FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

William Gibson Não Faz a Menor Ideia de Como Seremos Vistos no Futuro

"A única constante em como olhamos para trás é que nunca vemos os habitantes do passado como eles próprios se viam."
William Gibson. Crédito: Michael O'Shea

Não chame William Gibson de oráculo. Evidentemente, ele foi o primeiro escritor de ficção científica a notar que a zona semântica por trás das telas de computador pode ser tão vasta e tão atrativa quanto o cosmos. E sim, ele batizou essa zona – ciberespaço, um neologismo que ajudou a provocar nossas imaginações nos primórdios da internet. Por isso, ele foi considerado um profeta, e suas predições foram dissecadas em busca de viabilidade tecnológica.

Publicidade

O apelido foi dado com a intenção de elogiar, é claro, mas Gibson é muito mais do que um caçador de tendências futurista. Ele é um grande escritor, um dos nossos melhores. O modo com que ele pensa sobre o futuro está enraizado em um entendimento quase solene do passado – e uma consciência afiada de que a história, irreconhecível e com uma capacidade de adaptar à narrativa os requerimentos de quem controla a maneira como a ensinamos, é tão especulativa quanto o futuro mais improvável da ficção científica.

The Peripheral, seu primeiro romance em quatro anos, será lançado no final do mês. É o primeiro de seus romances a se passar no futuro em mais de dez anos, e Gibson compensa a ausência colocando na narrativa não uma, mas duas linhas do tempo diferentes. Uma mostra um futuro próximo e relativamente reconhecível; a outra mostra um mundo profundamente mudado e marcado pelas consequências de nosso presente descomedido.

É um livro perturbador e refrator. Nele, Gibson consegue não apenas olhar para o futuro, mas imaginar como os residentes do futuro poderiam se sentir ao olhar para nós, em seu passado. Os leitores que vasculharem The Peripheral em busca de especulações futuristas do oráculo vão, ao invés disso, se deparar com um espelho que os fará perceber, talvez, que cada momento do hoje eventualmente virará o ontem distante de alguém.

Eu tive sete sonhos causados por ansiedade na noite anterior à minha conversa com William Gibson pelo telefone, mas ele foi um entrevistado tão gracioso quanto qualquer cyberpunk trêmula poderia esperar.

Publicidade

Motherboard: Em The Peripheral, o futuro envia instruções ao passado para a construção de coisas, mas as capacidades tecnológicas do passado são tão limitadas, que quando as instruções são seguidas, o resultado final é uma versão complexa e rudimentar da coisa. Você acha que não temos os recursos necessários para perceber o futuro em seu próprio nível, com igualdade?

William Gibson: Uma das coisas com que brinco em The Peripheral é o jeito com que, em estórias de viagem no tempo, tendemos a imaginar que as pessoas no passado são caipiras e ingênuas. E quando imaginamos pessoas do futuro em estórias de viagem no tempo, elas sempre são fracas e decadentes. Isto parece se manter como dado desde H.G. Wells, esses dois elementos.

Você sempre começa um novo livro com uma frase inicial em mente. Quando você sabia que tinha a frase inicial de The Peripheral?

No começo, tudo o que eu tinha era uma jovem caminhando pelo que parecia ser uma colina numa área rural, indo fazer alguma coisa. Eu penso que os personagens que dão mais certo comigo são aqueles que não surgem de nenhum lugar específico. Eles meio que aparecem batendo na janela no meio da tempestade. Deixo eles entrarem e faço um teste, e de repente eles dominam todo o livro. Eu assumi que esta menina fosse a personagem central do livro, mas podia ter se desenvolvido de outro jeito.

Quanto a saber que tinha achado a frase inicial: meu método de escrita, como ele é, é tão torturante e repetitivo, que não acho que defini as primeiras páginas completamente até entregar o rascunho posterior ao rascunho da prova que você leu. Eu ficava ajustando tudo – é uma coisa obsessiva – fico fazendo ajustes até o processo finalmente me forçar a parar.

Publicidade

Na sua entrevista para o The Paris Review, que eu adoro, você fala sobre como, no início da carreira, você estava reagindo contrariamente à maneira com que a ficção científica que você lia quando menor representava a tecnologia. Uma tecnologia tão límpida e polida, que era "praticamente invisível."

Mesmo na era da ficção científica sobre a qual eu reclamava – mesmo naquela época, Arthur C. Clarke disse que qualquer tecnologia suficientemente desenvolvida é indistinguível de mágica. Nunca duvidei disso. Nunca duvidei de que se fôssemos capazes, de alguma maneira, de experimentar uma tecnologia muito mais avançada que a nossa, algo que sequer imaginamos. Poderia ser um bruxo demonstrando um feitiço.

A tecnologia em The Peripheral, na verdade, andou um pouco para trás em alguns pontos. Por exemplo, pensei num modelo completo de comunicação, de smartphones integrados, que era exatamente igual a telepatia e que envolvia sonhos comunitários. Eu achava que seria uma boa amostra de extrapolação total, mas quando fiz um capítulo de teste – quando introduzi essa ideia – foi impossível de usar, porque era muito dispersante. Era tão estranho, que era impossível. Eu sabia que os leitores não conseguiriam seguir o que, de fato, era a narrativa.

Eles ficariam perdidos numa experiência interessante e estranha, então só dei a eles uma tecnologia de smartphones um pouco mais avançada. Mesmo assim, acho que vai distrair algumas pessoas, porque os telefones são integrados. Acho que quem não é leitor nativo de ficção científica vai achar isso um pouco difícil, mas o telefone-telepata totalmente extrapolado acabava com a história toda! Era impossível contar a história, porque a tecnologia era muito bizarra.

Publicidade

Acho que se alguém tivesse sonhado com a nossa tecnologia de smarphones do jeito que ela é hoje nos anos 1950, e tivesse escrito uma história de ficção científica, duvido que houvesse sido publicada. Seria muito difícil contar uma história e, ao mesmo tempo, descrever o que essas pessoas faziam com as tais televisões de bolso, esquistíssimas.

A única constante em como olhamos para TRás é que nunca vemos os habitantes do passado como eles próprios se viam.

Com tantas invenções tecnológicas, as coisas que mais me afetam em The Peripheral são os objetos que sobrevivem de uma linha do tempo à outra.

Eu cresci num lugar antigo do Sul, e havia muitas coisas velhas por lá. Até onde consigo lembrar, eu tive essa noção, uma noção meio pungente, de coisas. Eu vejo coisas em um mercado de pulgas que têm algumas centenas de anos, e podem não ser objetos com muito significado, mas há centenas de anos, um dia, eles importavam muito para alguém. E não temos como saber quem. E nesse mercado todo, tudo ali carrega uma história secreta dos objetos. Eu acho que em algum ponto me ocorreu que, dentro da estrutura deste livro, se ele se concretizasse, haveria uma história secreta dos objetos. As pessoas no futuro poderiam até ir a lojas de antiguidades especializadas para comprar pedaços e pedacinhos do passado físico.

Isso parece as antiguidades históricas americanas de O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick – você diz que The Peripheral é um romance de viagem no tempo, mas também parece um romance histórico alternativo, nessa linha.

Publicidade

Ele segue um pouco essa linha, e é isso que o salva de todo aquele tédio sem fim dos romances de paradoxo.

O Philip K. Dick era obcecado por historicidade. Seu livro tem muito disso também, a diferença entre o que é autenticamente velho e o que tem uma pátina falsa de idade.

Nos tempos atuais, há muita pátina falsa. Patinação-falsa? De jeans a sei lá o quê. Acho que superamos isso, pelo menos até a moda ressurgir. Acho que assumi que, no projeto imenso de fazer a curadoria de Londres para seus relativamente poucos habitantes do futuro, se eles tivessem bom gosto como eu imagino que teriam, não construiriam tudo brilhante. Se tivessem que fazer coisas novas para substituir partes perdidas, tudo teria uma aparência gasta, indistinguível do objeto histórico.

Não sei quanto tempo faz que li O Homem do Castelo Alto, mas não me lembro de Dick se preocupar com falsa historicidade. Eu não acho que ele viveu o suficiente para vivenciar de verdade, com propriedade, o horror da historicidade falsa, mas imagino que ele teria tido um ataque caso estivesse vivo.

Nos últimos dez ou vinte anos, toda a história da população humana da América do Norte sofreu mudanças violentas.

Você consegue se enxergar escrevendo um romance histórico?

Definitivamente já pensei nisso, talvez só por ter as ferramentas. As ferramentas que desenvolvi seriam, penso, ideais para o passado assim como para o futuro. Quando Bruce Sterling e eu escrevemos The Difference Engine, eu estava muito mais interessado em ver como elas funcionavam – em ver como os pedaços do passado real que usávamos funcionavam no passado alternativo que estávamos inventando.

Publicidade

A maior parte das histórias de ficção científica trata da nossa fascinação com o futuro, mas The Peripheral é muito mais sobre a fascinação do futuro conosco. O que te atrai no que o futuro pode pensar de nós?

Se houvesse um jeito de adquirir um pedaço de sabedoria do futuro – um volume da enorme estante de conhecimento de algumas centenas de anos para a frente –, eu ia querer história. Eu ia querer pegar um livro de história, saber o que eles pensam de nós. Dali, eu poderia inferir qualquer outra coisa que eu pudesse querer saber sobre o futuro. A única constante, me parece, em como olhamos trás, e como já olhamos antes, é que nunca vemos os habitantes do passado como eles próprios se viam.

Temos uma ideia bem detalhada de como os vitorianos viviam. Eles não estão tão distantes, mas eram diferentes. Suas visões de si não são nada como a nossa visão deles. Eles provavelmente não achavam que eram puritanos e pervertidos. Eles provavelmente não pensavam que as condições de trabalho infantil eram tão problemáticas. Certamente, eles não achavam que o colonialismo era um problema – era uma característica, não um defeito. Todo o modelo econômico era baseado nisso. Vemos os vitorianos de um jeito diferente, e acho que o futuro não nos verá de forma nem um pouco parecida como nos vemos.

Parte do meu método de ficção, que eu acho que se tornou mais claro para mim enquanto escrevia este livro, é que eu sempre supus que a história é uma disciplina tão especulativa quanto a ficção científica. Nossa narrativa da história muda conforme caminhamos, e a centenas de anos daqui, o passado profundo – assumindo que a tecnologia continue crescendo no mesmo ritmo – o profundo passado humano que essas pessoas enxergarão será irreconhecível para nós.

Não temos a tecnologia para enxergar a nossa realidade, mas eles provavelmente terão. Nos últimos dez ou vinte anos, toda a história da população humana da América do Norte sofreu mudanças violentas, e isso provavelmente continuará. Esse tipo de história continua mudando.

Tradução: Stephanie Fernandes