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O refugiado sírio de 14 anos que construiu a Alepo de seus sonhos

A incrível história da maquete de papel da cidade feita por Mohammed Qutaish, transportada secretamente para uma galeria de arte norte-americana.
Foto principal por Baraa Al-Halabi/AFP/Getty Images.

Matéria original da VICE EUA.

Em 2012, Wael Qutaish e a esposa, Shahed, retornaram para Salaheddine, um bairro do sul de Alepo de onde tinham fugido depois que o governo sírio jogou a primeira onda de bombas na cidade. Uma explosão tinha destruído a loja de eletrônicos de Wael, então ele pegou um emprego numa ONG norte-americana. Shahed e outros pais improvisaram uma escola primária no bairro. E assim eles seguiam a vida, sob a ameaça constante de ataques aéreos: se você vivia, vivia com cuidado, flexibilidade, sempre cuidando uns dos outros e sempre no térreo ou abaixo.

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Mais tarde em 2012, o filho mais velho dos Qutaish – um menino esguio e de olhos grandes de 11 anos chamado Mohammed – desobedeceu às regras. Ele escalou até o telhado da casa de dois andares da família, carregando papel e canetinhas que o pai tinha levado dois ou três dias para conseguir no território então controlado pelo Exército Livre da Síria. Wael dava tudo que podia a Mohammed para apoia o amor quase compulsivo do filho por desenhar, ele me diz, mas o telhado? Nas semanas seguintes, Wael e Shahed tomaram uma decisão. Eles pediram a um vizinho se o filho podia usar uma sala desocupada dele no térreo como estúdio.

Nos três anos seguintes, Mohammed encheu aquela sala com a paisagem que tinha perdido. Torres, ruas, painéis solares, lagos, restaurante e um distrito de entretenimento de papel, tudo colorido com aquarela – não desenhado, mas criado tridimensionalmente, baseado em modelos arquitetônicos que ele tinha visto na internet. Árvores verdes enfeitam as bases do arranha-céus de vários metros de altura. Alepo já foi a maior cidade da Síria; milhares de anos atrás, lá era onde terminava a Rota da Seda. Mohammed achava que a cidade podia ser bela, moderna e forte mais uma vez. De sua mesa de trabalho, uma nova Alepo cresceu, uma onde ele tinha apagado todos os traços do conflito de meia década: uma cidade sem ISIS, al-Nusra ou Bashar al-Assad.

Mohammed passa de quatro a cinco horas por dia em seu projeto, "fazendo pausas, claro", ele me diz. Enquanto isso, as condições em Alepo e na Síria pioravam. Amigos e vizinhos foram mortos; uma bomba destruiu a escola improvisada; a mãe de Mohammed foi tirada com vida dos escombros. E então uma vizinha, uma jornalista cidadã chamada Waad Alkateab, passou uma mensagem para Mohammed e sua família. Ele gostaria de mandar um trabalho para uma exposição nos EUA? Tinha um museu norte-americano, com um curador chamado Alex Kalman. Era possível adquirir um pedaço da arte de Mohammed para expor em Manhattan, a 8.800 quilômetros dali?

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Mohammed concordou.

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Para chegar ao Mmuseumm de Nova York, onde a peça Futuro de Alepo de Mohammed estava em exposição até 18 de dezembro, a obra teve que fazer a mesma jornada que milhões de refugiados tentam: passou de pessoa para pessoa, do porta-malas de um carro para um quarto de hotel, começando nas mesmas ruas que Mohammed retrata em seu modelo, e com a mesma combinação de possibilidade, urgência e risco.

Kalman, o curador do Mmuseumm, conheceu o trabalho de Mohammed no começo de 2015, quando um amigo mandou para ele um vídeo exibido pelo Channel 4 britânico. Kalman então mandou um e-mail para o produtor do canal. Depois de uma troca de e-mails e pistas, ele entrou em contato com a jornalista que tinha feito o vídeo. Waad Alkateab, vizinha de Mohammed, respondeu alguns dias depois, mas para Kalman pareceram semanas.

Mohammed passou várias semanas seguintes construindo uma seção especial de Alepo do Futuro. Nesse meio tempo, Kalman e Alkateab arranjaram um grupo de estranhos turcos e sírios, por e-mail e WhatsApp, para transportar a peça das ruínas da cidade para um país onde as tensões entre cidadãos turcos e refugiados sírios já tinha explodido em violência intermitente.

Detalhe de Alepo do Futuro, de Mohammed Qutaish, no Mmuseumm 2 em Nova York. Foto por Annie Julia Wyman.

O primeiro a carregar o modelo foi um médico chamado Zahed Katerji – marido de Alkateab – que levou a peça da casa dos Qutaishes para a cidade de fronteira turca Gaziantep no porta-malas do carro. Num quarto do opulento Hotel Tuğcan, ele entregou um enorme saco de lixo transparente cheio de prédios e árvores de papel.

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A bolsa passou para Ozgur*, um turco que levou o modelo para que um amigo fizesse caixas especiais de transporte. Ozgur levou a cidade recém-embalada para o DHL, onde Eva, uma designer de Istambul, já tinha preenchido todos os formulários. Ozgur explicou por Whatsapp que queria fazer algo pelos sírios e turcos; Eva me disse por e-mails que sendo mãe, sentiu que tinha que ajudar.

A Alepo de Mohammed chegou a Nova York no dia 24 de dezembro de 2015, depois de três dias em trânsito. "Setenta e duas horas acordado", diz Kalman, quando nos falamos por telefone no meio deste ano. Mais tarde, ele me mandou por e-mail fotos de uma explosão de fita e papelão: materiais parecidos com os quais Alepo do Futuro é feita.

No modelo, a Cidadela de Alepo está numa colina baixa de papel, onde as pinceladas de Mohammed são claras. A mesma colina, lá na Síria, está em uso desde 3 mil AEC, muito antes da construção do castelo – e o profeta Abraão pode ter ordenhado suas cabras aqui – mas agora o local está além dos limites para os civis. No curso do conflito, a UNESCO tem lutado para preservar e documentar os pontos históricos da Síria, até despachando civis treinados com escâneres 3D. Nas fotos de Alepo hoje, você pode ver o que restou dos muros da cidadela desmoronado nos arredores da cidade, que agora está coberta pela poeira branca dos prédios pulverizados.

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Cinco andares abaixo do estúdio em Tribeca onde às vezes me encontro com Kalman para falar sobre seu trabalho como curador, há um poço de elevador convertido contendo três paredes de vidro iluminadas por LEDs escondidos. Esse é o Mmuseumm, fundado por Kalman e dois outros cineastas, agora inteiramente sob a supervisão do idiossincrático e exigente curador. Já ouvi Kalman – um homem de 30 e poucos anos alto, de cabelo bagunçado, sempre andando de um lado para o outro – chamar o espaço de museus de história natural contemporânea, museu de arqueologia contemporânea e museu de vernáculo contemporâneo. Agora ele prefere a frase "jornalismo de objeto", cunhado pelo designer e escritor Rob Walker. Kalman acha que olhar para objetos do cotidiano pode nos ajudar a encontrar novas histórias – algumas urgentes – do mundo contemporâneo. Atualmente em exposição na quinta temporada do Mmuseumm: parafernália brega com a marca de Trump; artefatos deixados por imigrantes na fronteira entre México e EUA; réplicas imaculadas da moeda do ISIS.

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Alguns passos mais a frente na rua, temos outro espaço estranho: o anexo do Mmuseumm, ou Mmuseumm 2. O cadeado na porta diz "HARDENED": Kalman o remove uma tarde para que eu possa ver a obra Futuro de Alepo. Numa pequena alcova, os oito quarteirões de papel da cidade ocupam um pedestal de cerca de 80 centímetros quadrados. Há árvores, carros de brinquedo, painéis solares, um rio, uma ponte levadiça subindo para permitir a passagem de um veleiro. Alguns táxis estão estacionados na Citadela de Alepo, um dos castelos mais antigos do mundo, construído pelos selêucidas em 300 AER. Perto há uma torre com uma piscina no último andar, outra torre com um heliporto – uma visão de Alepo não apenas reconstruída, mas melhorada. Também tem um parque porque Mohammed inclui um em todo modelo que faz.

Alepo do Futuro saiu do Mmuseumm 2 para se preparar para uma nova temporada e sua jornada até Londres, onde ficará em exposição no Victoria and Albert Museum, numa exibição chamada Future Design. Lá eles vão exibir um vídeo de Mohammed pintando árvores. Atrás deles, você vê seu estúdio – aquela sala térrea – e seus desenhos na parede, já que Kalman incluiu a filmagem de Waad Alkateab para o Channel 4. Na exposição eles também terão uma declaração de Alkateab, onde ela descreve suas esperanças para Alepo e a Síria. Liberdade, ela diz, a queda da tirania e ajuda do Ocidente – pedidos justos e um pathos particularmente dolorido agora que os EUA pode estar embarcando numa relação mais próxima com a Rússia, que tem apoiado Assad em seu massacre do povo sírio no país.

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Sírios deixam uma área rebelde em Alepo para o lado dominado pelo governo sírio em 12 de dezembro de 2016. Fotos por Karam Al-Masri/AFP/Getty Images.

Akateab, 25 anos, começou a trabalhar como jornalista em 2012, dentro da cidade, arriscando sua vida e sua liberdade. "Qualquer um pode ser preso ou sequestrado pelas forças do regime", ele me diz numa mensagem de voz por WhatsApp. Ela tinha 21 quando o conflito começou e seu maior medo é ter que deixar a cidade. Entre as reportagens, ela ainda acha tempo para trabalhar em projetos de filmes, incluindo um longa sobre maternidade sitiada, e o como é estar grávida numa cidade sitiada. "Quando me sinto mal, vou para a Alepo Velha", me diz Alkateab. "Ando pelas ruas e vejo os monumentos. Isso me dá energia e esperança."

Mohammed também relembra da gradeza de Alepo. Quando começou a trabalhar com papel, ele fez um modelo da cidadela, que para ele – assim como para a maioria dos moradores de Alepo – é "o símbolo da cidade". (Ele também fez um modelo de sua antiga escola, que "testemunhou minha infância".)

Conversando comigo por Skype, ele é muito paciente com as minhas perguntas, muitas revisitando as informações que eu já tinha recebido de Kalman. Ele também quer ser preciso, várias vezes pedindo esclarecimentos à tradutora. No começo da nossa conversa, o irmão mais novo de Mohammed aparece para acenar, e todos os sete Qutaishers, pais e filhos, começam a aparecer ao fundo.

Naquele momento, os Qutaisher estavam numa cidade portuária turca, comemorando o Eid em sua primeira viagem de férias desde que o conflito começou. Eles tinham passado o dia nadando, e eu conseguia ver o oceano nos cabelos de Mohammed. Eles fugiram de Alepo no meio do ano, se estabelecendo em outra cidade do sul da Turquia. O trabalho do pai de Mohammed numa ONG deu a ele os documentos necessários para sair da Síria. Seus filhos não têm documentos, mas Wael diz que não quer que eles cresçam na Turquia, onde refugiados são espancados e assaltados. Wael disse que se o paraíso fosse na Turquia, ele não iria para lá. Ele só quer dar o quanto puder de felicidade aos filhos sem inflar suas expectativas ou prometer o impossível. Sim para os materiais de arte, acho, não para ficar no telhado.

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Pergunto a Mohammed o que ele acha que pode fazer no futuro. Ele é inabalável em sua ambição de se tornar um arquiteto. Apesar de ter deixado tudo para trás, ele está desenhando de novo. Pergunto a Mohammed se ele acha que arte pode unir novamente os sírios. Ele diz "Sim, acho", num tom que sugere que ele fica impressionado com pessoas que acham que não. Ele também me diz que tem uma mensagem para o público: "Se seus filhos têm dons, por favor, os ajude a desenvolver suas habilidades. Nos ajude a reconstruir nosso país e nossa sociedade".

No Victoria e Albert Museum, o modelo de Mohammed será exibido ao lado de um grande anel cinza brilhante: outro modelo arquitetônico, construído pela empresa britânica Foster and Co. do Apple Campus 2 em Cupertino, Califórnia. O curador, Rory Hyde, diz que o gesto de colocar Mohammed Qutaish ao lado de Norman Foster coloca uma pergunta simples: "De quem é o futuro?". Ele chama o trabalho de Mohammed de "especulativo, ambicioso, generoso". Algo em seu tom sugere que ele acha que uma obra de arte com essas qualidades se destaca por si. Mohammed descreve esse fenômeno mais diretamente: "Minha tristeza, causada por essa destruição, me inspira imensamente".

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Depois de mais de duas horas de entrevista, nossa tradutora se levanta para uma pausa muito necessária. "Bom, esperamos ela voltar", diz Kalman, sentado ao meu lado em Nova York. "Enquanto isso podemos fumar." Ele puxa um cigarro eletrônico e sorri. Pelo Skype, vejo o pai de Mohammed acender um cigarro e se apoiar numa cerca na Turquia. De repente, o pai e o curador do museu me parecem dois homens de qualquer lugar, do lado de fora de um bar, numa pausa num beco. Uma conexão frágil e rara – e talvez mais fácil de estabelecer que qualquer outra entre Alepo e o resto do mundo. Por semanas e meses agora, os russos e os soldados do regime vêm demolindo o leste de Alepo: cerca de 250 mil pessoas estão presas ali. Todos os hospitais foram destruídos. Do meio do caos, num terror que a maioria das pessoas nunca vai ver ou conhecer, Waad Alketeab escreveu a Kalman falando sobre milagres. Era um milagre, ela dizia, que ela ainda estivesse vive.

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Quando Alketean foi homenageada mês passado – duas vezes – pela Anistia Internacional por sua cobertura da Síria, ela imprimiu, numa folha de papel rosa, uma declaração para o comitê de premiação. Ela dizia que podia ser sua última carta ao mundo. Nela, ela dizia que o ar tinha se tornado irrespirável, e que 30 bombas tinham sido jogadas em seu bairro em uma noite. As forças pró-governo desde então fecharam o cerco aos últimos bairros rebeldes de Alepo, movimentações acompanhadas por relatos de execuções em massa de civis, o colapso de um cessar-fogo e a quebra de outro na noite de quarta-feira. Alkateab e seu marido ainda estão vivos, presos no hospital da cidade. A vida deles, assim como a de muitos outros sírios, continua em grande perigo.

"Há uma cidade destruída chamada Alepo", ela escreveu para o comitê de premiação, em novembro. "E as pessoas aqui pedem que vocês relembrem sua humanidade." A simplicidade da linguagem dela me lembrou algo que vi no filme dela sobre Mohammed. Ele tem um pedaço de papel colado na parede de seu estúdio: Eles destroem. Nos reconstruímos – na nossa memória, com nossas mãos, com o que pudermos – um mundo melhor e desaparecido que uma vez vimos do telhado.

Annie Julia Wyman é uma escritora e doutoranda do Departamento de Inglês de Harvard. Siga-a no Twitter.

*Os sobrenomes de alguns participantes foram omitidos para proteger sua segurança.

Tradução: Marina Schnoor

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