Rockall
​Arte de Patrick Savile

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Tecnologia

Rockall

Vivemos nesta rebimboca cheia de graxa que mal flutua há um século. E o que isso nos trouxe de bom? Foda-se tudo.

O envio do Terraform​ desta semana foi apresentado por Andrew D​avid Thaler, um ecologista especializado no fundo do mar que estuda a conectividade entre populações em fontes hidrotermais no Pacífico Oeste, constrói robôs submarinos, e ocasionalmente escreve ficção científica. Como o texto abaixo:

"Essas porras de tentáculos me dão calafrios". Estou a 65m, esperando a comunicação da superfície.

"Entendido, Nails". Sage é a responsável pelo operacional. "Eles estão fazendo algo de interessante?"

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"Negativo, só observando". Tentáculos, ou Lula Magnapinna, se você é entendido. Flutuando no meio da água, gigantescas, com tentáculos de 20 metros. Grandes, bem grandes. Elas tem um tipo de juntas nos tentáculos que mergulham 90 graus direto no abismo. E tudo que fazem é observar.

Elas me seguem, próximas o suficiente para me agarrarem.

Vou seguindo o cabo, esperando que Sage troque meus tubos de oxigênio.

"Ok Nails, já está quase na hora de esvaziar seus tanques. Estou descendo uma mistura de gases 14% pelo fio". Ao menos ela está toda séria hoje. "Como anda a sua alimentação?" Porra.

"Minha alimentação?"

"É, aquela gororoba de cavalo que você bota pra dentro da boca. Quando você vai se juntar ao resto da gente aqui no Século XXII?"

"Hein? Aquele mijo de siri que você chama de comida? Nunca."

"Estas rações velhas não vão te durar pra sempre. Além do que, te fazem um mal danado. Pode esvaziar."

"Entendido". Dou uma última respirada e aperto o obturador. O ar sai com uma velocidade estupenda de meu traje. Os tentáculos continuam lá, imóveis.

Sinto o traje pressionar contra meu corpo. Não há nada para mantê-lo inflado. Entro em pânico. Cacete, Sage, que merda você esqueceu dessa vez? Consigo ouvir o sibilo do ar saindo pela mangueira. Uma sensação de formigamento nos meus seios nasais. Os gases.

"Certo, Nails, pode descer. A pedra está à direita, 19 metros para baixo".

"Alright, Nails, you're clear to descend. Rock is 19 meters below and to the right."

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Submerjo. Os tentáculos me seguem. A 10 metros de distância da pedra, o cabo vira uma corrente. Uma corrente bem pesada. Elos enormes. Coisa profissa mesmo.

Cinco metros. Posso ver a Pedra. Não tem nada demais, só uma pequena estante e uma torre feiosa. Encosto em Hall's Ledge e examino a âncora. Muito bem feita, assim como a corrente. Quarenta toneladas de aço e concreto prendem esse troço à Pedra. A chamavam de Rockal​l antes de ser coberta pela água. A âncora parece firme. Nada mudou desde a última vez. Mais tentáculos.

Que visão. Imagine a maior estação petroleira do mundo, leve-a até o rochedo mais isolado do planeta. Faça da coisa uma nova nação, uma porra de coletivo eco-anarquista. Bobajada de apropriação marítima classe-A. Aí vieram as tempestades. O pilar do porto caiu com tudo na torre. A petroleira inclinou uns 32 graus antes de a estabilizarem. Meteram uns parafusos na bichinha, atiraram o lastro de emergência, rezaram pra qualquer diacho de deus comuna pra que a parada simplesmente não fosse embora flutuando sabe deus pra onde.

Isso foi há 100 anos atrás. Vivemos nesta rebimboca cheia de graxa que mal flutua há um século. E o que isso nos trouxe de bom? Foda-se tudo.

Fodassetudo. O nome perfeito. Fodassetudo é o pior lugar do mundo, com exceção de qualquer outro lugar.

"Ei Nails, você virá à superfície em algum dia dessa semana?" Devo ter me distraído. Não posso fazer isso. Apertei o bipe. Agora cadê aquele cabo? Hora de ir.

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"Fico feliz que você tenha voltado. Seu passeiozinho lhe custou uma folga, e uma parada para descontaminação dupla."

"Glad to have you back. Your little looksee cost you R and R. You've got a double deco-stop."

Subo. Por volta dos 10 metros me prendo ao cabo e deixo o lastro para trás. Deixo que o cabo me leve. Me inclino e observo os tentáculos. Parecem felizes.

"Ok Nails, você chegou aos 65 metros. Pode dispensar a mistura de gases", aperto um botão. E então o bipe.

"Disse para despejar os gases!" Olho para baixo enquanto acelero rumo à superfície. Puta merda! Tenho certeza. Seguro o obturador. Ainda bem que estou subindo pelo cabo ou já estaria na superfície agora. Beleza, tenho que esvaziar o gás. Entrada, saída, válvula de descarga, cabeçote, bateria auxiliar, mangueiras secundárias, tudo bem. Pressiono para esvaziar o gás. Ouço o chiado gostoso dos gases abandonando meu traje. Relaxo.

Estou me afogando.

Pego minha máscara. Não tem fluxo de ar. Puta que pariu. Eu nunca aperto o bipe. Daí bato nessa porcaria e digo para Sage botar o oxigênio pra rolar. Sinto uma brisa familiar.

Estou na praia, curtindo o sol.

"Que caralhos você está fazendo aí?"

Sage não é permitida na minha praia. Mesmo assim lá está ela, caminhando pela areia, com uma bebida na mão e uma prancheta na outra. Acho que nunca a vi de bíquini. Pensando bem, acho que nunca fui numa praia, na real. E então volto à realidade. Olho para meu cronômetro. Apaguei por 20 minutos.

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"Acho que pirei um pouquinho. Cê misturou meus gases, né?"

"Seus gases estavam perfeitos. Você está ficando velho, além de comer merda. Tem sorte que eu não fui dar uma cagada enquanto você soltava seus pesos como se fosse seu primeiro mergulho."

"Já estou seguro?"

"Sim, tudo bem. Vai com calma, beleza? Não quero ver você no poço de trabalho antes do amanhecer."

"Preferia que você não me visse de jeito nenhum. Quando acaba seu turno?"

"Vai se foder, Nails."

Chego à superfície. Sage não está lá.

"Foi um mergulho e tanto, Sr. McNaill". Merda. A única pessoa aqui pior que Sage. O Supervisor de Saúde e Segurança.

"Fiquei meio perdido por uns instantes, mas me contive."

"Se você considera um mergulho inteiro chapado de nitrogênio 'contido'."

"Ei Osh, não te causei nenhum problema até chegar na Pedra. Acho que meus gases estavam desregulados."

"Nós os verificamos durante a sua subida, estava tudo certo."

"Tudo bem. Então fiquei loucão ao subir, acontece."

"O problema não é a subida, McNaill. Nos preocupamos mesmo com as alucinações."

"Que alucinações?"

"McNaill, você sabe como que se parecem estas Lulas Magnapinnas no SONAR?"

Ele me mostra uma reprodução do SONAR. Lá estou eu, flutuando de ponta-cabeça. Deve ter sido na hora que soltei o lastro. Rockall logo embaixo. Até mesmo um fraco traçado do cabo é visível. É isso.

"Não entendo. Deviam ter umas 30 delas, me seguindo o tempo todo."

"Sim, desde que você entrou na água. Eu dei uma olhada no registro de comunicações. Verificamos todo o histórico de mergulhos. Sabe o que descobrimos?"

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"Foda-se tudo?"

"Exatamente, McNaill. Foda-se tudo. Considere-se em licença de recuperação pelo restante do período."

Sage me esperava em minha cabine.

"Ficou um pouco depois do seu turno pra tripudiar?"

"Você não cansa de ser cuzão, Nails?"

"Você poderia ter dito algo. Acha que é engraçado me deixar resmungando sobre peixes invísveis?"

"Primeiro, não são peixes, são invertebrados. E segundo, não. Não preciso de você abortando o mergulho porque tem amigos imaginários. O registro de mergulhos diz que o mergulhador sênior checa o ancoradouro toda quinta, então o mergulhador sênior checa o ancoradouro toda quinta. Este é você, Nails. Nada mais importa se o Fodassetudo se soltar."

Ela está certa à respeito disso. A primeira equipe de peões, aqueles que colocaram a âncora lá, eram veteranos casca-grossa dos dias gloriosos de perfuração offshore. Eles sabiam bem o que estavam fazendo. Nós nunca nem saímos dessa petroleira. O que sabemos é do ancoradouro, da âncora, e a Pedra. Mas eles deixaram umas putas de umas instruções. Boas o bastante para mantermos essa tralha flutuando por mais tempo do que qualquer um esperava.

"Bem, você está com sorte. Eu não sou o mergulhador sênior. Não mais pelo resto deste período. Osh me afastou. Acho que vou tirar umas férias. Talvez me atracar com um livro no solário, tomar algo forte, e ver as gavotas voarem para o leste."

"Nails, você é um imbecil. O período acaba em seis dias. Você voltará pra água a tempo de outra examinação da âncora."

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"Bom, então se precisar de mim estarei no deck recreativo enchendo a cara pelas próximas 132 horas."

"Faça-nos um favor Nails, se você cair no mar de novo, leve seu sinalizador."

Conduzo Sage para fora da cabine e bato a porta. Fodassetudo balança. Devagar e lentamente. Uma onda que nunca acaba.

"O de sempre, Cookie". O refeitório está vazio. Todo mundo ainda está trabalhando, tirando tinta e ferrugem, mantendo Fodassetudo de pé para mais um turno.

"Quer ir mais devagar dessa vez, Mac? Detestaria ver toda a cota de um mergulhador voltar direto pro mar."

"Sua preocupação foi observada e apreciada. Mas tenho 144 horas de folga e pretendo usá-las". Cookie é o único cara aqui cuja preocupação é legítima. Todo mundo só liga se irei fazer o próximo mergulho ou não.

"Você sabe que não posso distribuir mais que uma unidade por dia. Ordens da capitã. E eu não ouvi ela dizer 'exceto o Nails'. Eu lembraria disso."

"Então é assim?"

"'É. Suponho que eu poderia liberar uma unidade diária sete vezes, mas teria que ser muito distraído pra cometer um erro desses."

"Quão distraído?"

"Distraído tipo três refeições completas."

"Você quer um dia inteiro das minhas rações?"

"Quero um dia de rações para cada dia de bebida que você quer que eu esqueça que te dei."

"Porra Cookie, que que eu vou comer semana que vem?"

"Tenho um potinho fresco de bosta verde te esperando. Pode até te fazer bem."

Eis o lance do uísque de petróleo não refinado: é pior que a pior coisa que você já bebeu, incluindo a dose anterior de uísque de petróleo não refinado. A plataforma tem alguns tanques enormes para guardar o tal ouro negro. Mas nós não estamos atrás de petróleo, apenas estamos flutuando. Então algum gênio descobriu como transformar um dos tanques em um alambique, o que seria a maravilhoso se o tanque não estivesse bombeando petróleo bruto desde que foi instalado, então o que sobra pra gente é um lodo preto altamente alcoólico com um buquê firme de carvoeiro. Geralmente, uma bebida ruim melhora assim que você vai ficando mais bêbado, mas não esse uísque aqui.

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Bebo tudo e passo minha folga loucaço.

Essa merda vai me matar, assim como o que rolou com último mergulhador. O velho nem morreu mergulhando. Não, ele despirocou e foi direto numa broca, de frente. Osh disse que nem foi suicídio aquilo. Tenho o relato comigo em algum lugar. Aqui:

"O mergulhador fez diversas reclamações sobre sua mistura de gases. Tentativa de aliviar a pressão por meio de trepanação, fracassada."

Pego meu traje e caio fora.

Sage e Osh passam o capacete sobre minha cabeça, colocando os batoques enferrujados no lugar. O gás começa a ser bombeado. Gás quentinho, reconfortante. Quentinho direto do compressor. Meu mix de superfície. Perfeito para se acalmar ficar sóbrio. O traje me dá uma coceira do caralho. Será que lavei depois do último mergulho? Respiro fundo. Não. O poço se abre. Estou com máximo de lastro. Flutuo, água na altura do peito. Osh desprende o cabo, estou pronto para descer.

Com a água entre mim e a superfície, começa a comunicação.

"Precisamos que você aguente aí, Nails, só alguns minutos enquanto colocamos o compressor da mistura de gases pra funcionar."

"Vocês me colocaram na água antes de botarem o gás pra rolar?"

"Bom, sim, queríamos você fora da sala do operacional o quanto antes. O Supervisor quer monitorar sua perspicácia mental antes de descer mais."

"Que se foda esse cara. Perspicaz o bastante pra você?"

"Tem companhia aí embaixo?" A voz de Sage preenche minha cabeça.

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Giro lentamente, a luz do meu capacete brilhando pela água nebulosa. Noto o brilho de um olho negro enorme. Cacete.

"Alguma coisa no SONAR?"

"Diga-nos primeiro o que você está vendo, Nails", diz Osh. Posso muito bem falar a verdade. Que porra eles vão fazer? O registro de mergulhos manda mergulhar, e é isso que fazemos.

"Tem um tentáculo gigante às 8h, a uns 30 metros de distância."

"Entendido."

"É isso? Por que você não me fala se aquela merda tá ali ou não?"

Silêncio. Respiro.

Sage volta ao rádio.

"Você tem permissão para seguir. Avisarei quando chegar à profundidade para usar a mistura de gases".

Outro tentáculo se aproxima. Pro caralho. Demora uma hora até eu descer.

"Certo, já estou na profundidade certa. Manda o gás."

"Aguarde."

Meus pulmões doem quando o último suspiro de ar deixa o traje. A profundeza infinita pressiona de todos os lados. Aperto o bipe e sou agraciado com a mistura de gases penetrando em meu traje. Tem um gosto salgado, azedinho, doce. O gás denso preenche meus pulmões. É reconfortante.

Então desço.

Tradução: Thiago "Índio" Silva