O YouTube dos Mirins
Crédito: Pedro Nekoi/VICE

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O YouTube dos Mirins

A nova geração de vlogueiros vai dos três aos dez anos.

Quando éramos crianças, eu e minha irmã curtíamos usar a filmadora VHS da nossa mãe. A gente criava nomes, desenhava cenários no sulfite e fazia coisas como imitar paquitas na frente da câmera. A íntegra dos programas ia ao ar nos almoços de domingo, sem cortes ou edição. Era divertido brincar de celebs, mas, para ser famosa de verdade naquela época, tinha que aparecer na Xuxa — o que não era muito fácil, convenhamos.

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Hoje a fama das crianças mais conhecidas do Brasil ocorre mais ou menos como eu e minha irmã fazíamos, com uma camerazinha e muita espontaneidade, só que com uma diferença crucial: a plataforma que hoje alça meninas e meninos à fama não é mais o profissionalismo dos programas de tevê, e sim o amadorismo do YouTube.

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Entenda: não estou falando de pré-adolescentes ou jovens vlogueiros. Esses estão na cena há um bom tempo. Trato dos que vieram depois, os mais novinhos, a galera que ainda não tem completo domínio do próprio idioma mas que grava vários vídeos sobre assuntos infantis e conquista um público cada vez maior. Um público de, acredite, pessoinhas de 3 a 10 anos.

As crianças das quais falamos não têm idade sequer para ter um canal próprio, de acordo com as regras do site. (A política do YouTube diz que a idade mínima para ter um canal é de 13 anos e para monetizá-los, 18. "Para menores de idade, a única maneira de começar a monetizar seus vídeos é vincular a conta de um pai ou tutor que é maior de 18 anos", comunicou a assessoria por email.) Mesmo assim, com a ajuda dos pais, elas estão aí bombando.

O primeiro vídeo da Julia, de 2012, mostrando a casa das bonecas Monster High.

A Julia Silva, uma das crianças mais experientes, tem 10 anos e é a maior youtuber mirim do país. Ela descobriu a brincadeira quando morou na França, aos seis anos. Lá ela via canais de outras meninas e ficou com a ideia na cabeça. Ao voltar para o Brasil, mãe e filha foram morar em Itajubá, em Minas Gerais, mas o pai precisou ficar mais tempo na Europa. Ela quis fazer um vídeo para mostrar a ele os móveis da sua casinha de bonecas da coleção Monster High, uma franquia de bonecas inspiradas em histórias de monstros. A Paula, mãe da Julia, gravou e postou na sua própria conta do YouTube em 2012. "As pessoas viram, começaram a pedir pra ela ensinar a fazer as coisas e ela gostou disso", conta a mãe.

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Quase de imediato, Julia virou uma referência sobre Monster High no Brasil. Passou a ensinar outras crianças a fazerem os móveis, a decorarem suas casinhas e, em seguida, gravou resenhas de outros brinquedos. Com o tempo, o canal aumentou de popularidade e se profissionalizou. Os vídeos passaram a ser editados e também monetizados. Em 2015, a página bateu mais de duzentas milhões visualizações.

A Paula não fala o quanto o canal da filha rende por mês, mas diz que a fama e a influência da Julia são grandes. Segundo a mãe, a menina lida com muita naturalidade com tudo, desde encontros com os fãs até a cobrança por mais vídeos. "Ela hoje tem ciência da responsabilidade. Se ela fica um tempo sem postar, as pessoas perguntam, ficam tristes, mas os vídeos são gravados no tempo livre, é um hobby pra ela", diz.

Lulu e a mãe, Patrícia, fazem resenhas de brinquedos no Canal da Lulu.

Com a fama, vieram os seguidores. Depois que o canal da Julia começou a estourar, ela se tornou uma espécie de modelo de sucesso e inspiração para outros novinhos. Sua prima Luiza, de três anos, mora em São José dos Campos (SP) e é a estrela do Canal da Lulu.

Assim como a Julia, a especialidade da Luiza é resenhar brinquedos. O Canal da Lulu tem oito meses e conta com a participação da mãe nos vídeos, a Patrícia. Ela começou a aparecer nos vídeos da prima Julia e outras crianças começaram a pedir para que criasse seu próprio canal por causa de sua fofura. Os pais fizeram. Hoje o canal conta com 60 mil inscritos.

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Além da prima da Julia, outras crianças do Brasil inteiro passaram a criar vlogs. A Manoela Antelo mora no Rio de Janeiro, tem 10 anos e é dona do segundo maior canal infantil do YouTube. A história é parecida com a de Julia – de quem já era fã – e da maioria das crianças que estão pelo site: um vídeo para mostrar um brinquedo foi parar no site de vídeos e, depois, rolou um inesperado sucesso. Em 2013, aos oito anos, Manoela ganhou uma casa da Barbie e quis gravar um vídeo para mostrar o presente. Seu vídeo bombou porque ela foi a primeira menina brasileira a mostrar a tal da casa. A seguir, o tio dela gravou reação da garota ganhando outro bichinho, o Furby. Daí pra frente bombou.

O vídeo da Manoela ganhando o Furby

Manoela tem, assim como Julia, a vocação para lidar com a câmera. As ideias são dela mesma e quem edita é o tio Luan. Ela ainda está em dúvida entre três carreiras para o futuro: moda, jornalismo e psicologia, mas já tem a certeza de que quer ser youtuber por um bom tempo. "Ela fala que quer trabalhar com isso", conta a mãe, Vênus. "Mas eu falo que, fora isso, ela tem que ter uma profissão, então ela não sabe ainda, mas diz que quer continuar fazendo vídeos. Os seguidores dela vão crescendo junto, isso vai ser bacana. As crianças vão acompanhando, vão mudando os tipos de vídeo conforme ela for crescendo e eles vão indo."

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Aos oito anos, Manoela ganhou uma casa da Barbie e gravou um vídeo para mostrar o presente. O vídeo bombou porque ela foi a primeira brasileira a mostrar a tal da casa.

A Amanda é uma das amigas da Manoela, mora em São Paulo e tem 11 anos. Seu canal, Vida de Amy, tem um ano e meio e começou porque ela já conhecia outras youtubers e queria mostrar suas bonecas e seu quarto para outras crianças. A mãe achava a ideia estranha e ficou relutante; disse não por uns dois anos, mas acabou cedendo. "Chegou um momento em que eu pensei que ela mesma vai crescer, fazer o canal e não terei controle sobre isso. Seria pior ainda. Chega uma hora que se você proíbe demais, só piora. Então eu falei que já que vai fazer, vai fazer sobre a minha supervisão", conta Sheila, a mãe da Amanda.

O esquema dos vídeos da Amanda é gravar o que os fãs pedem, mas sem muita obrigação. O limite, para a Sheila, é não expor a privacidade da filha. "Ela pode mostrar a vida dela como criança, que é uma vida como qualquer outra criança, mas a gente toma cuidado, porque a internet tá cheia de gente maldosa, tem pedófilo, tem de tudo."

Amanda mostrando um pouco da sua rotina.

Amanda faz acompanhamento psicológico para aprender a lidar com todas as novidades. Uma das coisas que a Sheila acha importante que sua filha saiba é que o sucesso pode não ser para sempre. "Me preocupei muito quando vi que cresceu, tanto pro crescimento, pra parte boa, quanto para uma futura frustração, porque a gente sabe que essa é uma época em que as coisas acontecem muito rápido. Agora ela tá no auge, tá crescendo, é reconhecida, mas amanhã pode ser outra coisa e todo mundo esquece dela", diz.

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Todos os pais com quem conversei afirmaram controlar tudo o que as crianças fazem na rede. Eles dizem tomar cuidado para não dar referências de onde as crianças estudam e os lugares que elas frequentam. A psicóloga Sandra Albanese, especialista em terapia cognitiva e comportamental infantil, aconselha que os pais sempre estejam ligados no que os filhos postam na internet e imponham algumas regras. "Os pais têm que verificar o conteúdo. Tem que ter limites de horários, não pode deixar na mão da criança a decisão. É importante que a criança vá à escola, faça os deveres, tenha horários para brincar também fora da realidade virtual", diz a especialista.

Na opinião da Sandra, é importante que os pais ensinem aos pequenos a lidarem com as críticas negativas que podem receber. "Na internet tem muita maldade e alguns comentários podem ser depreciativos e devem ser filtrados, mas acredito que é preciso deixar a criança ter acesso a algumas críticas, sim, porque na vida nem sempre a gente é aplaudido. Faz parte do aprendizado e cabe aos pais estarem ao lado e ajudarem a administrar essas críticas", diz.

O vídeo que a Amanda fez do encontro de YouTubers Mirins que rolou em julho desse ano, em São Paulo.

A psicóloga Carolina Freire de Carvalho, mestre em psicologia escolar pela PUC de Campinas, alerta que é importante que os pais não sejam ingênuos quando falamos de crianças e internet. "A internet não é o seu melhor amigo, nem seu maior inimigo: ela é um espaço virtual público como o mundo todo", diz. Ela aponta que os canais podem ser bons para despertar o interesse das crianças por outras brincadeiras e descobertas do mundo ao redor delas, mas não é apoiadora da iniciativa. "Não vejo de forma positiva crianças com canal ou conta em redes sociais fazendo coisas do mundo adulto. Já vivemos numa sociedade que erotiza a infância, por exemplo, e que coloca a criança como potencial consumidora", argumenta.

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Uma das consequências dessa tendência da criançada no YouTube é que os pequenos são colocados cada vez mais cedo em contato com o mundo do consumo. "É uma questão de desejo por um objeto, a criança idealiza que o brinquedo vai lhe trazer algo muito bom. Isso acontece com os adultos no Facebook: as pessoas postam só coisas boas e idealizam a vida do outro", diz a Sandra. "Esse processo está começando muito cedo agora." Para ela, porém, não tem tanta diferença em relação à geração anterior: assim como a TV foi considerada uma ferramenta de alienação da geração passada, a internet exerce esse papel no século XXI. "Cada geração tem a sua dúvida."

A gente não sabe no que essa brincadeira vai dar, mas, enquanto isso, os pequenos estão aí divertindo uns aos outros. Talvez o parquinho tenha mudado mesmo de lugar.