O médico que foi morar na Antártida para pesquisar o isolamento no espaço
Floris van den Berg na Antártida. Crédito: Floris van den Berg

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O médico que foi morar na Antártida para pesquisar o isolamento no espaço

Em uma das áreas mais remotas do planeta, o holandês Floris van den Berg ajuda a descobrir os efeitos físicos e psicológicos de longas viagens espaciais.

A Concordia, uma base de pesquisas franco-italiana na camada de gelo da Antártida, está no meio do nada; a estação mais próxima deles está a 560 km de distância e tudo o que eles têm para olhar, por todos os lados, é brancura total. O último avião partiu para o inverno em fevereiro e deixou a base isolada. Os pesquisadores não verão o sol durante quatro meses e, em breve, a temperatura vai baixar para -60°C. Ah, e como a estação se encontra a 2.300 metros acima do mar, os habitantes têm que se virar com cerca de um terço a menos de oxigênio do que o nível do mar.

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Estamos falando de um dos lugares mais remotos do planeta. Não é um ambiente normal para os humanos. E é por isso mesmo que o holandês Floris van den Berg está lá. Ele é um médico financiado pela Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla original) e conduz uma série de projetos de pesquisa na Concordia a fim de explorar os efeitos físicos e psicológicos da vida em tais ambientes. O resultado, dizem os estudiosos, poderá oferecer ideias para lidarmos com as viagens espaciais de longa distância.

Crédito: Floris van den Berg.

"A ESA está interessada neste local porque é um dos únicos lugares em que há isolamento total", afirmou Van den Berg em uma entrevista via Skype. Conversamos enquanto seus colegas dormiam pois ele disse que a conexão via satélite de 512 kbps da base fica "uma bosta" se várias pessoas tentassem usar o Skype ao mesmo tempo.

Médico de família na Holanda, Van den Berg afirmou que a localização remota o atraiu para esse local de trabalho inusitado. Depois de ter servido como médico em expedições ao redor mundo, as entranhas da Antártida pareciam um local impressionante a ser incluído na lista.

"E, na minha opinião, trabalhar para a Agência Espacial Europeia também é muito legal", acrescentou.

A Concordia tem semelhanças únicas com o espaço, o que a torna ideal para a pesquisa da ESA. Enquanto nos aventuramos cada vez mais longe — a Marte, por exemplo — os astronautas passarão mais tempo próximos uns dos outros e completamente isolados do resto do mundo. Com a tecnologia atual, leva-se cerca de oito meses para enviar uma missão robótica ao planeta vermelho. Em Concordia, por causa do isolamento total por meses, costuma-se chamar o local de "Marte Branca".

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A base Concordia. Crédito: Floris van den Berg.

Van den Berg é responsável por coletar uma lista variada de amostras e dados para compreender como o ambiente pode afetar o bem-estar físico e psicológico dos seres humanos. Um estudo interessante em particular envolve ensinar os colegas de equipe a dirigir um simulador de voo da nave Soyuz, que costuma ser utilizada para transportar astronautas à Estação Espacial Internacional. É um simulador bem simples, com um assento e dois consoles, com os quais os usuários praticam pilotar e atracar. Van den Berg explicou que o simulador está instalado na lavanderia da Concordia porque não cabia dentro do laboratório.

Após a instrução inicial, ele vai dividir sua equipe em dois grupos: um receberá treinamento no simulador todos os meses e o outro a cada três meses; a função do médico é monitorar o desempenho para verificar em quanto tempo as capacidades deles diminuem no ambiente.

"A ideia é que, se você envia pessoas para Marte em uma espaçonave durante seis a nove meses, elas vão ficar entediadas; mas quando chegarem em Marte, elas precisarão se concentrar em manejar o módulo de aterragem", explicou.

Outra base na Antártida, a britânica Halley VI, também conduz um treinamento simulado. Assim que Halley atingir uma altitude mais baixa, o experimento vai auxiliar a distinguir o impacto do fator de isolamento daquela de condições hipoxia. Um controle também será executado em Stuttgart, na Alemanha.

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Como era de se esperar, o simulador de voo é mais popular dentre todos os experimentos de Van den Berg. Ele admite que às vezes também o utiliza quando tem um tempo livre.

Além do simulador de voo, Van den Berg executa testes frequentes em si mesmo e no resto da equipe de técnicos e pesquisadores que trabalham em campos como clima e astronomia. Por meio de um scanner CT (o primeiro na Antártida, instalado na sala de vídeo) ele analisa a densidade óssea das pessoas, um problema de saúde importante nas viagens espaciais. Ele também coleta amostras de sangue e as analisa por meio da citometria de fluxo — que separa as diferentes células na amostra — para verificar como as condições afetam o sistema imunológico; os astronautas da NASA na EEI também fazem isso, oferecendo, assim, uma comparação interessante.

"Observa-se muitas mudanças, especialmente no começo, logo que as pessoas chegam", afirmou Van den Berg. "Por causa da falta de oxigênio, vemos que os hormônios do estresse aumentam bastante e suprimem a resposta imunológica."

"Fiquei bastante surpreso quando todos aceitaram participar desse estudo, porque é realmente como se 'o Big Brother estivesse assistindo'"

Os fatores psicológicos são tão prementes quanto os fisiológicos. Van den Berg pede com frequência que as pessoas respondam a questionários sobre humor e hábitos de sono. Os participantes também usam relógios que monitoram suas atividades (úteis para monitorar o sono, que é difícil de ser monitorado adequadamente pelas pessoas) e interagem com faróis na base para registrar seus movimentos.

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"Fiquei bastante surpreso quando todos aceitaram participar desse estudo, porque é realmente como se o Big Brother estivesse assistindo", afirmou Van den Berg. A participação em todas as pesquisas é voluntária.

"O que se sabe dos anos anteriores é que no inverno todos ficam um pouco desanimados, então as pessoas se isolam mais e passam mais tempo na cama e menos na sala de convivência", acrescentou. "É algo que pode ser medido em detalhes, para ver como é a dinâmica de grupo, quem está visitando quais áreas e quanto tempo cada pessoa passa sozinha ou com os outros."

Isso tudo é correlacionado com as respostas dos questionários.

É claro que Van den Berg não está imune aos efeitos psicológicos. Ele afirmou que parte de sua atração pelo trabalho foi a "experiência pessoal" de viver na base. Para ele, os maiores desafios, depois de se adaptar aos níveis de oxigênio baixos, eram lidar com o isolamento e incomodar os demais participantes a participar de seus estudos concomitantemente com seus próprios trabalhos.

A vista do quarto de Van den Berg. Crédito: Floris van den Berg.

Há outro médico na base de pesquisa que exerce a função de clínico caso as pessoas fiquem doentes ou se machuquem (a base está equipada para cirurgias, já que não é possível levar uma pessoa a um hospital durante boa parte do ano, embora a equipe seja naturalmente cuidadosa a ponto de não precisar disso). Van den Berg lidera a equipe de resgate caso aconteça um acidente fora da base — "com o frio que faz aqui, a tática é o que chamamos de 'juntar e correr': colocar numa maca e trazer pra dentro", afirmou.

Entretanto, ocorrem contratempos naturais e inesperados. Quando sua máquina de CT chegou à base em uma caixa do correio, ela tinha um buraco suspeito em um dos lados, como se um empilhadeira tivesse furado ela. Sem dispor de um serviço de reparos em milhares de quilômetros, Van den Berg teve que descobrir como consertá-la sozinha com a ajuda de e-mails e do Skype. "Por sorte, ela não teve muitos danos estruturais, então com uma fita e senso comum, conseguir consertá-la", afirmou.

Com a maior parte do ano pela frente, Van den Berg parece entusiasmado com a missão. Um pouco apreensivo também. "Sempre chego no ponto em que penso que uma coisa aqui é muito legal e aí acabo no meio do nada e penso por que fiz isso, por que estou aqui, mas essa é, acho, a história da minha vida", contou. "Mas estou feliz porque aqui é um lugar extremamente interessante."

Até o momento, ele não perdeu o entusiasmo pela viagem. Trabalhar para a ESA deu a ele a oportunidade de se aventurar cada vez mais longe. Agora, com 32 anos, afirma que, se a ESA estiver procurado um astronauta, ele vai se candidatar. Com o experimento Marte Branco no currículo, ele tem mais noção do que a maioria das pessoas daquilo a que está se submetendo, afinal.

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri