Os Dois Lados da Pílula Anticoncepcional
Crédito: Juliana Lucato

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Os Dois Lados da Pílula Anticoncepcional

A pílula anticoncepcional está no mercado desde os anos 60 e revolucionou o comportamento sexual de uma geração. Mas nem tudo é tão bonito assim.

As mulheres buscam nos contraceptivos a autonomia sobre seus corpos, o poder de decidir quando e quantos filhos ter. Apesar dessa vantagem, a primeira pílula que tomei bateu bem ruim. Isso também aconteceu com várias outras mulheres. Algumas desenvolveram só os efeitos colaterais chatos de espinhas infernais no rosto ou perda de libido, mas outras foram parar na UTI por causa do hormônio ingerido todos os dias por anos a fio. Assim, sabemos dos benefícios. Mas quais os problemas que a pílula anticoncepcional pode trazer?

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A pílula anticoncepcional surgiu nos anos 50 nos EUA, e começou a ser comercializada nos anos 60. Ela foi uma das grandes responsáveis pela queda na taxa de natalidade de muitos países e também pela revolução sexual de uma geração.

O químico mexicano Luís Miramontes descobriu em 1951 como extrair progesterona sintética de plantas para que o medicamento pudesse ser feito na indústria. As pílulas comercializadas de fato desde o início são as combinadas de estrogênio e progesterona. A ginecologista Ana Luiza Antunes Faria, do Hospital Pérola Byington em São Paulo, me explicou que a progesterona é a responsável pelo efeito contraceptivo da pílula, o estrogênio controla o padrão do fluxo menstrual e potencializa o efeito da progesterona. A mecânica da pílula não é simples. A progesterona engana nosso cérebro para achar que ovulamos todo mês, impedindo a liberação do hormônio FSH (responsável pelo crescimento do óvulo), o que impede a ovulação de fato.

Entre prós e contras, não ovular permitiu às mulheres controlarem o número de filhos que queriam ter. Consequentemente, elas passaram a ocupar espaços fora do lar, foram para as universidades e entraram de vez para o mercado de trabalho.

"As pílulas não foram feitas para a emancipação feminina, mas as mulheres a transformaram num instrumento de emancipação"

No Brasil, a primeira pílula que surgiu no mercado foi a ENOVID, em 1962. Joana Maria Pedro, historiadora, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e autora do trabalho "A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração", conta que elas surgiram para o controle de natalidade no país em um contexto de ditadura militar. "As pílulas não foram feitas para a emancipação feminina, mas as mulheres transformaram a pílula, que era para reduzir a população, num instrumento de emancipação", diz a professora.

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As primeiras opções de pílulas continham uma dose bem alta de hormônios, o que gerava efeitos colaterais fortíssimos. Esses efeitos eram consequências de 150 microgramas de etinilestradiol, que é o estrógeno sintético utilizado na composição das pílulas. Apenas para criar um parâmetro, as pílulas consideradas de alta dosagem hoje em dia contêm 50 microgramas de etinilestradiol. Era hormônio pacas.

Mesmo assim, elas engoliam o remédio ruim para evitar acabarem como suas mães, que eram mães de pelo menos quatro, cinco filhos ou mais.

Hoje em dia, a maioria dos anticoncepcionais comercializados são considerados de baixa dosagem, com 15 a 35 microgramas de etinilestradiol. Além da pílula oral, as mulheres têm opções de injeções (trimestrais e mensais), anéis vaginais, adesivos, DIUs (de cobre e medicado) e implantes.

No entanto, todos os métodos apresentam falhas. O Índice de Pearl existe para apontar a taxa de falha do anticoncepcional. Ele gira em torno de 0,3 até 1,25 a cada 100. Ou seja, uma única mulher usuária de anticoncepcional pode engravidar a cada 100, em condições ideais. Essas condições ideais são fatores que dependem da mulher. Uma grande falha da pílula está no esquecimento.

A eficácia de qualquer método anticoncepcional fica acima dos 97% se você usá-lo direitinho

Quando eu tinha 17 anos, comecei a tomar pílula pela primeira vez. Durante as primeiras semanas, tomava religiosamente todos os dias no mesmo horário. Depois de um tempo, percebi minha incapacidade de lembrar de tomar remédio todo dia. Essa falha de memória eleva o índice de 2,5 até 8 mulheres a cada 100. Mesmo assim, a eficácia de qualquer método anticoncepcional fica acima dos 97% se você usá-lo direitinho.

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Além da questão da eficácia, outro problema da pílula são os efeitos colaterais, gerados principalmente pelo composto estrogênico do remédio. Desde os primórdios da história dos contraceptivos, existem os efeitos colaterais. Os mais leves eu senti na pele, passei por pelo menos três marcas de pílulas que geraram os mesmos efeitos: acne, ganho de peso, perda de libido, enjoos, TPM, entre outros que tornam o cotidiano bem insuportável. Isso pode ser resolvido com a alteração do método, uma pílula que dá enjoo pode ser trocada por um anel vaginal ou uma injeção.

O grande problema de verdade são os efeitos que podem gerar complicações de saúde graves, como embolia pulmonar e trombose. A partir dos anos 60, os índices de trombose entre as mulheres subiram bastante por conta do uso do contraceptivo. "A partir do momento em que a pílula caiu para baixo de 50 microgramas de etinilestradiol, a incidência [de trombose] drasticamente diminuiu ", afirma a doutora Ana. Por isso, hoje, os médicos consideram esses casos raros, mas não é possível medir a raridade deles, uma vez que os casos não são registrados, pelo menos no Brasil.

De acordo com a Anvisa, não existe uma legislação que obrigue os médicos a notificarem os casos. "Infelizmente, segundo dados da Organização Pan-americana de Saúde, OPAS, apenas 5 % dos médicos notificam, e do universo de eventos adversos, apenas 10 % das reações adversas são notificadas", afirma documento elaborado pela Gerência de Análise e Avaliação do Risco da Anvisa em relação aos medicamentos anticoncepcionais, enviado ao Motherboard por email.

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Esse mesmo documento aponta que apenas três relatos de eventos tromboembólicos pelo uso da pílula Yasmin foram notificados no sistema Notivisa, que pode ser utilizado por pacientes e médicos.

A Bayer, grupo responsável pela Yasmin, afirma em nota, também enviada por email, que o medicamento "é eficaz e tem um perfil de segurança (benefício-risco) favorável, quando usado da forma indicada na bula aprovada pelas agências de saúde de cada país", além de ser aprovado pelos órgãos regulatórios mundiais, inclusive a Anvisa.

Ano passado, a professora Carla Simone Castro, do Instituto Federal de Brasília, foi vítima de uma trombose venosa cerebral por conta do uso do Yasmin. "Tomei por seis meses para tratar um mioma. Eu nunca tinha tomado anticoncepcional na vida, minha médica indicou, porque eu queria operar e ela achou que não era necessário. Seis meses depois, eu estava na UTI", diz ela. Para alertar outras meninas do risco do Yasmin, ela fez um vídeo que viralizou no Facebook. Com o vídeo, ela começou a receber mensagens de outras pessoas que também tiveram problemas relacionados à trombose por causa do uso de contraceptivos. Ela e mais uma pessoa fundaram uma página no Facebook para denunciar outros casos e mostrar às mulheres que elas não estavam sozinhas.

"Nem todo mundo que fuma vai ter câncer, nem todo mundo que usa hormônio vai ter trombose, mas se existe o risco, tem que ter uma comunicação mais clara sobre isso"

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Hoje, a página virou um movimento. "Nós estamos buscando junto com a deputada federal Mara Gabrilli a implementação de uma lei para regulamentar a venda desse tipo de medicamento, que é a lei dos anticoncepcionais. Porque hoje eles são vendidos sem receita, e a gente acha que precisa colocar na embalagem o risco iminente de trombose, assim como é no cigarro. Nem todo mundo que fuma vai ter câncer, nem todo mundo que usa hormônio vai ter trombose", explica Carla. Mas, apesar de a informação sobre o aumento do risco da doença vir escrita na bula dos remédios, "se existe o risco, tem que ter uma comunicação mais clara sobre isso", diz a professora.

Durante a apuração para essa reportagem, ouvi outras histórias, até de meninas de 20 e poucos anos, com embolia pulmonar e eritemas nas pernas relacionadas ao uso do anticoncepcional, principalmente o oral, mas também o anel vaginal, Nuvaring.

A doutora Ana lembra que saber a história da paciente é muito importante antes de receitar o anticoncepcional. "Sem medicamento nenhum a gente já tem risco de trombose de cinco, seis a cada 10 mil pacientes. Pacientes hipertensas acima dos 35 anos têm um risco muito maior de trombose se tomarem o contraceptivo oral. Pacientes com mutação genética de alguns fatores de coagulação podem aumentar, e por si só ela já tem oito vezes o risco, com a pílula aumenta de 15 a 30 vezes o risco de trombose, e às vezes ela não sabe que tem esse fator", diz a médica.

Para saber se você tem o fator genético, é preciso fazer um exame de mapeamento de mutação genética. Infelizmente, a doutora diz que já foram feitas tentativas de mapear esse tipo de mutação genética em toda a população e foi concluído que o número de pessoas com mutação na população geral é muito baixo, então o número de pessoas que teriam que ser rastreadas para detectar uma com potencial trombose seria muito grande. "Isso em questão de custos pra saúde pública não faz sentido, a conta não fecha", ela diz.

Além disso, apesar dos pesares, a pílula não deixa de ser um tipo de invenção brilhante. "Quantas gravidezes indesejadas, quantos abortos indesejados e mortes maternas relacionadas a um aborto você evitou? A gente tem que pensar nos benefícios para uma população geral, no controle de natalidade geral, no controle de mortalidade do aborto. Então isso é uma vantagem muito grande da pílula", lembra a médica. "Não levante bandeiras, não existe certo ou errado."