FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Conheça as mulheres que estão derrubando a máfia

Conversamos com Anna Carrino, ex-esposa de um dos grande figurões da máfia napolitana, e uma peça essencial na batalha contra o crime organizado de Nápoles.
LEA GAROFALO, QUE FOI RAPTADA, TORTURADA E MORTA PELO MARIDO MAFIOSO EM 2009, DEPOIS DE DELATAR O CLÃ (FOTO VIA).

"Ele me disse que eu podia ir embora, mas que, se eu ousasse levar as crianças comigo, ele me enterraria viva no cimento", conta a informante Anna Carrino, ex-esposa de um dos maiores chefões da máfia napolitana. Anna passou quase 30 anos ao lado de Francesco Bidognetti, um dos quatro homens no comando de uma cidade ao norte de Nápoles.

Por dez desses anos, Anna tomou conta dos "negócios da família" e atuou como mensageira de Bidognetti. Ela era a única capaz de decifrar as mensagens codificadas do mafioso através do grosso vidro de segurança que os separava nas visitas dela à prisão Carcere di L'Aquila, onde ele está preso desde 1993. A ex-senhora Bidognetti era claramente mais do que apenas uma esposa discreta de um dos chefões de Nápoles, apesar de agora preferir diminuir seu papel.

Publicidade

Dois seguranças me escoltam até meu encontro com Anna. Quando entramos num local secreto, um deles – sem dizer uma palavra – mostra seu distintivo para o oficial guardando a entrada. Em silêncio completo, ele aponta para porta da sala onde Anna e seus guarda-costas estão esperando. Qualquer menção ao nome dela pode colocar todos nós em perigo.

Sentada numa sala de interrogatório empoeirada, Anna (uma napolitana loira de meia-idade) me conta por que decidiu se tornar testemunha do Estado. Sua lealdade com o clã começou a enfraquecer em 2002, ela diz, quando descobriu um caso do marido com uma mulher que todos sabiam "não ser coisa boa".

"Quem eu era então? A empregada dele?", ela questiona, num tom indignado.

Várias prisões se seguiram até a chegada de sua filha mais velha, Katia, ao poder levar Anna ao limite. Numa manhã gelada de novembro de 2007, ela foi embora.

A escolha de Anna Carrino de se tornar uma pentita (uma informante da polícia) foi um golpe excepcionalmente duro para seu clã, os infames Casalesi. Em seu livro Gomorra, o jornalista italiano Roberto Saviano – o primeiro a expor os processos internos do clã – descreve como, há mais de 30 anos, os Casalesi mantêm uma quase ditadura militar sobre o norte de Nápoles, controlando desde a venda de heroína até a indústria de construção civil, sem serem perturbados. Até recentemente.

mafia-women-289-body-image-1417097153

"O momento em que a esposa de um chefe da máfia se torna informante é revelador", disse Civita Di Russo, a advogada que representa Carrino e outros 20 membros da Casalesi que se tornaram testemunhas do Estado. "É quase uma premonição: se você não consegue manter o controle daqueles que vivem sob seu teto, como espera manter o controle de um clã inteiro?", ela acrescenta.

Publicidade

Alguns meses depois de Carrino começar a trabalhar como informante, dezenas de outros membros seguiram o exemplo, sinalizando oficialmente o declínio dos Casalesi.

Em certas famílias, a mancha da traição pode ser lavada com sangue, e o clã Casalesi não é diferente. Primeiramente, em 2008, Gianluca (o filho mais novo de Anna) tentou matar a tia e o primo. Então, a família voltou sua atenção para Anna. "Eu já esperava isso – e ainda espero", relata, com o olhar começando a se perder. "Os Casalesi não são como as outras famílias – eles nunca esquecem."

Quando Anna deixou a cidade de Casal Di Principe, o feudo dos Casalesi, era raro uma mulher se tornar informante. Agora, tudo mudou: uma revolução de gênero está acontecendo dentro dos impérios criminais da Itália. Por um lado, um número cada vez maior de mulheres está chegando a cargos de poder nos clãs. Por outro, muitas nascidas em famílias mafiosas não estão mais satisfeitas em trocar sua liberdade por poder e proteção. Então, elas se rebelam. Quebram o voto sagrado de silêncio exigido pelos homens e impostos a elas pela tradição. Muitas fazem isso para oferecer uma vida melhor aos filhos, outras querem simplesmente escapar dos limites sufocantes do clã.

*

Muitas, no entanto, pagam por essa rebelião com a própria vida. Mais de 150 informantes foram mortas pela máfia no século passado, de acordo com o "Dishounoured", um relatório produzido pela ONG italiana daSud em 2012. O assassinato de Lea Garofalo – uma mulher de 35 anos que, em 2009, foi raptada, torturada e morta pelo marido mafioso por delatar o clã – chocou a nação.

Publicidade

De modo similar, a história trágica de Maria Concetta Cacciola, de 31 anos – que, em 2012, foi encontrada morta na casa dos pais mafiosos, em Rosarno, depois de supostamente beber ácido muriático na mesma semana em que planejava escapar –, se tornou um símbolo da luta contra a máfia.

Depois de entrar no programa de testemunhas do Estado, Anna foi transferida para um local altamente secreto, onde ela leva uma vida nova. Ex-rainha do submundo, hoje ela trabalha em três empregos, como faxineira, cuidadora e babá, cada um com uma identidade diferente. Ela não se arrepende da escolha, embora seus olhos fiquem marejados toda vez que ela menciona Teresa, sua filha mais nova, que ela deixou para trás.

A advogada de Anna di Russo, uma mulher mediterrânea durona, também estava presente durante a entrevista. Quando entrou na sala, Civita e Anna se cumprimentaram como velhas amigas.

"Teresa deu à luz hoje!", Anna, empolgada, contou-lhe. "Sou avó!"

Percebi, então, que o papel de Civita vai muito além do de uma advogada de defesa normal. "Sou cummare [melhor amiga] dela", ela brinca mais tarde enquanto bebe café em seu apartamento, em Roma. Então, ela pausa, abaixando a voz. "Meus clientes me contam tudo; coisas que não confessariam nem para as esposas ou amantes." Ela me encara. Sua expressão é fria – a mesma, imagino, que ela usa quando um cliente descreve como derreteu um rival com ácido. "É difícil", ela acrescenta, tomando um gole de seu expresso e desviando o olhar.

Publicidade

*

A ideia de encorajar ex-mafiosos a delatar seus clãs, garantindo-lhes proteção e sentenças menores, foi introduzida nos anos 80 por Giovanni Falcone, o mais conhecido juiz antimáfia da Itália. Essa tem sido a melhor maneira de investigar a máfia, uma organização fundada sob o princípio do silêncio (omertà).

Foi só com o testemunho do primeiro pentito, Tommaso Buscetta, que os investigadores puderam provar a existência desses clãs. Ele revelou os trabalhos internos da família Porta Nuova, o que levou à prisão de aproximadamente 350 membros do clã. Os relatos de Buscetta tornaram possível o primeiro maxiprocesso da máfia e a primeira sentença de prisão perpétua por atividades mafiosas. Hoje, é impensável que um julgamento da máfia italiana possa ser levado adiante sem o testemunho de um informante.

Civita vem trabalhando com informantes há mais de 20 anos, vivendo também sob proteção. Mas, sendo a primeira mulher a trabalhar como advogada de defesa para clãs da máfia (sociedade originalmente "apenas para homens"), seu trabalho nunca foi simples. Na verdade, seu primeiro cliente (um chefão siciliano old school) afirmou na primeira reunião deles: "Nunca vou me entregar com uma mulher como minha advogada".

"Ele ficou realmente ofendido com a ideia de que uma mulher faria sua defesa", diz Civita, sorrindo desse pensamento.

Agora, as coisas são diferentes: seus clientes homens confiam a vida a Civita. Mais importante, ela agora defende um número cada vez maior de mulheres, com quem ela prefere trabalhar.

Publicidade

"Informantes homens e mulheres são diferentes numa coisa fundamental: homens se tornam informantes principalmente para reduzir suas sentenças; a vasta maioria das mulheres faz isso para salvar os filhos", ela explica.

mafia-women-289-body-image-1417097087

Testemunhos de mulheres têm sido decisivos para perfurar a grossa parede de silêncio que existe ao redor da máfia, mas foi só na última década que o papel delas dentro das organizações veio à tona. Até 1992, só havia um registro de mulher presa por atividades mafiosas. "Agora, quando prendemos um clã, cerca de um terço dos membros são mulheres", relata Barbara Sargenti, uma promotora que passou 15 anos investigando a Camorra, o ramo napolitano da máfia siciliana.

As mulheres sempre foram parte dos clãs da máfia apesar de, tradicionalmente, só terem papéis secundários, como gerenciar o tráfico de drogas e a prostituição ou extorquir comerciantes por proteção, o que é conhecido como pizzo. Mas elas nunca eram condenadas por esses crimes. Os juízes sempre eram influenciados pelo estereótipo da família italiana do sul do país – onde as mulheres são controladas pelos homens – e, portanto, consideradas "incapazes de cometer crimes de forma autônoma".

Conforme a percepção do papel das mulheres na sociedade mudava, os investigadores começaram a entender que elas "não serviam café e chá para os maridos mafiosos e seus amigos simplesmente, mas se sentavam à mesa, cortando cocaína e dividindo dinheiro", destaca Sargenti, acrescentando que "há também um número cada vez maior de mulheres em papéis executivos".

Publicidade

Sentada em sua escrivaninha, ela explica como as várias prisões na máfia durante os anos 80 e 90 dizimaram os clãs. Então, com os machos mais qualificados atrás das grades ou forçados a fugir, as mulheres começaram a ocupar posições de poder dentro da máfia.

*

Durante seu tempo como promotora em Nápoles, Sargenti testemunhou, em primeira mão, a ascensão das "chefonas". Ela me conta sobre a investigação de Maria Licciardi, uma mulher descrita como "a princesa" por seus colegas camorristi. Licciardi saiu vitoriosa de uma longa rixa de sangue, na qual aproximadamente 20 pessoas foram mortas entre 2006 e 2007. Nos três anos seguintes, ela chefiou o único clã que exercia controle sobre toda a cidade de Nápoles.

"Ela, sem dúvida, era uma das grandes mentes criminosas de seu clã", disse Sargenti, que supervisionou a prisão de vários membros, incluindo o ex-chefão Vincenzo Licciardi, irmão de Maria. Quando fala sobre Maria, Sargenti parece realmente fascinada com sua astúcia – talvez por ela ter sido a única que conseguiu escapar.

"Ela sabia em quem confiar", opinou Barbara. "Nenhum dos informantes foi capaz de apontar nada além de crimes menores cometidos por ela, como extorsão e suborno." Por isso, em 2010, Maria Licciardi foi inocentada.

O novo poder que as mulheres exercitam dentro da máfia torna seus testemunhos ainda mais decisivos. Anna Carrino conseguiu revelar informações fundamentais sobre as operações dos Casalesi, porque tinha um papel ativo no clã. "Quinze anos atrás, seria impensável que informações fornecidas por uma mulher pudessem levar à queda de um clã inteiro", frisa Civita.

Publicidade

A máfia ainda é um dos principais agentes de poder da Itália. O FBI estima que seus lucros anuais sejam de cerca de £ 110 bilhões – 9% do PIB do país. Sua força está na popularidade que ela tem entre muitos italianos comuns. Nas localidades abandonadas pelo Estado, os clãs constroem seus feudos. Eles oferecem trabalho e proteção. Para alguns italianos, a máfia não é somente uma organização criminosa, mas uma maneira alternativa de conseguir justiça. Isso é parte inseparável do tecido social – um código de valores pelo qual qualquer homem ou mulher "de honra" deveria viver e morrer. Isso é chamado de "o sistema". Para os que aceitam a máfia como tal, silêncio é a verdadeira medida da honra.

mafia-women-289-body-image-1417097028

"O silêncio torna as pessoas cúmplices", diz Angela Corica, uma jornalista que já recebeu diversas ameaças de morte por investigar as operações da máfia em sua cidade natal. Sentada no jardim de um café em Roma, Angela, uma mulher do sul da Itália, explica por que, dois anos atrás, sentiu que não tinha outra escolha a não ser partir.

Ela cresceu no tranquilo vilarejo de Cinque Frondi, um reduto da máfia local. Quando criança, ela não entendia por que algumas pessoas mereciam extremo respeito, mas seus nomes nunca deviam ser mencionados. Ela lia sobre assassinatos em que os culpados eram desconhecidos e as vítimas, rapidamente esquecidas. "Você não podia falar sobre a máfia, mesmo isso estando bem debaixo do nariz de todos", ela relembra. "Não estou falando só sobre os membros dos clãs; a mentalidade em si era generalizada."

Publicidade

Até Angela começar a cobrir essas histórias, "o sistema" em Cinque Frondi trabalhava sem ser perturbado. Ela foi a primeira a escrever sobre os acordos feitos entre políticos locais e a máfia. Logo seu trabalho foi notado: cinco tiros contra seu carro, apenas um aviso. Os tiros não perturbaram Angela na época – ela era jovem, determinada e um pouco imprudente.

"Eu não estava com medo. Por que deixá-los vencer?", questiona, inclinando a cabeça para cima, desafiadora. Ela só saiu de Cinque Frondi depois de uma mudança na chefia de seu jornal, quando o editor pediu aos jornalistas para se "evitar focar em questões relacionadas à política local e à máfia".

Depois desse ataque inicial, muitos de seus amigos decidiram manter distância. "As pessoas diziam que eu não estava boa da cabeça", ela me conta, com os olhos verdes bem abertos. "Uma organização, ou mesmo uma sociedade, que cede esse nível de poder aos homens sempre vai tratar as mulheres desse jeito."

*

Mas as coisas estão mudando no sul da Itália. No dia 22 de setembro, mais de 5 mil pessoas saíram às ruas de Nápoles para protestar contra os Casalesi, que jogaram milhões de toneladas de lixo tóxico na área – provavelmente condenando várias gerações a desenvolver câncer.

Nos anos 80, os clãs da Camorra se infiltraram no negócio de gerenciamento de resíduos. Em vez de pagarem altas somas em dinheiro para tratar seu lixo legalmente, os mafiosos jogaram toneladas de resíduos – inclusive radioativos – em campos, rios, poços e lagos. Nessas áreas, "um número muito alto de crianças desenvolve câncer em seu primeiro ano de vida", de acordo com um relatório publicado em agosto pela ISS, o maior centro de pesquisa de saúde pública da Itália. Os protestos, que estão se tornando cada vez mais frequentes, simbolizam o fim dos Casalesi.

O encanto da máfia está na falsa sensação de segurança que ela fornece para quem vive sob suas regras. As mulheres trocam sua liberdade por uma vida confortável. De maneira similar, bairros desfavorecidos juram lealdade aos clãs que oferecem proteção. Mas, eventualmente, o preço cobrado pela máfia se torna muito alto. Ressentimentos começam a fermentar, como um casamento que vai amargando.

Anna Carrino nunca conheceu o pai e dificilmente via a mãe, que tinha de trabalhar muitas horas para sustentar a família. Aos 13 anos, ela se viu sozinha no mundo. Foi quando conheceu Francesco Bidognetti, 15 anos mais velho que ela e já ocupando um cargo importante nos círculos da Camorra. "Achei que ele era o Príncipe Encantado", conta.

Francesco deu a Anna a família que ela nunca teve, além de mais dinheiro do que ela conseguia gastar. "Aguentei muita coisa, por muitos anos, em nome dessa riqueza", afirma enquanto morde o lábio inferior: os últimos 30 anos passam diante de seus olhos, memórias de uma vida vivida com medo do homem que ela amava desesperadamente, mas que provavelmente nunca quis mais do que sua obediência incondicional. As amantes, os assassinatos e o desespero daqueles à volta dela – o preço pela proteção dele se tornou alto demais.

Então, numa manhã gelada de novembro de 2007, Anna foi embora. E o clã começou a desmoronar.

Tradução: Marina Schnoor