'​3%' é uma distopia que não convence
Diálogos extremamente didáticos e um discurso genérico de exclusão social desperdiçam a chance de vermos uma boa série nacional de ficção científica. Crédito: Netflix

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'​3%' é uma distopia que não convence

Diálogos extremamente didáticos e um discurso genérico de exclusão social desperdiçam a chance de vermos uma boa série nacional de ficção científica.

Uma boa metáfora sobrevive a qualquer mesa de bar como argumento para uma história se tiver uma premissa válida. Imagina, por exemplo, esta premissa aqui: apenas 3% da população brasileira tem ensino superior completo. Este era um fato corrente e oficialmente documentado no Brasil a partir do ano 2000. Segundo o IBGE, apenas 5,5 milhões de brasileiros tinham diploma universitário, o que correspondia a 2,7% da população. É um dado definitivo para estabelecer uma condição gritante de desigualdade social, certo?

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Imagine agora um futuro distópico em que, aos 20 anos, todo mundo tivesse uma chance apenas de sair da pobreza extrema para o paraíso social. A única coisa que estes jovens precisariam fazer seria um processo seletivo muito rígido – uma metáfora clara do vestibular. Apenas 3% seriam escolhidos para ultrapassar um muro que marcava a fronteira entre a miséria e a fartura. Os demais ficariam para sempre em uma vida de escassez extrema de recursos naturais. Até que um membro da porção miserável do povo fosse infiltrado por revoltosos no processo seletivo com o objetivo único de subvertê-lo e acabar com a desigualdade… Eu pediria outro chope para ouvir mais sobre essa história. Não acharia estranho se alguns se levantassem ou mudassem de assunto.

Em poucas palavras, esta foi a premissa de 3%, um argumento para uma série de TV criado no fim da década de 2000 e inscrito em um edital do Ministério da Cultura em 2009 para concorrer a prêmios em dinheiro e exibição na emissora pública TV Brasil, parte do programa Mais Cultura do fim do segundo governo Lula. O mote do edital era retratar na TV "a realidade dos jovens, especialmente de periferia". Ao todo, foram 225 projetos inscritos. Destes, apenas 20 foram pré-selecionados depois de uma entrevista com os interessados – roteiristas, produtores, diretores. Nos dias 8 e 9 de junho de 2009, as entrevistas – ou pitching, termo técnico–- foram feitas e oito foram escolhidas para receber R$ 250 mil, verba necessária para a produção de um episódio piloto. A série "3%" foi uma das agraciadas. Por acaso, entre os 3,5% dos inscritos iniciais.

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Os episódios-piloto das oito séries foram exibidos na TV Brasil entre os dias 6 e 16 de abril de 2010, um ano depois. Apenas três foram escolhidas para receber o prêmio final de R$ 2,6 milhões. O dinheiro foi destinado à produção de 13 episódios de 26 minutos cada, a serem exibidos na TV Brasil. 3% não estava entre elas. Sua última glória teria sido em dezembro de 2010, como vencedora na categoria "Série de ficção" da Mostra Competitiva de Pilotos Brasileiros, realizada pelo Festival Internacional de Televisão, do Programa Petrobras Cultural.

Como ganharam dinheiro apenas para um piloto, divulgaram o começo da série no YouTube, em três episódios de 9 minutos, com a esperança de que alguma emissora se animasse em produzir. Na época, 3% foi uma produção assinada pela Maria Bonita Filmes. É uma criação de Pedro Aguilera e teve o piloto de 2010 dirigido por Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema. O elenco foi de jovens atores desconhecidos do grande público.

O lançamento de 3% como websérie no YouTube chamou a atenção em 2011, num momento em que produções do estilo pararam de apenas tentar a sorte nos canais de televisão e chegavam ao público via internet. Na mesma época, outras webséries como as distopias apocalípticas 2012 Onza Zero e ApocalipZe, as aventuras juvenis Lado Nix e Armadilha e a série histórica Heróis, entre muitas outras, chegaram a ter destaque na mídia, apesar do baixo desempenho em visualizações se comparadas tanto às séries de TV quanto aos demais vídeos do YouTube, como os vlogs, gameplays de Minecraft e vídeos de gatinhos em geral. Entre as webséries, 3%, apesar de inacabada, estava entre as mais aclamadas pela mídia tradicional, com menções em jornais e revistas nacionais como Época e Folha de S. Paulo e até um post no site da revista americana Wired. Parece que 2011 foi ontem, né? Mas pensa que os fãs eram alimentados com novidades em uma comunidade no Orkut…

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No lugar da metáfora original entrou um discurso genérico de exclusão social que lembra a motivação de filmes como 'Jogos Vorazes' e 'Divergente', só que sem a profundidade destes. E sabe-se que não são franquias conhecidas pela profundidade de seus roteiros.

Cinco longos anos se passaram e no dia 25 de novembro de 2016 a Netflix, gigante do streaming de filmes e séries, escolheu 3% como sua primeira série original brasileira. O argumento ainda é praticamente o mesmo criado e desenvolvido por Pedro Aguilera, mas direção e elenco tiveram reforços de peso. O novo diretor é César Charlone, responsável pela fotografia de filmes como Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel. Os protagonistas são os atores João Miguel (de Cinema, Aspirinas e Urubus e Estômago), que vive Ezequiel, o grande responsável pelo processo de seleção dos candidatos, e Bianca Comparato (destaque em novelas da TV Globo e na série Sessão de Terapia, do GNT), que interpreta Michele, a candidata cheia de mistérios que, logo de cara, é mostrada como a escolhida pelos revolucionários para tentar destruir o sistema excludente. A remontagem da série tem orçamento estimado em R$ 10 milhões e a primeira temporada foi dividida em 8 episódios de 45 minutos, todos lançados simultaneamente.

Apesar de alguns problemas de finalização em efeitos especiais – é possível ver claramente onde faltou dinheiro – a câmera de Charlone traz imagens impressionantes de um universo completamente imaginado. O lado pobre, agora chamado de Continente, tem estética semelhante a de qualquer favela brasileira, com construções improvisadas e vielas estreitas. Já a fortaleza onde é feito o processo de seleção para "o lado de lá", rico, chamado de Mar Alto, é uma abstração completa inspirada em séries futuristas como a aclamada Black Mirror.

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O grande problema é que tudo é construído sobre uma história pobre de ideias, apesar de um conceito promissor. A metáfora do vestibular precisou ser completamente desmontada, já que logo em 2012, um ano depois do piloto ser postado no YouTube, o número de brasileiros com diploma universitário tinha subido de 5,5 milhões para 25,5 milhões – de 2,7% (os 3%, senso comum antes do novo Censo do IBGE de 2010) para 13,39% da população do país.

No lugar da metáfora original entrou um discurso genérico de exclusão social que lembra a motivação de filmes como Jogos Vorazes e Divergente, só que sem a profundidade destes. E sabe-se que não são franquias conhecidas pela profundidade de seus roteiros. A semelhança está mais na escolha de atores jovens e bonitos para o elenco de candidatos com 20 anos, onde o talento de Comparato se destaca sem que ela precise se esforçar muito.

Os diálogos de Aguilera são tão didáticos para explicar o óbvio que acabam até estragando os bons mistérios da trama. Em determinado momento do primeiro episódio, Ezequiel (João Miguel é dono das melhores cenas de 3%), que está sofrendo uma espécie de auditoria de seus superiores para avaliar seu processo de seleção de candidatos, mergulha a cabeça em uma pia cheia d'água e dá a impressão que pretende se afogar, contorcendo o corpo em sofrimento. Emerge da água segundos antes de perder a consciência. Um aspecto estranho de sua personalidade que poderia durar alguns episódios como dúvida é explicado minutos depois. Sob o olhar de Aline (Viviane Porto), sua nova supervisora, ele pega a cabeça de uma funcionária que teria demonstrado emoção demais durante o processo e afunda na mesma pia futurística cheia d'água. Ela se debate, e Aline tenta evitar o que parecia uma tentativa de assassinato. Ezequiel então levanta a cabeça da moça da água e declara:

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– Eu faço isso todos os dias para lembrar que nosso trabalho é uma questão de vida… ou morte.

– Claro. Perfeito – responde a funcionária, ainda encharcada.

– Tá tudo mais claro? – ele pergunta, e ela vai embora sem dizer nada.

Mas aparentemente não estava tudo tão claro assim. E o roteiro faz questão de mastigar mais, para desespero do espectador que quer ser enganado pelo menos um pouquinho. A funcionária volta à cena e diz:

– Ezequiel, eu quero te agradecer. Tudo o que eu tenho aprendido aqui em tão pouco tempo supera qualquer coisa que eu aprenderia em outro lugar (…) Brigada.

Obrigado por ter me afogado para me ensinar esta lição, ela diz. Um diálogo digno de uma peça escolar de comemoração do fim do ano letivo. Para uma boa distopia, é necessário mais do que uma ambientação convincente, de belas imagens apocalípticas. É o roteiro que te faz acreditar na história e se envolver com ela. Enquanto a produção engordou – em verba e recursos humanos – a história, o principal, só emagreceu desde a concepção. 3% soa como uma chance desperdiçada.