechar, mas o trauma ainda era novo. Eu tinha um medo persistente da morte, paranoia onde quer que fosse e era cético com todo mundo que conhecia. Como o homem que me atacou não tinha nome, rosto ou motivo, ele tinha todos os nomes, todos os rostos, todos os motivos. Sem mencionar que era 1990 e o crack rendeu o ano mais mortal da história de Nova York. Os assassinatos bateram o recorde de 2.245, quase três vezes o número que fez Chicago liderar o ranking de homicídios nos EUA em 2016.

Com o tempo, minha ansiedade se tornou insuportável. Eu nunca mais seria pego desprevenido. Eu não seria mais uma estatística.

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Então, comprei uma arma.

No momento em que segurei a arma nas mãos, me senti empoderado. Pela primeira vez, achei que podia garantir minha própria segurança. Eu não tinha intenção de dispará-la – eu sabia que era uma mera presença, reforçada pelo meu exterior durão, criando uma ameaça que ninguém iria testar. Eu não seria uma vítima de novo.

Mais tarde naquele ano, na noite de Natal, fui ao cinema com alguns amigos. Uns 15 minutos depois que chegamos, outro grupo de adolescente entrou fazendo barulho. Outros no cinema começaram a gritar para eles ficarem quietos. Meus amigos se juntaram a eles, e logo estávamos trocando ofensas. Os garotos partiram para cima de nós. Um deles puxou sua arma e disparou na sala de cinema escura e lotada.

"Mais de vinte tiros foram disparados […] E naquele momento, o tempo parou. Pensei na promessa que fiz ao meu pai de não me meter em confusão"

Em segundos, mais de vinte tiros foram disparados nas duas direções. E naquele momento, o tempo parou. Pensei na promessa que fiz ao meu pai de não me meter em confusão, junto com a promessa que fiz aos meus amigos de defender nossa honra. Logo, enquanto a fumaça enchia a sala e depois de uma rápida sucessão de estampidos, veio um silêncio ensurdecedor, e eu dei um tiro cego.

Saí correndo do cinema e fui para casa. Liguei a TV no jornal para ver se eles estavam cobrindo o incidente. Quatro pessoas inocentes ficaram feridas, uma delas em estado grave. Implorei a ele, de moleque para moleque: “Por favor, não morre. Por favor, não morre”.

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Tremain Hall morreu algumas horas depois. Meu coração disparou, meu estômago revirou e minha mente corria enquanto eu imaginava se tinha sido meu tiro que tirou a vida dele. Como eu poderia viver comigo mesmo se tivesse matado alguém?

"Ainda fico sentado na minha cela pensando em Tremain e naquele tiro fatal – a ação terrível, imperdoável e irreversível do meu eu de 17 anos"

Dois dias depois, fui preso. Segundo o promotor, foi o meu tiro que matou Tremain. Fui condenado e sentenciado a 27 anos de prisão perpétua. Depois de mais de 27 anos e dezenas de cartas me desculpando que, compreensivelmente, nunca foram respondidas, ainda fico sentado na minha cela pensando em Tremain e naquele tiro fatal – a ação terrível, imperdoável e irreversível do meu eu de 17 anos.

Agora acordo às 6h15 todo dia numa cela silenciosa. No caminho para me exercitar, passo por uma televisão na área comum transmitindo as notícias. Outro dia, cinco membros de uma gangue foram presos por conspiração para cometer assassinato. Um deles tinha só 17 anos.

"Me arrisquei a trocar o exterior durão que a cultura da prisão encoraja por algo mais humano"

Fiquei olhando para ele intensamente, tentando imaginar o estado em que a mente dele estava: Caótica? Ele estava com medo? Ele entendia o que estava acontecendo? Conheço cada estágio muito bem. Ele quer acreditar que o júri vai considerá-lo inocente, mas está resignado em esperar uma sentença curta. Conheço o destino melhor do que ele. Ele provavelmente será condenado, sentenciado e vai cumprir pena ao meu lado. Aí, uma geração depois, ele ainda vai estar sentado diante do conselho de condicional para reviver toda a ansiedade da sentença.

"Levei […] meus diplomas de bacharelado e mestrado, certificados de programas, registros de trabalho, reconhecimentos por serviço comunitário e cartas de recomendação. Eles colocaram tudo isso ao lado da minha ficha criminal de 27 anos atrás, me lembrando quem eu era: o garoto que matou Tremain Hall"

Recentemente foi minha vez de ser sentenciado de novo; eu receberia liberdade condicional ou teria que cumprir mais dois anos? No caminho para minha audiência, os homens ao meu redor alimentavam minha esperança de liberdade, protegendo de maneira egoísta a esperança deles. Eu era o campeão deles. Aquele que tinha feito tudo certo, como eles dizem, e trocado a vida nas ruas por fazer a lição de casa no prédio da escola. Me arrisquei a trocar o exterior durão que a cultura da prisão encoraja por algo mais humano. Se eu não podia ter liberdade, como eles poderiam?

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Levei para o conselho de condicional meus registros institucionais com meus diplomas de bacharelado e mestrado, certificados de programas, registros de trabalho, reconhecimentos por serviço comunitário e cartas de recomendação. Eles colocaram tudo isso ao lado da minha ficha criminal de 27 anos atrás, me lembrando quem eu era: o garoto que matou Tremain Hall. Então, a questão era: como minhas conquistas se comparavam com o fato de que tirei uma vida?

Aparentemente, não se comparavam. Negaram minha condicional na primeira vez que fiquei diante do Conselho.

Todo mundo ficou chocado. Muitos homens do meu bloco ficaram desolados, outros com raiva, pensando em sua própria situação e como eles seriam tratados. Os carcereiros foram compreensivos. Eu? Me senti derrotado. Deitei na minha cama e fiquei pensando em como poderia explicar a decisão para minha família. No final, acabei me perguntando: o que mais eu poderia ter feito?

Pensei melhor nisso no dia seguinte, e soube que tinha merecido minha liberdade. Comecei a trabalhar na minha apelação e a entreguei dois meses depois. Nos oito meses seguintes, fiquei diante do conselho de condicional outras cinco vezes enquanto eles continuavam medindo os fracassos do meu eu de 17 anos contra os sucessos do meu eu de 45.

Finalmente, no dia 16 de abril, recebi minha nova certidão de nascimento, a carta garantindo minha condicional. Com meu novo contrato de vida em mãos, eu ainda estava pensando na vida que tirei.

Mesmo sabendo que mereci minha liberdade, posso ser eternamente indigno de perdão. É algo em que continuo a trabalhar sem expectativas. É como consigo viver comigo mesmo.

Lawrence Bartley cumpre pena atualmente na Instalação Correcional de Sing Sing em Ossinig, Nova York. Ele cumpre 27 anos de cadeia por homicídio doloso simples e outras acusações ligadas ao incidente que ele descreveu, e recebeu liberdade condicional em abril de 2018. Como membro do Voices From Within, ele trabalha com várias iniciativas antiviolência armada. Lawrence também é voluntário do Projeto de Responsabilidade Correcional do Urban Justice Center, em questões relacionadas com a comercialização da justiça. Você pode entrar em contato com ele pelo e-mail lawrencebartley210@gmail.com.

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