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Tecnologia

“The Peripheral”, de William Gibson: Investigando as Ruínas do Presente

Seria cansativo enumerar as ocasiões nas quais o mundo real parece uma cópia mal-feita da imaginação de William Gibson.
The Peripheral. Crédito: Penguin

Estou em um bar em Toronto. O lugar é uma placa monolítica de concreto, puído e desgastado por anos e anos de longas noites. Escuto a checagem de som da banda convidada enquanto leio The Peripheral, o primeiro romance de William Gibson desde 2010.

Flynne Fisher, a protagonista do romance, também está sentada em um bar, dentro de um restaurante de sua cidade rural do sul dos Estados Unidos, 30 e poucos anos no futuro. Ela encara um prato de ovos e bacon, sem café. Atrás da bancada, um espelho com a logomarca da Red Bull a encara maliciosamente, e o touro falso se estica para fora da moldura para dar uma piscadela em sua direção. "Ela odiava quando eles falavam com ela", escreve Gibson, "quando a chamavam pelo nome".

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Marcando a página com meu dedão, olho para cima e me deparo com o meu próprio espelho da Red Bull. O touro, um mosaico rudimentar de pequenos LEDs laranjas, brancos e vermelhos, brilha no ritmo da música. Se ele pudesse piscar para mim, ele piscaria sem titubear.

Seria cansativo enumerar as ocasiões nas quais o mundo real parece uma cópia mal-feita da imaginação de William Gibson. Basta dizer que elas são frequentes, e que o seu efeito cumulativo varia entre o reconhecimento horrorizado — como ver o seu próprio rosto, abatido e murcho, no espelho do banheiro de um avião — e algo mais próximo de uma resignação orgulhosa, o conforto que vem com a aceitação do indivíduo como uma peça de uma das linhas temporais do Gibson.

Our man in the futures. Photo credit Michael O'Shea.

William Gibson. Crédito: Site do autor

The Peripheral se passa, ou melhor, se situa em dois espaços no tempo: um, no futuro próximo e sulista da personagem Flynne. Neste, como em vários outros romances do Gibson, as empresas e o governo estão intensamente interligados. À parte do Red Bull, quase tudo pertence a uma empresa chamada Hefty — os salários são pagos pela HeftyPal, os bens de consumo são comprados na HeftyMart — e a lei é imposta pela Homes, uma mutação monstruosa do Departamento de Segurança Nacional. Nossos protagonistas são Flynne, seu irmão Burton, e um grupo de ex-fuzileiros navais desordeiros que usam drogas estimulantes e trabalham em meio período na loja de impressões em 3D da vizinhança.

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Em seu segundo futuro, The Peripheral nos guia por um salto temporal, uma realidade que resulta de um evento chamado apenas de "A Sorte Grande". Esse futuro não ocorre no Sul, mas em Londres, onde o governo foi praticamente substituído por famílias oligárquicas; nesse futuro, o planeta é completamente vigiado e repleto de sistemas de computação em nuvem tão sofisticados que se confundem com a onisciência divina. Agentes biológicos de telepresença chamados "periféricos", fantoches de carne e osso controlados por interfaces táteis, substituem boa parte da interação humana.

O que conecta essas duas realidades é a informação. No futuro mais distante, a elite descobriu uma forma de contactar o passado utilizando o conhecimento. O livro não deixa claro como isso funciona — a tecnologia é extremamente avançada et cetera — mas o contato é bem real. Uma vez em contato, as linhas temporais se divergem, de forma que o passado corrompido não se torna o futuro que efetuou o contato inicial. Os habitantes do futuro chamam o passado desconectado de "resto". Mexer com esses restos é como brincar de Deus, um hobby de milionários.

The Peripheral é o primeiro livro de ficção científica escrito por William Gibson no século 21; Pattern Recognition, Spook Country, e Zero History, sua trilogia mais recente, são romances pós-onze de setembro que se passam no presente. Seu "retorno" ao gênero será, sem dúvida, muito alardeado; apesar do futurismo de The Peripheral ser ao mesmo tempo rentável e alucinado, como todas as obras de Gibson, ele está enraizado no realismo histórico. Seus maiores mistérios só podem ser resolvidos com o olhar para o passado.

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Na verdade, a parte mais impressionante de The Peripheral são suas acrobacias temporais, a forma com que o livro retrata o olhar que o futuro lança ao passado. Os londrinos do futuro se esforçam para compreender como a sua realidade surgiu, e resistem à ideia de que sua visão do passado pode estar embaçada por nostalgia e falsas concepções. "Uma das coisas que abordo em The Peripheral, explicou Gibson em nossa entrevista na semana passada, "é a forma como, nas histórias de viagem no tempo, as pessoas do passado são retratadas como caipiras interioranos. E quando imaginamos as pessoas do futuro, elas quase sempre são fracas e decadentes."

É claro que as pessoas são apenas pessoas, não importa onde elas estejam no espaço-tempo. Os romanos antigos escreveram poemas eróticos e pervertidos que ainda chocam; Charlie Chaplin, louco de cocaína e enfiando purê de batata nas orelhas em Tempos Modernos, continua hilário. Não há nada de precioso ou de rudimentar nas pessoas que nasceram e morreram há séculos, ou até mesmo há décadas, antes de nós.

Mas assim como nós, os personagens no futuro de The Peripheral fetichizam e idealizam o passado; enquanto isso, os habitantes do presente estão cagando para o futuro — mais uma vez, assim como nós. O livro apresenta um retrato dividido da humanidade, impressionantemente sombrio e realista: arrogante ao extremo e apologética apenas em retrospecto — ou quando está na moda.

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Gibson descreve The Peripheral como uma história de viagem no tempo — e ela é uma. Graças à sua habilidade narrativa, o autor evitar quaisquer paradoxos ultrapassados (e "extremamente tediosas") que costumam estragar essas histórias. Sem as amarras de causa e efeito, as duas realidades se tornam potencialidades; é para lá que vamos, com a graça de Deus. Assim como O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick, The Peripheral é um livro sobre uma realidade histórica alternativa, um conto sobre duas linhas temporais coexistindo em um acordo de paz tenso, cada qual em seu lado de um evento inenarrável.

Os objetos que sobrevivem a esse evento — estou me esforçando para não dar nenhum spoiler — são os únicos viajantes do tempo de The Peripheral. Como qualquer objeto físico —nós, ou o próprio planeta — eles seguem em frente e sobrevivem. Essa é a primeira e mais básica forma de viagem no tempo, e ela só funciona em uma direção. Representar objetos de trás para frente é uma impossibilidade que Gibson aborda ao fazer seus londrinos do futuro enviarem informações para o passado-resto: informações que podem alterar o presente de forma física e instruções para a construção de versões funcionais de tecnologias futuras.

Contando apenas com ferramentas rudimentares, os resultados tecnológicos do passado são extremamente simplórios em comparação com os do futuro — pensem na diferença entre o espelho de LED do Red Bull e uma versão aperfeiçoada que salta para fora da moldura para dar um "oi". Isso reflete a habilidade de William Gibson em se manter fiel à extrapolação cultural e tecnológica. Ele transforma o presente em um eco banal de um futuro tão forte e estranhamente realista que beira ao inevitável, colocando nossas tecnologias mais avançadas e apreciadas à beira da obsolescência e da ruína. O que é, obviamente, verdade.

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"Eu cresci em uma cidade antiquada do Sul", explicou Gibson, "e havia coisas antigas por todos os lados". Ele continuou:

Desde que me entendo por gente, tenho essa percepção das coisas. Eu vejo objetos de centenas de anos em feiras de antiguidades, e eles podem não ser muito importantes agora, mas há centenas de anos atrás eles eram importantes para alguém. E não sabemos para quem. Dentro de cada feira, cada coisa possui uma história secreta.

O interesse de Gibson pela alma dos objetos que foram marcados pela passagem do tempo, ao contrário daqueles que são repaginados para parecerem velhos, parece uma homenagem a Philip K. Dick, cujo cânone heterogêneo está mergulhado em uma obsessão pela historicidade. Na verdade, dentre as várias semelhanças entre The Peripheral e O Homem do Castelo Alto, a mais visível é a ideia de que o futuro pode fetichizar o passado tão intensamente a ponto de criar um mercado de venda de antiguidades históricas. "Em algum momento tive essa revelação", disse Gibson, "de que… as pessoas do futuro poderão frequentar lojas de antiguidades e comprar pedaços e cacarecos do nosso passado físico".

Esses pedaços são uma lembrança de que mesmo os objetos mais mundanos podem se tornar relíquias. Uma lembrança de que as coisas que manufaturamos para o uso imediato, os objetos que consideramos descartáveis e sem importância, irão durar mais do que a gente. Nós não podemos controlar o que ficará para a posterioridade, ou como o futuro irá interpretar nossas ruínas. Os arqueólogos aprendem muito com o lixo da antiguidade.

Eu não posso deixar de pensar no espelho de LED da Red Bull em Toronto, piscando para as garçonetes e para os músicos convidados. Um dia, no futuro próximo, ele parará de nos encarar. Ele será retirado da parede, substituído por uma nova tecnologia de propaganda entregue ao bar junto de uma leva de energéticos ou vodka barata. A nova propaganda irá piscar mais rápido, vender mais, e saber mais sobre os detalhes íntimos da vida daqueles sentados do outro lado da bancada.

O velho espelho será jogado na sarjeta. Talvez daqui alguns anos, ele ressurja em uma loja de cacarecos, transformado — com a ajuda do tempo — em um testemunho medíocre de nosso irrisório presente.

Tradução: Ananda Pieratti