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Bem-Vindo a Nakichevan, Uma República Autônoma Nas Montanhas do Cáucaso

Nakichevan é uma nação bem construída, progressista e orgulhosa (ao ponto da presunção); obcecada por produção local e orgânica, medicina alternativa, turismo de saúde e espiritualidade, tudo que for ecológico e Wi-Fi com acesso universal.

A grandiosa arquitetura de Nakichevan.

Assim que meu avião tocou no solo da República Autônoma de Nakichevan do Azerbaijão, eu esperava pisar numa paisagem em ruínas saída de uma cena de Círculo do Fogo. Tenho que admitir, formei essa imagem com base em rumores velhos e esparsos, mas a história moderna desse enorme exclave, um pedaço do Azerbaijão de mais de três mil quilômetros quadrados onde moram cerca de 400 mil pessoas e separado do país principal por cerca de 48 quilômetros (no ponto mais estreito) da hostil Armênia, não deixa muito espaço para esperança e pensamentos felizes. Um amigo, que leu muito sobre a região do Cáucaso, disse que sempre imaginou o lugar como um outro Afeganistão. Mesmo meus amigos que moram na capital do Azerbaijão, Baku, me disseram que eu, muito provavelmente,entraria numa terra devastada.

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Assim, descobrir que eu havia tropeçado numa São Francisco isolada e meio estranha foi muito louco. Nakichevan é uma nação bem construída, progressista e orgulhosa (ao ponto da presunção); obcecada por produção local e orgânica, medicina alternativa, turismo de saúde e espiritualidade, tudo que for ecológico e Wi-Fi com acesso universal.

Lápides turcomanas supostamente trazidas para cá para protegê-las de depredação pelos armênios.

Tudo isso é ainda mais impressionante se lembrarmos da última vez que o Nakichevan tentou ser ousado. Em janeiro de 1990, a República Socialista Soviética Autônoma de Nakichevan (anteriormente, a independente República de Araks turca, antes de ser engolida pelos sovietes em 1920) tomou uma posição contra o que viu como uma privação progressiva dos direitos dos azeris da República Socialista Soviética do Azerbaijão em favor dos Armênios. O país foi a primeira parte da URSS a se declarar independente e, por isso, foi prontamente atacado. A violência, que alguns moradores afirmam envolver o uso de armas químicas pelos armênios (os armênios alegam o mesmo por parte dos azeris, mas não há provas em nenhum dos dois casos), estava relacionada a afirmações russo-armênias de perseguições contra armênios no próprio Azerbaijão (com quem o Nakichevan se uniria depois) e durou de 1990 até o cessar-fogo em 1994. Durante esse tempo, o país caiu sob um pesado bloqueio. Gasolina, linhas de trem, eletricidade e rádio foram cortados, e as políticas de interdependência soviéticas os deixaram com uma agricultura fraca e quase nenhuma indústria autossuficiente. Todo ano, centenas de milhares de pessoas fugiam da região. Quase todas as árvores foram cortadas e usadas como combustíveis nos invernos implacáveis, e as únicas coisas que mantiveram a nação viva foram duas pequenas pontes ligando o país a Turquia e ao Irã, construídas por Heydar Aliev, homem forte soviético do Nakichevan que comandou a região e depois se tornou líder de todo o Azerbaijão em 1993.

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Heydar Aliev numa tapeçaria.

Quando a violência começou a se acalmar e jornalistas e diplomatas deram no pé, essa foi a imagem do Nakichevan que se solidificou na imaginação internacional. Desde então, com ajuda da insana riqueza petroleira de Baku, o país vem passando por um desenvolvimento maciço — entre 1995 e 2012, o produto interno bruto aumentou em um múltiplo de 48. Agora, eles revitalizam seu espírito local, reconstroem sua identidade e (de certo modo) esfregam isso na cara dos armênios.

Universidade de Nakichevan.

Alguns dos desenvolvimentos, no entanto, são coloridos pelo legado das políticas duras e sem emoção da URSS. Esses elementos se tornaram evidentes enquanto eu passeava pela recentemente reconstruída Universidade de Nakichevan, um enorme campus de grandes templos de mármore que atestam o poder e a competência de Nakichevan. No entanto, a economia e os programas sociais do estado, especialmente aqueles relacionados às autossuficiências agrícola e industrial, são tingidas pelas crenças idiossincráticas dos líderes locais e pelas experiências peculiares da vida sob um grande bloqueio.

A questão da comida é particularmente querida dos nakichevans com quem falei. Memórias da agricultura soviética e da escassez no começo dos anos 1990, juntamente com a insegurança de uma economia altamente dependente de duas pequenas pontes, levou a uma obsessão por segurança alimentar, sustentabilidade e autossuficiência. O que eles alcançaram em termos de laticínios, carne, trigo, ovos e lã (cinco dos 334 produtos produzidos na região, uma estatística repetida várias vezes; 330 dos quais são autossuficientes, 33 deles agrícolas). Uma autarquia essencialmente. Uma política econômica rara do mundo moderno associada a reinos ermitões e governos excêntricos que se isolam do mundo de forma intencional. Autarquias notáveis do passado recente incluem o Afeganistão Talibã, o Mianmar de Ne Win, o Camboja do Khmer Rouge, a Coreia do Norte, a Espanha franquista e por aí vai.

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Mostruário dos produtos autossuficientes locais.

Além do empurrão histórico e psicológico para a autossuficiência, a autarquia de Nakichevan tem uma pegada mais orgânica e slow food. Os nakichevans se recusam veementemente a usar transgênicos, apesar do impulso que poderia oferecer à produção agrícola. Eles usam agricultura automatizada de grande escala, mas se recusam a ultrapassar os limites das fazendas industriais e insistem em fazer toda a forragem dos animais com produtos orgânicos produzidos localmente.

E eles adoram se gabar de como seus produtos e sua cozinha são bons por causa disso: de como um limão de Ordabad custa dez manats azerbaijaneses, com os quais você poderia comprar dez limões turcos, mas como as pessoas (incluindo os turcos) ainda preferem os limões de Ordabad. De como a geleia de damasco deles é a mais complexa e deliciosa conhecida pelo ser humano. De quando você come ovos Ordabad (um grande omelete com mel e cozido sem óleo) você nunca mais vai querer saber de nenhum outro prato de ovo na vida. De como o sal local deles passa mais fácil pelo corpo e ajuda a evitar a artrite. E de como as pessoas sempre querem levar a água, as frutas e até ovelhas inteiras quando voltam pra casa depois de visitar o Nakichevan. Todas as refeições são preparadas com produtos locais e servidas com suco, carne e frutas orgânicas. Na verdade, as únicas coisas não locais são as frutas e os vegetais subtropicais.

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Isso é tudo parte da obsessão regional com a ideia de que a comida é a cultura. Como meu guia disse: “Sem comida, nossa cultura é incompleta. Para entender a identidade da uma nação, entenda sua cozinha”.

Uma seleção de vodcas de ervas das montanhas.

Outra parte essencial dessa crença no poder da comida é a crença no poder da medicina alternativa. O Nakichevan cultiva 300 tipos de ervas das montanhas e com elas faz toda uma variedade de vodcas. Eles também acreditam que comer essas ervas pode te deixar imortal. Meu guia me contou a história de um amigo que teve câncer no estômago, voltou para o Nakichevan e passou uma semana comendo ervas da montanha direto do chão como uma ovelha. Ele viveu mais 45 anos. Também ouvi falar sobre banhos de água mineral que curaram os nervos lesionados e a mão paralisada de um turco, e sobre as profundas e antigas cavernas de sal de Duzdag, onde as pessoas acampam por dias e até meses em cabanas construídas lá dentro e saem curadas da asma e vários outros males.

Interior de uma caverna de sal de Nakichevan.

Os nakichevans querem promover esses lugares para o turismo ecológico. E também estão promovendo turismo religioso centrado em Ashab al-Kaf, associada à tradição do Alcorão, e à Tumba de Noé que, segundo eles, diferentemente da história armênia, teria batido sua arca na Montanha Ilandagh, jogando a âncora e fundando o Nakichevan. Esse interesse em turismo verde e religioso, assim como turismos nos vilarejos e de caridade, contrastam com o hotel cinco estrelas e resort de luxo do país principal.

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Representante do Nakichevan falando sobre como as árvores que eles estão plantando são incríveis.

A segunda obsessão das pessoas aqui, depois da comida, são as árvores. Todo sábado, membros do governo e os principais cidadãos escolhem um novo lote para desenvolver plantando árvores, a ideia é substituir aquelas perdidas durante o bloqueio. Meu guia ocasionalmente parava para apontar pela janela: “Aquela é minha… aquela também… aquela outra também”. São mudas magricelas, que fazem o país inteiro parecer um shopping center recém-construído. Mas é parte da obsessão pela limpeza e restauração – o governo, por medo dos danos ao meio ambiente e à saúde dos moradores, chegou a interromper por dez anos a construção de uma grande indústria de cimento que criaria muitos empregos. Eles só terminaram a construção quando acharam um sistema de ventilação de alta tecnologia que eliminasse a imundície associada ao processo.

Blocos de apartamentos no centro da Cidade de Nakichevan.

Mas o que realmente me fez pensar em São Francisco foi o foco maciço em tecnologia. E, mais uma vez, as reformas nas comunicações e no trânsito na nação parecem uma reação razoável à memória de isolamento do começo dos anos 1990. Atualmente, eles desenvolvem companhias locais de telefonia celular e internet, e pretendem modernizar e restaurar todas as estradas da região até 2015. Mas, do mesmo jeito que na agricultura e na tecnologia, os nakichevans levaram essas coisas um passo adiante. Alguns dos ministros do governo local se autoproclamam técnicos e pressionaram fortemente para que o uso da internet chegasse a 72% da população (um deles reclamou comigo que são os velhos teimosos, aqueles que se recusam a usar computador, que empatavam o 100% de uso de internet no estado). Eles já levam Wi-Fi para oito distritos e 200 vilarejos – até aqueles próximos da fronteira com a Armênia. Agora, estão começando um projeto ambicioso de levar cabos de fibra ótica para regiões inteiras, o que é… Como em São Francisco.

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Mas, enquanto o establishment liberal da Costa Oeste (onde eu cresci) tem como raiz o progressismo tecnológico em moralidade e utopia, há algo mais defensivo e feroz na reconstrução e mudança de marca do Nakichevan. Escondida em quase todas as conversas, há uma menção a Armênia e sua campanha para se apropriar e degradar cada aspecto da cultura nakichevan (os armênios acusam o Azerbaijão da mesma coisa). Depois de mais uma aula sobre os méritos da comida de Nakichevan, meus anfitriões me entregaram um dos volumes da enorme enciclopédia culinária patrocinada pelo estado (são cinco volumes sobre toda a cultura nakichevan) criada com o propósito de preservar o que pertence ao Azerbaijão e protegê-lo da Armênia. Disseram-me que os armênios recentemente tinham tentado se apropriar de uma raça inteira de ovelhas.

Não é uma preocupação irracional. Frequentemente, esquecemos que o poder da URSS criou novas histórias e identidades para reescrever a etnia e remodelar a própria terra. É importante imaginar o poder psicológico dessa experiência quando andamos pela Ásia Central e pelas Montanhas do Cáucaso. Mas esse mesmo legado, e o isolamento absoluto entre armênios e azeris, criou uma relação que, de certa maneira, duvida da realidade. Um nakichevan chegou a afirmar para mim que só havia sobrado 1 milhão de pessoas desesperadas na Armênia – auditorias internacionais contabilizam a população de lá em algo em torno de 3,1 milhões. Da mesma forma, impulsionando a herança e o poder do povo azeri, essa mesma pessoa me disse que havia 35 milhões de azeris no Irã – 5 milhões só em Teerã. Se fosse assim, 45% da população do Irã seria azeri e 40% de azeris no Teerã. A maioria dos estudos mostra que os azeri são 16% da população lá.

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Cidade de Nakichevan.

E as pessoas aqui acreditam piamente nesses “fatos”. Tudo tem a ver com o orgulho nakichevan. Uma pesquisa rápida sobre o patriotismo do país encontra uma base regular: os nakichevans são conhecidos como a parte mais hospitaleira e intelectual do Azerbaijão. O estado é conhecido por seu sal, suas garotas e seus melões (aparentemente, nessa ordem mesmo). É o lar do líder nacional Heydar Aliev e onde a bandeira do Azerbaijão foi criada, bem como o épico nacional azeri. Na verdade, aqui é o lar de uma das civilizações mais antigas. É o centro do mundo. É a casa de Noé, portanto, o berço da humanidade.

E tudo que é bom em Baku vem de Nakichevan. Se eles fazem alguma coisa certa, é porque aprenderam com o Nakichevan. Meus amigos de Baku acham isso extremamente arrogante, mas ficam impressionados com a cara de pau.

Apesar dessa cara de pau e da obstinada dissonância cognitiva — lembrando da presença dos atiradores armênios nas fronteiras e se forçando a esquecer o passado para focar no desenvolvimento — algo da memória militarizada do começo dos anos 1990 assombra o lugar. Parei no liceu militar local, onde centenas de meninos vivem como espartanos e se preparam para carreiras militares em potencial (potencial, mas não obrigatória). Casualmente, o chefe da escola mencionou que três dias antes eles perderam um ex-estudante para um atirador na fronteira – um entre os milhares que já morreram em conflitos desde o cessar-fogo, três só dessa escola de elite. A fábrica de carros local também produz veículos subsidiados para aqueles paralisados nos conflitos de Nagorno-Karabakh (parte da guerra maior com a Armênia), cuja presença é um lembrete constante de violência e instabilidade ainda maiores num passado não tão distante.

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Os nakichevans sabem o quanto isso tudo é precário. O estado só conseguiu apagar a imagem de desolação dos anos 1990 restabelecendo as comunicações e acessando as fontes de energia e riquezas do governo central (cerca de 2% da receita nacional vem do desenvolvimento de Nakichevan, juntamente com concessões de gás natural e incentivos fiscais). Muito disso depende de que a relação com a Armênia se mantenha estável. Também depende da cooperação do Irã, que é por onde entram e saem os produtos em Nakichevan. Agora, alguns políticos iranianos estão intensificando a retórica perturbadora de ameaçar anexar algumas partes do Azerbaijão (incluindo a capital, Baku).

Se os laços com Baku forem prejudicados, ou se a guerra voltar, todo o apoio que sustenta o Nakichevan vai cair. Mas mesmo se a paz vier, o país depende tanto de seu controle de preços, autarquia, mão de obra barata e esquemas de subsídio, que ninguém sabe o que será desse pequeno bastião de técnicos ultraprogressistas ecológicos entrando num mundo política e economicamente novo. Essa São Francisco bizarra foi uma surpresa agradável e minou todas as minhas expectativas de um exclave que no passado recente foi sitiado e bloqueado — mesmo que os moradores sejam um pouco arrogantes sobre isso — mas, se isso será um acidente passageiro na história ou um inesperado Vale do Silício do Cáucaso, bom, só esperando para ver.

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