Startup quer usar rastreamento ocular para detectar refugiados terroristas
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Tecnologia

Startup quer usar rastreamento ocular para detectar refugiados terroristas

A americana Converus ambiciona ser a solução bilionária para avaliar as intenções dos imigrantes ao redor do mundo.

— Você já cometeu algum ato de terrorismo?

— Você tem ligações com o Estado Islâmico, ou com a Al Qaeda, ou qualquer outra organização terrorista?

— Sua intenção, ao entrar no país, é cometer um ato de terrorismo?

Essas são algumas da perguntas que uma startup de Utah, nos Estados Unidos, pretende fazer a refugiados sírios e iraquianos depois de conectá-los ao EyeDetect, um novo tipo de detector de mentiras que mensura os movimentos dos olhos para revelar embustes.

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A empresa, Converus, usa a crise de refugiados sírios como oportunidade para vender o EyeDetect como instrumento mais preciso e fácil de usar do que o polígrafo. De acordo com a fabricante, o produto também se adapta melhor à triagem em grandes quantidades do que outros métodos. É, afirma, a ferramenta ideal para avaliar os 10 mil imigrantes que o país espera receber da região assolada pela guerra.

Segundo a própria Converus, representantes da startup foram a Washington apresentar o sistema para o FBI, NSA, Serviço Secreto e membros do congresso e vendê-lo como a maneira ideal para analisar solicitações de visto e os refugiados.

Será possível capturar malfeitores sem incriminar pessoas inocentes?

"Todo mundo está discutindo a necessidade de fazer uma triagem de refugiados, mas ninguém oferece uma solução viável — especialmente no que diz respeito a avaliação eficaz de grandes grupos de pessoas sem documentos de identificação", declarou Todd Mickelsen, o presidente e CEO da Converus. "O EyeDetect já foi testado, funciona e está disponível para implementação imediata."

A Converus afirma que o EyeDetect é 85% e pode chegar a 98% se for combinado com outros métodos. A empresa diz que a ferramenta já está em uso na América Latina e em dez estados americanos para avaliar funcionários em cargos "de confiança" no governo e na polícia. Será este o futuro da detecção de mentiras?

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Ao redor do mundo, os polígrafos ainda são tido como a melhor ferramenta para detectar calúnias. Apesar de quase um século de controvérsias, é o único aparato válido em esfera federal nos Estados Unidos. Quando é utilizado por um examinador habilidoso, com perguntas elaboradas sob medida para cada incidente específico, o polígrafo pode diferenciar a mentira da verdade com bastante precisão, de acordo com a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS). Por outro lado, na hora de avaliar a "credibilidade" de muitas pessoas ao mesmo tempo, com evidências "escassas e fracas", o polígrafo não funciona muito bem, segundo o mesmo estudo.

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Há muito tempo a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) faz lobby contra o uso de polígrafos em julgamentos e avaliações de funcionários devido ao caráter invasivo da ferramenta e aos problemas de precisão. O polígrafo também é criticado por ser facilmente contornado por mentirosos sagazes. O uso do detector de mentiras por entidades privadas foi banido em 1988 por esses motivos e, em 1998, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos determinou que os juízes não são obrigados a admitir evidências de polígrafos em julgamentos. Excluir resultados de polígrafos "é um meio racional e proporcional de fortalecer o interesse legítimo em barrar provas duvidosas", escreveu o juiz do Supremo Tribunal Clarence Thomas acerca da opinião majoritária da Corte. Já em 2009, 30 estados vetaram resultados de polígrafos em tribunais, de acordo com um relatório feito por uma empresa de serviços de poligrafia sediada em Nova York.

Esforços para aprimorar a detecção de mentiras com novas tecnologias, como exames cerebrais, sempre foram recebidos com certo ceticismo. Mas agora, com o aumento das massas de refugiados e os recentes ataque terroristas na Europa, há uma demanda repentina por avaliações em massa de pessoas.

Em dezembro, um deputado da Califórnia apresentou um projeto de lei para acalmar os americanos que temem que a chegada de refugiados do Iraque e da Síria deixe o país vulnerável ao terrorismo. Entre outras provisões, a Lei de Supervisão Segura de Imigrantes e Refugiados (SAFER, ou Lei H.R. 4291) exige que todos os refugiados sírios e iraquianos passem por um teste de detecção de mentiras. Não está claro se o projeto de lei vai para frente, mas o medo de admitir malfeitores é real — e se bobear, os americanos estão dispostos a ignorar questões de privacidade e precisão para proteger a pátria.

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Em 2002, John Kircher, psicofisiologista renomado e coinventor do polígrafo computacional, viajou para fazer trilhas com alguns amigos e colegas de profissão, como psicólogos cognitivos e educacionais. Da conversa entre eles surgiu uma reflexão: será que câmeras de rastreamento ocular, comumente usadas para estudar compreensão de leitura, seriam úteis em detecção de mentiras? A indagação resultou em mais de 12 anos de pesquisas e, por fim, na criação do EyeDetect.

"Há muitos anos sabemos que a pupila serve de diagnóstico", Kircher contou ao Motherboard. "Condições de estresse cognitivo ocasionam uma série de mudanças fisiológicas no corpo, incluindo a dilatação do tamanho da pupila." Visto que contar uma mentira demanda muito mais, em termos cognitivos, do que dizer a verdade, eles pressupuseram que um mentiroso seria traído pelas alterações dos olhos.

Depois de retornar da viagem, Kircher formou uma equipe com dois psicólogos cognitivos, Dan Woltz e Ann Cook, todos da Universidade de Utah. Em 2009, testaram as câmeras de rastreamento ocular em um experimento criminal simulado com 40 participantes. Metade do grupo foi aletoriamente marcado como culpada e designada a executar um desses dois crimes — afanar 20 dólares da carteira de uma secretária ou roubar as informações de um cartão de crédito do computador de um estudante. A outra metade era inocente. Os examinadores disseram ao grupo inteiro que todos eram suspeitos e prometeram premiar com dinheiro os integrantes que contassem uma história crível. Em seguida, cada participante leu e respondeu perguntas de verdadeiro ou falso a respeito dos crimes. Os pesquisadores descobriram que as câmeras de rastreamento ocular avaliaram com precisão quem estava mentindo e quem estava contando a verdade em 80% dos casos. Testes subsequentes de Kircher confirmaram esses resultados em larga escala.

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Só de pensar em um problema difícil de matemática, as pupilas já dilatam.

"Prevíamos que a carga cognitiva do ato de mentir dilataria as pupilas", disse Kircher. "E confirmamos a pressuposição. É mais difícil contar uma mentira do que dizer a verdade. Os resultados nos surpreenderam. Ao longo da carreira, surgem várias ideias que achamos fantásticas. Mas raramente evoluem. Tivemos sorte nesse caso."

Em 2009, os pesquisadores e alguns investidores individuais formaram uma empresa, a Credibility Assessment Technologies, que assinou um contrato de licenciamento com a Universidade de Utah para comercializar o sistema. (A instituição de ensino é proprietária da tecnologia, visto que foi desenvolvida por membros de seu corpo docente.) Uma segunda bateria de experimentos foi conduzida em 2011, dessa vez na Colômbia. Lá, porém, os pesquisadores ficaram confusos com os resultados. "Fracassou miseravelmente", disse Kircher. "Foi como um jogo de cara ou coroa".

A equipe deduziu que o fracasso originou da falta de escolaridade dos participantes do teste. Eles liam tão mal que os esforços cognitivos suplementares, necessários para compreender as perguntas, encobriram os efeitos da mentira. Esse problema, dizem, ainda pode se tornar um entrave crucial.

Kircher e seus companheiros continuaram o trabalho. As câmeras de rastreamento ocular evoluíram. O software utilizado para processar os dados foi lapidado. Uma empresa mexicana de capital de risco investiu no projeto e, em 2013, a empresa mudou de nome para Converus e elegeu Mickelsen presidente e CEO. Não demoraram a ter um produto para vender.

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Em seu formato atual, o EyeDetect funciona assim: uma pessoa senta de frente para um computador com o rosto fixado em direção a uma câmera infravermelho, que plota o movimento dos olhos enquanto a pessoa lê e responde uma série de perguntas simples de verdadeiro ou falso. As câmeras mensuram dilatações da pupila de até um décimo de milímetro, marcam onde elas se fixam quando a pessoa lê a pergunta e cronometram quanto tempo a pessoa demora para responder. O teste todo leva 30 minutos e é completamente automatizado. As perguntas são salvas em um servidor seguro e são carregadas em uma nuvem que, por sua vez, gera a "pontuação de credibilidade" em cinco minutos.

"Não é intrusivo. A pessoa não é conectada a um monte de sensores", Mickelsen falou ao Motherboard. "É mais rápido, mais barato e não leva em conta etnia, cor da pele ou língua."

Um estudo criminal simulado, publicado este ano — realizado com um grupo alfabetizado de 147 estudantes no Instituto de Tecnologia de Monterrey, no México — gerou resultados semelhantes ao experimentos feitos nos Estados Unidos. "Tínhamos duas perguntas em mente", disse Mickelsen. "O software funciona? Descobrimos que funciona, sim. Há diferenças culturais nos resultados? Não, não há." A conclusão da pesquisa foi que o aparato serve para ser usado em outras línguas, com pessoas de culturas diferentes.

"Acreditamos que existe um grande mercado."

O EyeDetect — que já tem seis resenhas em publicações do campo — agora é usado para avaliar os funcionários de 135 clientes ao redor da América Latina, incluindo agências governamentais do México, Colômbia, Equador e Peru, segundo Mickelsen. Um "grande país do Oriente Médio", não nomeado, está conduzindo o desenvolvimento da versão árabe. Já foram feitos mais de 240 testes diferentes, cobrindo o uso de drogas, lavagem de dinheiro, ligações com organizações criminosas ou terroristas, e uma série de tópicos relacionados e análises combinatórias.

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No fim do ano passado, o EyeDetect foi lançado nos Estados Unidos. De acordo com Mickelsen, agora é usado para fazer a triagem de autoridades policiais e carcerárias nos estados de Utah, Texas, Ohio, Louisiana e Flórida, entre outros. A empresa planeja realizar testes para mensurar a capacidade de detectar mentiras entre criminosos em liberdade condicional. Vigora, entre as autoridades, a crença de que enfim surgiu uma tecnologia para desafiar a primazia malquista do polígrafo na detecção de mentiras. Mas já ouvimos isso antes.

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Diversos aparatos e técnicas surgiram nos últimos anos com a promessa de detectar falsidades. Em esferas locais e estaduais dos EUA, ainda não existem padrões uniformes para distinguir as tecnologias legítimas das fraudulentas. Departamentos policiais e agências governamentais do país decidem por conta própria que tecnologias devem usar.

"Com base nas técnicas que vi serem propagadas nos últimos anos, parece que vale tudo", disse Maria Hartwig, professora de psicologia e especialista em detecção de mentiras da Faculdade John Jay de Direito Penal, nos Estados Unidos. "Já vi todo tipo de baboseira à venda por montantes absurdos; não apenas aparatos, mas programas de treinamento cujas alegações são absurdas e estão em completo descompasso com os estudos científicos."

Talvez o caso mais infame seja o do Voice Stress Analysis [Análise de Estresse na Voz], programa que mensura as mudanças de tom, timbre e cadência da voz para detectar embustes. Vários departamentos policiais ao redor dos Estados Unidos caíram na pegadinha, no desespero de encontrar uma alternativa mais barata e eficiente do que o polígrafo. Hoje há consenso que o programa é falso; quando o testaram em um experimento criminal simulado, foi menos eficiente do que um jogo de cara ou coroa. Às vezes, policiais o tiram da gaveta com a finalidade expressa de intimidar os suspeitos e fazê-los confessar durante uma investigação. Tirando isso, o programa é tão útil quanto um apoio de papel.

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Mais lamentável que o Voice Stress Analysis é o caso do programa SPOT, Screening Passengers by Observation Techniques [Avaliação de Passageiros com Técnicas de Observação], um projeto-piloto de seis anos realizado pela TSA, que treinou oficiais para detectar imposturas por meio de "microexpressões" em 161 aeroportos ao redor dos Estados Unidos. O programa foi baseado no trabalho de Paul Ekman, figura polêmica entre psicólogos. Conforme Hartwig — que depôs em uma investigação parlamentar sobre o programa, hoje descontinuado — contou à Motherboard, "ele foi implementado sem análise prévia, com base em ciências ruins. Foi um enorme desperídicio do dinheiro do contribuinte para apenas inflar a falsa crença em triagens de segurança."

De acordo com Mickelsen, nos próximos meses, uma "grande agência federal" conduzirá seus próprios testes para medir a eficácia do EyeDetect na avaliação de agentes do Serviço Secreto, Alfândega e Proteção de Fronteiras e afins. Os experimentos serão monitorados pelo Centro Nacional de Avaliação de Credibilidade (NCCA), órgão responsável pela análise de tecnologias de detecção de mentiras para o governo federal. Se os resustados dos testes condizerem com os estudos anteriores, há uma possibilidade real do EyeDetect se unir ao polígrafo como as duas maneiras reconhecidas em esfera federal para detectar mentiras.

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Embora a autorização da NCCA seja importante, ela não é necessária para usarem o EyeDetect com refugiados sírios e iraquianos, que, segundo o estatuto americano, não são cidadãos nem candidatos a empregos.

Dada a incapacidade do polígrafo de avaliar devidamente a "credibilidade" de grandes grupos de pessoas, há uma oportunidade de lucro em potencial para a Converus. O EyeDetect poderia examinar todos os 10 mil refugiados para desvelar ligações com organizações terroristas ou crime organizado em apenas 30 dias com apenas 10 inspetores, disse Mickelsen.

O CEO vislumbra um futuro em que o programa avaliará centenas de milhares de criminosos em liberdade condicional que precisam passar por testes de detecção de mentiras regularmente, bem como funcionários governamentais de tudo quanto é agência, dentro ou fora do país. (Visto que tudo isso ainda não passa de conversa, não está claro como o governo agirá frente os resultados.)

"Acreditamos que existe um grande mercado", disse Mickelsen. "Poderíamos até usar o EyeDetect para avaliar solicitantes de vistos em todas as embaixadas do mundo. Ele oferece forte aplicabilidade para todos os setores de segurança nacional. Daqui a alguns anos, podemos virar um negócio de bilhões de dólares."

A questão da alfabetização, porém, continua em aberto. Conforme Kircher descobriu na Colômbia, o sistema só funciona com pessoas que sabem ler direito. Outro problema sutil é que, segundo experimentos, as pupilas dilatam sob condições de estresse cognitivo, mesmo em casos de questionamentos orais. Só de pensar em um problema difícil de matemática, as pupilas já dilatam. Atualmente, o laboratório de Kircher busca descobrir se um exame em áudio produziria as mesmas mudanças fisiológicas indicativas de tensão cognitiva e mentiras. Isso tornaria o sistema universal.

O impulso por trás da lei H.R. 4291 é compreensível. Será possível capturar malfeitores sem incriminar pessoas inocentes? Se a história em preto e branco da deteccção de mentiras revela algo, é que o desespero é um atalho para a verdade. Somos otimistas, acreditamos que surgirá algo no caminho que, por fim, desmitificará fraudes. Governos, empresas privadas e pesquisadores acadêmicos já investiram fortunas em capital e esforços para esse fim. Ainda assim, a verdade permanece elusiva. E provavelmente permanecerá para sempre.

Tradução: Stephanie Fernandes