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Tecnologia

Um Passeio Pelo Lado Legal da Deep Web

Famosa por seus mercados negros, a deep web também é casa de grupos de leitura, comunidades alternativas e todo tipo de grupo que quer seu anonimato garantido.
Imagem: Shutterstock

Se você mencionar a deep web em uma conversa qualquer, há boas chances de que, se alguém estiver familiarizado com ela, terá ouvido histórias sobre drogas, assassinos profissionais, e talvez mesmo os boatos grotescos sobre bonecas humanas. Mas existem muito mais serviços disponíveis na deep web, que não são nem ilegais nem ilícitos, e que variam do bizarro ao inofensivo, passando pelo revolucionário.

Estamos falando sobre sites para pessoas que gostam de passar seu tempo livre percorrendo túneis subterrâneos; sites para pessoas que são literalmente forçadas a passar seu tempo em túneis subterrâneos, por causa dos regimes ditatoriais opressivos sob os quais vivem. E há uma enorme quantidade de material extremamente específico – clubes de leitura improváveis, e fóruns sobre sadomasoquismo – que, por vários motivos, foram condenados pela sociedade.

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Mas, em primeiro lugar, se você pertence aquele grupo que simplesmente dá de ombros ao ouvir o termo, precisaremos de uma definição. O BrightPlanet, um grupo especializado em inteligência sobre a deep web, define-a simplesmente como: “qualquer coisa que um mecanismo de busca não consegue encontrar”. Isto ocorre porque mecanismos de busca só podem lhe mostrar conteúdos que seus sistemas indexaram; eles usam programas chamados de “crawlers”, que tentam encontrar e indexar tudo o que existe na web, rastreando todos os hiperlinks visíveis na internet.

Inevitavelmente, algumas destas rotas estão bloqueadas. Você pode precisar de uma rede privada para acessar tal site, ou simplesmente optar por ignorar resultados de mecanismos de busca. Nestes casos, para acessar uma página, você precisa saber sua complexa e exata URL. Essas URLs – as que não são indexadas – são o que chamamos de deep web.

Embora seu tamanho real seja difícil de mensurar, é importante lembrar que a deep web é um lugar realmente vasto. De acordo com um estudo publicado no Journal of Electronic Publishing, “o conteúdo na deep web é enorme – aproximadamente 500 vezes maior do que o que está visível em mecanismos de busca convencionais”. Enquanto isso, o uso de redes privadas para acessar a deep web está frequentemente na casa dos milhões.

No ano 2000, havia um bilhão de URLs indexados pelo Google. Em 2008, havia um trilhão. Hoje, em 2014, há muito mais do que isso. Agora, pense no quanto a deep web é maior do que isso. Em outras palavras, a deep web leva a metáfora do iceberg ao extremo, quando comparada com a superfície da internet, facilmente acessível. Ela compreende cerca de 99% do maior meio de comunicação na história da humanidade: a internet.

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Deixando de lado estas informações que dão um nó no cérebro, vamos deixar algumas coisas bem claras. A deep web não é só diversão e jogos (estranhos, ilegais, ou de qualquer outro tipo). Ela está cheia de bancos de dados, com informações de agências como a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos EUA, JSTOR, NASA, e o Escritório de Registros e Patentes. Também há muitas intranets – redes internas para empresas e universidades – a maioria contendo informações entediantes sobre funcionários e alunos.

E também há uma pequena parte da deep web chamada de Tor, abreviação para o projeto The Onion Routing, inicialmente desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisas Navais dos EUA como uma forma de se comunicar anonimamente na internet. É aí, obviamente, onde a famosa Silk Road e outros mercados negros da deep web entram em cena.

Captura de tela da deep web – cortesia do autor

Mais uma vez, é exatamente isto que se esperaria de uma tecnologia projetada para esconder a identidade dos usuários. Muito menos previsíveis são os extensos corredores cheios de blogs de fanfiction, clubes de leitura revolucionários, sites especializados em espeleologia, arquivos de Cientologia, e muita informação para fãs de Stravinsky (“48.717 páginas de dissonância emancipada”).  Para termos uma melhor ideia das atividades não relacionadas com drogas e assassinos profissionais que podemos encontrar na deep web, vamos dar uma olhada no que temos de mais transparente – pouco abaixo da superfície.

O Clube de Leitura Jotunbane é um ótimo exemplo. A homepage do website proclama, de forma desafiadora, “Leitores contra o DRM”, sobre a imagem de um punho esmagando as correntes presas a um livro, no estilo das propagandas soviéticas. Tipicamente, os livros mais populares do clube de leitura são subversivos ou de ficção cientifica, com 1984, de George Orwell, e Neuromancer, de William Gibson, no topo da lista.

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Por outro lado, um site com o nome ameaçador de Biblioteca Imperial de Trantor prefere o Homem Invisível de Ralph Ellison, e O Senso Comum, o panfleto revolucionário de Thomas Paine publicado em 1776, tem sua própria página. Algumas das primeiras linhas dizem, de forma muito apropriada: “a sociedade é produzida pelas nossas carências, e o governo, pela nossa perversidade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente, unindo nossas afeições, e o último negativamente, limitando os nossos vícios”. Até mesmo o suposto fundador da Silk Road, Dread Pirate Roberts, começou um clube de leitura na deep web em 2011.

Então, parece bem claro que usuários da deep web gostam de se meter em política, mas isso está bem longe de mostrar um retrato completo dela.

Junto com “O Livro de Receitas do Anarquista” e publicações de títulos preocupantes como “Derrotando Trancas Eletromagnéticas”, também encontraremos um blog surpreendentemente movimentado para “pessoas que gostam de ser espancadas”, em que os usuários relembram carinhosamente espancamentos passados. Há outro site com quantidades enormes de fanfics eróticas: uma história chamada “Uma noite fria e solitária em Agrabah” descreve um caso apimentado com o adorável ursinho Balu, do desenho animado da Disney “Mogli”, enquanto Harry Potter é um mago controverso: alguns cobiçam sua varinha, e outros se declaram “fundamentalistas anti-Harry Potter”.

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Às vezes, você se pergunta se parte do conteúdo que encontra precisa mesmo estar na deep web. Um website chamado Beneath VT documenta explorações subterrâneas na Virginia Tech, onde aventureiros frequentam os muitos túneis sob a universidade, que tem uma população de mais de 30 mil alunos e 1.000 professores. Seus criadores explicam, anonimamente: “embora estas pessoas passem diariamente pelas grades e bueiros que levam aos túneis, poucos se dão conta do que existe lá embaixo”.

Não é que você não possa encontrar uma infinidade destes tipos de sites na internet de superfície, legais ou não. Mas parece que a deep web oferece um consolo simbólico, psicológico a seus usuários. Na prática, a deep web é o lar de uma mistura de subculturas com vários desejos: todos procuram por pessoas como eles. O Beneath VT é um exemplo, mas outros chegam a oferecer interação 24 horas por dia, como a Rádio Clandestina, uma estação que se descreve como “música para ir fundo e fazer amor”. Este não é exatamente o tipo de chamada que você veria na Jovem Pan.

O Dr. Ian Walden, professor de Direito de Informação e Comunicações na Queen Mary University, em Londres, explica que a atração da deep web é o seu “uso de técnicas projetadas para permitir que as pessoas se comuniquem anonimamente, mas de forma verdadeira. O usuário mais sofisticado percebe que o que se faz na internet deixa muitos rastros, se você quiser se envolver em uma atividade sem ser sujeito à vigilância”. Ele continua: “o senso de comunidade é frequentemente o que une estas subculturas, em um mundo digital cada vez mais diverso e desincorporado”.

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Bem-vindos, fãs de spanking.

A deep web também tem um poderoso potencial liberador, especialmente depois das recentes revelações sobre a NSA mostrarem a extensão da vigilância do governo. Navegar por seus corredores supostamente seguros nos dá uma sensação estranha, excitante; provavelmente, nada diferente de como os primeiros usuários da internet se sentiram há um quarto de século. O professor Walden argumenta que a deep web foi vital para os levantes da Primavera Árabe, permitindo que os dissidentes se comunicassem e se unissem sem serem detectados. Muitos dos vídeos filmados durante a revolução síria em 2011 foram primeiramente publicados na deep web, antes de serem transferidos para o YouTube.

Ele destaca que “em jurisdições onde a defesa política é atropelada, as mídias sociais não vão ajudar muito com os protestos, porque pode ser muito fácil identificar os usuários”. A situação na Turquia no começo deste ano, por exemplo, fez com que o primeiro-ministro Erdogan banisse o uso do Twitter no país. Em vez disso, sugere Walden, a deep web “permite comunicações em longo prazo, de uma forma que não expõe a sua família a riscos”.

"O senso de comunidade é frequentemente o que une estas subculturas, em um mundo digital cada vez mais diverso e desincorporado."

Se a deep web tivesse uma homepage, provavelmente seria a Hidden Wiki, uma wiki que cataloga alguns dos principais websites da deep web, e que é abertamente “livre de censura”. Seu conteúdo nos dá uma ideia de como estes processos anônimos funcionam: não é difícil encontrar o infame site Wikileaks, mas existe também o New Yorker Strongbox, um sistema criado pela revista para “esconder a sua localização online e física de nós, e oferecer total criptografia”, para possíveis informantes. Enquanto isso, o Kavkaz, um site de notícias do Oriente Médio disponível em russo, inglês, árabe e turco, é um impressionante recurso independente.

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Talvez porque a deep web abrigue tantos dos marginalizados e vanguardistas digitais, ela também se tornou um caldeirão de inovações de mídia. Amber Horsburgh, uma estrategista digital na agência criativa Big Spaceship, passou seis meses estudando as muitas técnicas usadas na deep web, e descobriu que muitas das inovações em mídia digital tiveram sua origem ali.

Horsburgh declara que “como a história nos diz, as maiores tendências de mídia digital vêm da deep web. Devido à natureza de alguns negócios que acontecem ali, os vendedores usam métodos inovadores em suas transações, marketing, distribuição e cadeias de valores”.

Ela cita os exemplos do Gmail introduzindo emails patrocinados; a ferramenta de mídia social Thunderclap, que ganhou o Leão de Ouro de Inovação em Cannes, em 2013; e o grande sucesso da indústria de publicidade nativa, que irá explodir para cerca de $11 bilhões em 2017. Segundo Horsburgh, “cada uma destas inovações de ponta foram técnicas em que a deep web foi pioneira”. A mídia nativa copia o “astroturfing” usado pelo partido chinês 50 Cent, em que pessoas foram pagas para publicar comentários favoráveis em fóruns da internet, para manipular opiniões.

No final das contas, este é o risco da deep web. “Os seus terroristas são os nossos guerreiros da liberdade”, como o professor Walden explica.  De um lado, ela oferece idealismo, leveza e comunidade. De outro, oferece o ilegal, o imoral e o grotesco. Vejamos o exemplo do Bitcoin, que ganhou as manchetes, e que tem fortes laços com a deep web: a empresa deveria fornecer um sistema monetário alternativo, mas, pelo menos no começo, atraiu atenção principalmente porque era possível comprar drogas com a moeda digital.

Agora, pelo menos, é consolador saber que algumas pessoas escolhem usar o anonimato oferecido pela deep web para viver suas vidas inofensivas – embora, às vezes, extremamente esquisitas – em paz. Parafraseando a famosa citação do escritor francês Voltaire: “posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de escrever fanfictions eróticas sobre os meus personagens favoritos da Disney”.

Tradução: Viviane Fontoura