Fugi da Síria, mas não tenho como escapar à burocracia europeia
Foto por Frederieke van der Molen

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Novos Vizinhos

Fugi da Síria, mas não tenho como escapar à burocracia europeia

E foi por isso que desenvolvi uma app para me ajudar. A mim, bem como a outros refugiados.
PS
Traduzido por Pedro Sacramento

Este artigo faz parte da nossa série Novos Vizinhos, em que jovens refugiados de toda a Europa são editores convidados da VICE.com. Lê a Carta da Editora aqui.


Mohab* é um refugiado sírio de 19 anos. Cresceu na cidade de Hama e chegou à Holanda no ano passado.

Aqui estou eu, em Amesterdão, a aprender holandês e a tentar encontrar o meu lugar. Os meus pais ainda estão na Síria, na cidade de Hama. Eles arriscaram tudo e decidiram ficar para que o meu irmão e eu possamos ter um futuro, mas eu não sou capaz de seguir em frente com a minha vida. A minha vida estava em Hama, onde ficaram a minha escola, os meus amigos e a minha família. Entristece-me muito pensar nisso, mesmo sabendo que agora estou seguro e confortável aqui.

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A cidade de Hama ficou célebre pelas manifestações e massacres de 1982. Mas também é a minha cidade natal e tenho muito boas recordações dela. O meu irmão é menor de idade e está agora na Suécia. Pedimos um visto de "reencontro familiar" para que os meus pais possam ir ter com ele, mas o processo é muito mais complicado do que seria de esperar. Para poderem entrar no país, os meus pais têm que se dirigir primeiro a uma embaixada sueca para serem entrevistados. Obviamente, agora não há nenhuma embaixada sueca na Síria, nem na maioria dos países vizinhos. A solução seria os meus pais viajarem para a Turquia, mas todos sabemos que é muito perigoso viajar para norte, com o actual estado das coisas. Além de que eles já são mais velhos e não têm muito dinheiro, pelo que as probabilidades de morreram pelo caminho são enormes.

Na semana passada ficámos a saber que existe uma embaixada da Suécia no Sudão e que talvez possam obter lá o visto. Mas, mesmo que conseguissem lá chegar e ultrapassar todo o processo, teriam de esperar muito tempo até saberem se lhes é concedida, ou não, a autorização de residência. Como as rendas no Sudão não param de subir, os meus pais teriam que viajar até lá para fazer a entrevista e voltar de imediato para a Síria, para ficar à espera da resposta. É muito injusto. Os meus pais são pessoas de idade. Devia ser mais fácil para eles viajar para a Europa.


Vê também: "Luz em lugares sombrios"

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Tive que fugir do meu país com apenas 18 anos de idade. Tinha acabado o Liceu e estava muito orgulhoso disso. Tinha-me saído muito bem. Tive que trabalhar duro para conseguir tão boas notas, mas consegui. Estava prestes a atingir a maioridade e, naquela altura, o exército recrutava todos os que estivessem aptos para combater. A minha mãe não estava disposta a isso e fez tudo o que podia para nos tirar do país. Venderam a nossa casa e, com o dinheiro que fizeram, mandaram-nos para fora do país. **

Fazia qualquer coisa para ajudar os meus pais, por isso, assim que obtive a autorização de residência, fui para uma ONG, que ajuda os refugiados aqui na Holanda, para ver se me ajudavam a preencher o requerimento para o pedido de reencontro familiar, mas não valeu de nada. Um funcionário ainda me disse: "Não nos faças perder tempo, como não és menor não tens qualquer hipótese. Às vezes a vida é mesmo assim, cruel".

"Nós temos o direito de dizer o que pensamos, ou como nos sentimos. Obviamente, que me sinto agradecido por estar a salvo, mas as nossas famílias não estavam e algumas continuam a não estar".

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Decidi não ligar ao que me tinham dito e continuar a tentar. Agora estou à espera que rejeitem o meu pedido, para recorrer a um advogado. Vamos ver se assim consigo que um juiz ouça a minha história. Não é justo que os meus pais não possam vir, porque eu sou maior e que, ao mesmo tempo, me considerem menor para obter as ajudas que concedem a outros refugiados. Fui um dos poucos refugiados do campo a queixar-se do tempo que lá ficámos retidos.

Não entendia porque é que ninguém nos dizia nada e se limitavam a deixar o tempo correr. Nós temos o direito de dizer o que pensamos, ou como nos sentimos. Obviamente, que me sinto agradecido por estar a salvo, mas as nossas famílias não estavam e algumas continuam a não estar. A vida no acampamento era muito difícil: não tínhamos dinheiro e não havia nada a fazer senão esperar. Houve pessoas que nos ajudaram, mas foram principalmente cidadãos de Amesterdão, não foram os membros das ONGs.

Neste momento só quero que os meus pais estejam em segurança e ajudar os outros. Só depois poderei relaxar e começar a planear o futuro.

"Decidi que tinha que fazer algo por isto e lembrei-me de criar uma aplicação para ajudar os refugiados a requerer o visto".

Muitos homens desesperam e perderam a paciência para esta longa espera. Alguns tinham dinheiro, mas os que não tinham nem dormiam nem comiam. Quem fumava tinha que pedir dinheiro para comprar tabaco. Advertiram-nos para não roubar, nem fazer nada de errado durante a espera, porque isso poderia significar perder automaticamente a oportunidade de obter o visto. Por isso ninguém reclamava. Os que falamos inglês, podemos fazer mais qualquer coisa que os outros, como ter aulas de holandês, mas aos outros refugiados não é permitido fazer mais nada além de tentarem contactar as suas famílias. Não consigo entender isto.

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Decidi que tinha que fazer algo por isto e lembrei-me de criar uma aplicação para ajudar os refugiados a requerer o visto. Na Internet há muita informação, mas está espalhada por um monte de sites e não há um lugar onde esteja tudo reunido. O que fiz foi reunir toda a informação numa aplicação para smartphone, chamada RefInfo, para que os refugiados que falam árabe e Inglês saibam quais são os primeiros passos a dar e o que têm de fazer para começar a aprender holandês.

Já há muitos refugiados a utilizá-la e agora estou a tentar traduzi-la para em Tigrinya, para os refugiados da Eritreia. Neste momento só quero que os meus pais estejam em segurança e ajudar os outros. Só depois poderei relaxar e começar a planear o futuro.

*O apelido foi editado


Assina aqui a petição do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que urge os governos a assegurarem um futuro em segurança para todos os refugiados.

Na Holanda, podes contribuir para a ONG Stichting Vluchteling aqui.