Um papo com duas vanguardistas do Pós-Internet
Fotos pessoais das artistas e acadêmicas Holly Herndon e Jennifer Walshe

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Tecnologia

Um papo com duas vanguardistas do Pós-Internet

As artistas e acadêmicas Holly Herndon e Jennifer Walshe falam o que apps de namoro, espionagem e grandes corporações tem a ver com a nova arte que representam.

Afirmar, em pleno 2015, que a internet é parte indissociável da vida no mundo ocidental é cair na banalidade. Mas, nas poucas palavras que formam esse clichê, estão a alegria, a dor, a raiva, a felicidade e o ódio de bilhões de pessoas.

Ninguém entende isso melhor do que Holly Herndon e Jennifer Walshe. Herndon é uma artista, compositora e acadêmica americana que compõe músicas eletrônicas agressivas e minimalistas sobre a Agência de Segurança Nacional, a NSA, invadindo sua caixa de emails — isso quando ela não está ocupada demais concluindo seu PhD no laboratório de Stanford onde a síntese FM digital foi inventada, é claro. Walshe, nascida na Irlanda, é uma compositora, cantora e estudante de música da Universidade de Brunel, no Reino Unido, cujas obras incorporam a internet de forma prática e conceitual. No seu mais recente projeto, nomeado THMOTES, Walshe enviou músicas para desconhecidos por meio do Snapchat e esperou para ver o que eles mandavam de volta.

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As obras das duas podem parecer muito diferentes, mas ambas estão na vanguarda do que o mundo artístico chama de movimento "Pós-Internet". Em poucas palavras, trata-se da arte que reconhece que a internet se tornou o ar que respiramos. Podemos dizer que a arte Pós-Internet é a arte sobre a internet, não aquela que simplesmente a usa como meio.

As duas artistas hoje trabalham em um projeto que pretende reunir uma série de textos e músicas pertencentes ao movimento Pós-Internet. O objetivo é construir um banco de dados que artistas e acadêmicos possam usar para checar o ritmo cardíaco dessa comunidade artística.

É óbvio que ambas tem muito a dizer sobre esse mundo interconectado, então reuni as duas numa conferência do Skype — Herndon parecia estar no set de filmagems de Nosferatu, do Herzog — para uma conversa sobre tudo, desde aplicativos de namoro ao NSA.

Herndon à esquerda e Walshe à direita. Crédito: Skype

MOTHERBOARD: Em termos artísticos, quais são, na opinião de vocês, as maiores mudanças causadas pela internet?

Holly Herndon: No último ano, foquei nas mudanças emocionais causadas pela internet. Nossos relacionamentos são modelados a partir da forma como nos comunicamos com os outros e tudo isso cria um novo tipo de sensibilidade emocional que pede novos modos de expressar emoções. Quando você está conversando com alguém e vê aqueles três pontinhos de digitação e você espera a outra pessoa dizer alguma coisa, isso gera uma sensação diferente do silêncio constrangedor que acontece em conversas reais. É uma chave emocional diferente. Quero expressar essas novas emoções sem depender das antigas bases emocionais.

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Jennifer Walshe: O que a Holly está dizendo é muito interessante. Também me interesso pelo modo como as pessoas comunicam suas emoções ou como elas narram suas vidas por meio da internet — o que acontece quando as pessoas se conhecem via aplicativos e como essa comunicação se dá. Li um livro chamado Dataclysm, escrito por Christian Rudder, o principal cientista da informação do OkCupid. Ele afirma que os smartphones mudaram os relacionamentos digitais; quando eles surgiram, as pessoas pararam de escrever mensagens longas nos sites de relacionamento. Eu e meus amigos — que usamos esses sites há anos — nos lembramos dos primórdios do flerte digital. A gente escrevia textos enormes! Hoje em dia as pessoas só dizem "e aí"?

"Não pense que não há outra opção ou que o Facebook é uma parte essencial da sua vida"

Voltando à afirmação de que o elemento humano é a alma da internet, as obras das duas trazem elementos extremamente incômodos. Jennifer, em seu projeto ALL THE MANY PEOPLS, podemos reconhecer até mesmo uma aproximação com o terror…

JW: Eu peguei o áudio de vários vídeos do YouTube gravados por soldados americanos e ingleses no Iraque, então esses áudios estão marcados, literalmente, pelo terror.

E Holly, você fala sobre o NSA e o governo em sua música "Home". Vocês veem essas mudanças como algo incômodo, sombrio e digno de preocupação? Ou vocês são mais otimistas?

HH: Acho que essas mudanças englobam todos os aspectos da emoção humana: a escuridão e a luz. A internet não é uma coisa ou outra — ela faz parte da nossa sociedade, é uma extensão da nossa comunidade, ela engloba tudo isso. Mas no geral sou otimista. Acho que, em alguns meios, especialmente na música eletrônica, existe uma tendência à distopia. Amo ficção científica distópica, mas acho que, quando levamos tudo ao extremo, corremos o risco de perder a esperança. É preciso ter pelo menos um pouquinho de otimismo, no mínimo para ter a sensação de ter poder sobre sua própria vida, sobre o rumo que o futuro está tomando e sobre a possibilidade de construir uma nova infraestrutura. Quando não temos nem um pouquinho de otimismo, acabamos desistindo.

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JW: Amo o Bruce Sterling e uma vez assisti uma palestra onde ele definiu o sentimento do nosso tempo como uma "euforia sombria". Por um lado, o planeta está se desfazendo e todos nós enfrentamos problemas pessoais, econômicos e ecológicos; mas por outro lado isso tudo é muito empolgante. Existe um frescor, uma sensação de que as coisas estão mudando de formas inéditas. Gosto muito do termo "euforia sombria"; acho uma ótima forma de descrever nossos tempos. Percebo que passamos por períodos de histeria relacionados à tecnologia e à internet. Esse medo da tecnologia sempre existiu.Quando falamos sobre o NSA, vejo que muitas pessoas ignoram a dimensão desse problema. Quando o Facebook fez aquele estudo sobre contágio emocional, levei o resultado para os meus alunos e expliquei o que tudo aquilo significava. Eles ficaram chocados. Eles nem imaginavam que aquilo havia acontecido. Acho que nosso trabalho, seja ensinando, fazendo arte ou dando entrevistas, é tentar passar essa mensagem: não sejam apáticos. Não pense que não há outra opção ou que o Facebook é uma parte essencial da sua vida. Ou que esse comportamento está tão enraizado que você está fadado a comer McDonald's pelo resto da sua vida.

HH: O objetivo é ter confiança para fazer outras escolhas. Se você olhar para a cena da música independente dos anos 90, tínhamos artistas fazendo sua própria distribuição, montando turnês, publicando zines, porque eles não se encaixavam na infraestrutura preestabelecida.

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Sinto que isso não é apenas otimismo, e sim uma tentativa de melhorar as coisas. Há um grande diálogo sobre espaços seguros, violência contra mulheres e visibilidade das minorias fora da internet. Quando o assunto é a arte feita da e sobre a internet, vocês acham que existe também a obrigação de falar sobre esses temas?

HH: Não sei se você já teve que lidar com assédio digital, mas eu já lidei com alguns trolls horríveis, mesmo sem nunca falar especificamente sobre esses temas. É claro que isso influencia meu trabalho.

JW: É por isso que eu nunca deixo comentários na internet. Isso é algo que me incomoda muito porque, quando falamos com pessoas que já sofreram esse assédio — em outras palavras, mulheres —, elas dizem que é normal ter que desabilitar os comentários do YouTube… E isso em um clipe! Acho que algumas mulheres pensam que se elas colocarem a cara à tapa, elas sofrerão mais assédio do que um homem na mesma posição. Tenho escutado o rap de artistas como Mykki Blanco e Big Freedia; a música deles me dá esperança. Acho o rap muito interessante sonoramente, mas as letras são tão homofóbicas e machistas que tenho dificuldade de ouvir grande parte dos artistas. Mas aí eouço Mykki Blanco e eu fico tipo, ah, disso eu consigo gostar! Acho que sempre existirão pessoas fazendo coisas interessantes e eu espero que a internet nos ajude a encontrar essas pessoas.

Só um comentário: eu vi Mykki Blanco… bem, na verdade eu não "vi" o Mykki Blanco. Mykki estava tocando em um festival numa fazenda aqui no sul de Ontario, mas eu comi cogumelos demais e tive que voltar para minha barraca. Aí fiquei escutando o Mykki Blanco através das paredes da minha barraca, preso naquela interzona mental. Era como se eu estivesse transcendendo.

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JW: Ok, agora eu realmente sinto que estou numa entrevista da VICE.

Nós temos que falar sobre drogas, faz parte do contrato. Na verdade nunca usei nenhuma droga na vida.

HH: [Risos]

Jennifer, você já falou, em outras entrevistas, sobre "a internet em sua atual iteração". Como você define a internet?

JW: Eu estava parafraseando o William Gibson! É melhor você perguntar para ele o que é a internet. Ele já falou sobre isso em várias entrevistas: ela é flexível, ela é uma ecologia, ela está sempre mudando. A internet não é igual ao que ela era há um ano, muito menos há seis meses. Espero que daqui cinco anos a internet não seja dominada pela Amazon e pelo Facebook. Meu pai adotou a internet logo no início ao criar um site sobre caiaques onde ele recebia conselhos e dicas de pessoas do outro lado do mundo. A relação dele com a internet é diferente da minha.

HH: Sem contar que as pessoas estão sempre tentando criar uma internet paralela ou tentando repensar a própria estrutura da internet, seja par a par, ou por outros meios. A internet que conhecemos hoje será completamente diferente daqui cinco anos. Algumas instituições importantes têm acesso a algo chamado Internet 2, uma espécie de internet turbinada. Existem também as diferenças pessoais, as diferenças regionais e a censura. No Reino Unido, sempre recebo mensagens dizendo que meu trabalho não é adequado ao público familiar, coisas do tipo. A internet varia muito de lugar para lugar. É realmente difícil defini-la.

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"As pessoas estão sempre tentando criar uma internet paralela ou tentando repensar a própria estrutura da internet"

JW: Ela também é muito diferente para idosos ou para alguém que tem mais de 70 anos e entra em um grupo de computação para a terceira idade. Quero ver mais arte sobre a experiência de gerenciar um site voltado para o tratamento de pacientes de Alzheimer. Quero saber qual é a textura da vida dessas pessoas mais velhas. Grande parte da arte na internet fala sobre alguém de mais ou menos 27 anos, talvez chapado, comendo Doritos na frente do computador. Existem tantas coisas nesse mundo. Busco algo que irá resistir aos anos, que irá envelhecer junto da internet, diferente das fotos que colocamos em aplicativos de relacionamento.

Acho que o que podemos tirar disso é que, não importa o que aconteça, a internet terá sempre como base a própria humanidade.

JW: E como poderia ser diferente? É tudo gente. A internet é feita de gente.

HH: Das piores e das melhores.

JW: E elas são descuidadas e bagunçadas. Eu mesma sou descuidada na minha relação com a internet.

HH: Gosto da palavra 'descuido' pois tento sempre encher meu trabalho dessa sensação de caos e desleixo. Nos anos 90, a arte era limpa e repetitiva, uma série de zeros e uns, mas isso não existe mais. Nosso mundo é bagunçado, complicado e envolvente.

Essa entrevista foi editada e resumida por questões de clareza.

Tradução: Ananda Pieratti