Trocando de Casa
​Arte por Koren Shadmi

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Tecnologia

Trocando de Casa

Queríamos um filho, mas não cabia no orçamento. Então demos uma olhada na internet, e às vezes você pode pesquisar o quanto for, mas os únicos que são de graça são os loucos.

Queríamos um filho, mas não cabia no orçamento. Então demos uma olhada na internet, e às vezes você pode pesquisar o quanto for, mas os únicos que são de graça são os loucos, que atearam fogo nos quartos de seus pais, mas dessa vez finalmente tivemos sorte. "Puta m####, tem um monte!" exclamou Bill enquanto eu rolava a tela, fotos e mais fotos de crianças sorridentes e felizes.

Demos sorte no timing, imagino. Esse negócio todo de seleção de gentes – você sabe a propaganda: se você consegue sonhar, conseguimos fazer, querido – estava só começando naquela época, ou seja, haviam detalhes a serem trabalhados ainda. Ou seja, em termos de qualidade de produto, haviam muitos "poréns", apesar de que gostaria que houvesse outro termo para isso. Mesmo nos locais mais chiques do mundo, erros podem acontecer. Geralmente as condições incluem outra tentativa com uma seleção de genes diferentes, mas o que fazer com a criança que não deu certo?

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É aí que pessoas como nós são úteis, imagino.

Eu só queria mesmo ser mãe.

Desta vez deixei que Bill escolhesse a criança, já que eu havia escolhido a última, aquela que parecia meio nervosa demais o tempo e que finalmente correu pro meio do mato. Bill escolheu uma menina adorável de maria-chiquinha e olhos que pareciam custar caro. Esta criança única é obediente e anseia por agradar. Risada gostosa e saudável. Documentação autenticada inclusa. Uma boa filha, mas não aquela que pedimos.

É emocionante, conseguir uma criança assim, em saldo. É como se fosse seu aniversário e você recebesse um presente de formato esquisito embrulhado com um laço bem bonito. O que será que é? Será que é aquilo que você tanto queria? Normalmente estas crianças vêm com uma papelada detalhando o que seus pais buscavam – algo do tipo geninho de cabelo encaracolado exageradamente carinhoso – mas a verdade é que você não tem como saber o que deu certo ou errado. Estas crianças podem crescer e se tornar qualquer coisa! Elas podem fazer algo incrível de suas vidas, ou então se tornarem o tipo de pessoa que arranca as asas de borboletas em risco de extinção. Bill e eu achávamos esta incerteza eletrizante, de certa forma. Ou ao menos mais natural, apesar desta ser uma palavra tão antiquada. Mais ou menos como foram nossas infâncias, de qualquer jeito.

Nos vestimos bem para a ocasião, Bill e eu, por mais que esperasse que os pais agissem como o outro casal, que nem mesmo levou a criança até à porta. Bill estava com sua camiseta favorita com os dizeres Pais Bacanas Fazem Diferença! e eu estava com meu macacão vermelho de zíper na frente, porque a cor favorita da garotinha era vermelho. Ou ao menos a mãe dela supunha que era.

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Joan e Jim Excelsior chegaram bem na hora em seu simpático cupê, e de cara parecia que nem mesmo iam parar, então comecei a balançar os braços e corri em direção à rua, o que levou cerca de 5 passos, já que ninguém na nossa vizinhança tem quintais. Os pais pareciam meio artificiais pro meu gosto, com o cabelo em cores que não a natural, os olhos idem, apesar de que a menina era igual à foto. Ela usava um vestido listrado vermelho e branco, calçando sapatos brancos brilhantes. Lhe estendi a mão e ela segurou. Seu toque era quente, verdadeiro e perfeito.

Dentro da casa, Joan observava tudo, prestando atenção ao local. Parecia que ela nos julgava, provavelmente porque o fazia, mas eu os julgava também. Que tipo de pai fica desapontado com seu filho quando ele completa 4 anos de idade, eu pensava, enquanto ela provavelmente se perguntava que tipo de adulto mora em uma microcasa sobre rodas e come Fruity Loops no café da manhã. "Fico esperando que a louça se lave, Joan", brinquei, ao perceber que ela mantinha os olhos fixos em nossa pia. "Por favor, é Sra. Excelsior", Joan me corrigiu. Então deu um tour da casa à menina, o que não demorou muito, já que não há muito para se ver onde moramos: um quarto, um banheiro, um closet. "Ah. Creio haver um bolo no closet", disse Joan, com preocupação na voz. Trouxe o bolo. Em cima dele, o nome da garota em cobertura laranja.

"Mas onde estão as outras crianças?", perguntou Joan. "Você me disse que haviam outras".

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Jim e a menina pegaram seus pedaços de bolo, que Joan não aceitou.

"Estão no parque", respondi, casualmente. "Sempre estão no parque, não é? Com seus amigos. Amigos!" fui rumo à janela, no que poderia ser a direção de um parque. Estas outras crianças faziam parte de uma história que havia contado a Joan durante nossos primeiros contatos, uma história que havia criado na melhor das intenções. Pensando, na época: esta mãe provavelmente tem uma imagem em sua cabeça do tipo de lugar o qual poderia deixar sua criança sem maiores preocupações. Um lugar com outros coleguinhas e um quintal com cerca com grama que aparentasse ser verde. Queria dar algo em troca à Joan. Ao menos a ideia de um lar como esse, por um tempo.

Virei para a menina, que lambia a cobertura de bolo de seus dedos. "Alguém aqui gosta de cachorrinhos?". A garota gritou de felicidade. Certifiquei-me de que Joan tivesse a ouvido antes de levar a menina aos fundos para ver o quintal recém-cercado. Sob a luz do sol, a menina parecia apenas uma menina. "O nome da cadelinha é Daisy", disse, apontando ao filhote, e ela se jogou, como eu esperava, na grama fresca, a nova grama falsa fresca, digo, mas parecia verdadeira o suficiente, assim como ela. Ela aconchegou a cabeça na lateral da cadela.

"Você gostaria de morar aqui?" perguntei a ela. Ela balançou a cabeça. Ela tinha um nome, Julie, mas fiz questão de não chamá-la assim. Depois que seus pais voltassem para seu complexo, lhe daríamos um nome completamente diferente. Algo mais concreto, como Amora. Enquanto a menina fazia carinho na cachorrinha, coloquei nela uma tornozeleira de monitoramento. Não havia porque fingir que faríamos algo de diferente, como deixar a menina correr por aí livre, ou fugir da gente. Bill tinha me deixado comprar uma bem bonita na fronteira, cravejada com pedrinhas de strass. Bonita o bastante pra você usar? Perguntou Bill, em tom de piada. Ha ha. Todo mundo sabe que não é uma tornozeleira ou pulseira. Mas se todos estamos fingindo, talvez nem importe o que seja. Não acho que a garota tenha notado porque o cachorro lambia seu rosto ferozmente.

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A Sra. Excelsior apontou para o tornozelo da menina quando retornamos à cozinha.

"O que é isso?"

"Uma tornozeleira". Dei a ela um olhar que significava vamos deixar isso para lá, certo? Não havia motivo para assustar ninguém. "Não se preocupe. A amarei não importa o que aconteça". Ou seja, a amarei mais do que você jamais amaria. Os olhos de Joan pareciam tristes, então parei de olhar para eles. "Digo, não vamos perdê-la". Dessa vez eu falava sério. Joan continuou repetindo que eu poderia ligar para ela sobre qualquer assunto relacionado à menina, e fiz um monte de promessas que não cumpriria.

Eventualmente, era hora deles irem.

Bill levou a menina para o lado de for a para lhe mostrar os morangos silvestres que cresciam ao longo da cerca.

"Vamos lá, se anime", disse a Joan enquanto ela desabava no assento acolchoado de seu carro. "Há muitas coisas pelas quais você pode esperar. Coisas que não pode nem imaginar agora". Eles poderiam tentar ter outro filho, por exemplo. Talvez este fosse perfeito. Joan levantou uma de suas mãos, como que para dizer que concordava comigo, ou talvez para se despedir, ou para se livrar de mim, não sei bem o que o gesto significava. E então eles se foram. Como o marido saiu acelerando muito, como se fosse uma emergência, eles não viram o que eu vi. Um pássaro vermelho observando tudo de trás do Camry destruído de nosso vizinho, o tipo de pássaro que não se vê mais nesta vizinhança. Gostaria que Joan tivesse visto a ave. Ela poderia ter dito a si mesma vou deixar minha filha em um lugar que tem pássaros vermelhos! O amor é uma coisa engraçada, né? No sentido de que pode ser transferido facilmente. Mas eu posso mesmo, acho. Era deles e agora não era mais. Era minha. E de repente senti como se tivesse um coração novo, ou algo novo dentro do meu coração, o que no fim das contas, era tudo o que eu queria, enquanto corri de volta à cerca, apontando e gritando para que Bill e a menina olhassem.


Este texto faz parte do Ter​raform, nosso lar para ficção futurista.

Tradução: Thiago "Índio" Silva