Será que Estamos Presos ao Mesmo Cérebro de Quando Nascemos?
Imagem: dierk schaefer/Flickr

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Será que Estamos Presos ao Mesmo Cérebro de Quando Nascemos?

A neuroplasticidade pode não ser o superpoder que muitos acreditam.

Por vários anos ela tentou ser uma esposa e mãe perfeita. Até que, divorciada, com dois filhos, depois do fim de mais um relacionamento e sem esperanças quanto a seu futuro, ela sentiu que falhara em tudo e cansou. Em 6 de junho de 2007, a americana Debbie Hampton, de Greensboro, na Carolina do Norte, tomou uma overdose de mais de 90 comprimidos – uma combinação de dez medicamentos prescritos diferentes, alguns dos quais ela roubara do criado-mudo de um vizinho. Naquela tarde, ela escreveu um bilhete no computador: "Arruinei tanto a minha vida que não há lugar para mim e nada com que eu possa contribuir". Ainda em lágrimas, ela subiu para seu quarto, sentou na cama, engoliu os comprimidos com um pouco de vinho barato e colocou um CD da Dido para ouvir enquanto morria. Ao deitar, ela se sentiu triunfante.

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Então, acordou novamente. Debbie foi encontrada, levada às pressas ao hospital e salva. "Fiquei puta", ela disse. "Avacalhei tudo. E, para piorar, ainda estraguei meu cérebro." Depois que Debbie voltou do coma de uma semana, seus médicos deram o seguinte diagnóstico: encefalopatia. "É um termo genérico para dizer que o cérebro não está funcionando direito", ela afirmou. Ela não conseguia engolir ou controlar sua bexiga, e suas mãos tremiam constantemente. Na maior parte do tempo, não conseguia entender o que estava enxergando. Mal conseguia falar. "Eu só conseguia balbuciar alguns sons", ela disse. "Era como se minha boca estivesse cheia de bolas de gude. Foi um choque, porque o que eu ouvia da minha boca não correspondia com o que eu ouvia na cabeça."

Depois de passar um tempo em um centro de reabilitação, ela começou a se recuperar aos poucos. Porém, depois de um ano, ela se estabilizou. "Minha fala era bastante lenta e incompreensível. Minha memória e minha capacidade de pensamento eram duvidosas. Eu não tinha mais energia para uma vida normal. Um dia bom era quando eu conseguia esvaziar a máquina de lavar louça."

Foi nessa época que tentou um tratamento novo chamado de retroinformação neurológica. Ela foi solicitada a ter seu cérebro monitorado enquanto jogava um jogo simples no estilo Pac-Man. Seus movimentos eram controlando por meio da manipulação de ondas cerebrais. "Dentro de dez sessões, minha capacidade de falar melhorou." Mas a grande reviravolta de Debbie aconteceu quando seu orientador de retroinformação neurológica recomendou a ela a leitura de um livro: o best-seller internacional The Brain that Changes Itself, do psicoterapeuta canadense Norman Doidge [n. de t.: publicado no Brasil com o título de O Cérebro que se Transforma, pela editora Record, em 2011]. "Meu Deus", ela disse. "Pela primeira vez eu vi que era possível consertar meu cérebro. Não somente possível, mas também que isso dependia de mim."

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"Você não está preso ao cérebro com que nasceu. Você pode ter recebido certos genes, mas o que você faz em sua vida modifica seu cérebro"

Após a leitura do livro, Debbie começou a viver aquilo que chama de uma vida "saudável neurologicamente", o que inclui ioga, meditação, visualização, dieta e a manutenção de uma atitude mental positiva. Hoje ela é sócia de um estúdio de ioga, já publicou uma autobiografia e um guia para a "vida neurologicamente saudável" e cuida do site thebestbrainpossible.com. A ciência da neuroplasticidade, ela afirma, a ensinou que "você não está preso ao cérebro com que nasceu". "Você pode ter recebido certos genes, mas o que você faz em sua vida modifica seu cérebro. Essa é a varinha mágica", ela diz. A neuroplasticidade, ainda segundo Debbie, "permite que você mude sua vida e torne a felicidade possível. É possível deixar de ser uma vítima e ser um vitorioso. É como ter superpoderes. É como ter visão em raios-x."

Debbie não está sozinha em seu entusiasmo pela neuroplasticidade, a capacidade do cérebro em se modificar como resposta às coisas que acontecem em nosso ambiente. As alegações de seus benefícios são bastante difundidas e surpreendentes. Meia hora de pesquisa no Google já nos mostra que a neuroplasticidade é uma descoberta científica "mágica", que mostra que nossos cérebros não são gravados, como nos computadores, da forma como se pensava anteriormente, mas sim, mais como uma massinha de modelar ou um "cheesecake". Isso significa que "nossos pensamentos podem mudar a estrutura e a função de nosso cérebro" e que, por meio de certos exercícios, podemos de fato melhorar fisicamente "a força, o tamanho e a densidade" de nosso cérebro.

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A neuroplasticidade é uma "série de milagres que acontece em seu crânio", o que significa que podemos ser vendedores e atletas melhores, e ainda aprender a amar o gosto de brócolis. Ela pode tratar transtornos alimentares, prevenir o câncer, diminuir nosso risco de desenvolver a demência em 60% e nos ajudar a descobrir a "verdadeira essência da paz e da alegria". Podemos nos instruir a "capacidade" da felicidade e treinar nosso cérebro para que ele fique "incrível". E a idade não é uma limitação: a neuroplasticidade afirma que "nossas mentes são projetadas para melhorar conforme envelhecemos". E não é uma tarefa difícil. "Simplesmente mudar o trajeto até o trabalho, comprar em uma loja diferente ou usar a outra mão para pentear o cabelo já são capazes de aumentar seu poder cerebral." Conforme o guru da medicina alternativa e celebridade Deepak Chopra afirmou, "a maioria das pessoas acredita que o cérebro as controla. Já eu digo que nós controlamos nosso cérebro."

É difícil para quem não é cientista compreender o que é a neuroplasticidade.

A história de Debbie é um mistério. As técnicas que prometem mudar seu cérebro por meio da compreensão dos princípios da neuroplasticidade tiveram claramente um efeito positivo nela. Mas é verdade que a neuroplasticidade é um superpoder, como a visão em raios-x? É possível melhorar o tamanho de nosso cérebro simplesmente com o pensamento? É possível diminuir o risco de demência em 60%? E amar o gosto de brócolis?

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Algumas dessas perguntas são bobas, mas outras não. Esse é o problema. É difícil para quem não é cientista compreender o que é a neuroplasticidade e qual seu verdadeiro potencial. "Vi muitos exageros", afirma Greg Downey, antropólogo da Universidade Macquarie e coautor do blog popular Neuroanthropology. "As pessoas estão tão empolgadas com a neuroplasticidade que elas se convenceram a acreditar em qualquer coisa."

Por muitos anos, o consenso era de que o cérebro humano não poderia criar células novas quando atingisse a idade adulta. Conforme crescemos, entramos em um estado de declínio neural. Esta visão talvez seja mais conhecida por ter sido expressada pelo chamado fundador da neurociência Santiago Ramón y Cajal. Após um breve interesse na plasticidade, ele ficou cético e escreveu, em 1928, "nos centros adultos, as vias neurais são fixas, encerradas e imutáveis. Tudo pode morrer, nada pode ser regenerado. Cabe à ciência do futuro modificar, se possível, essa ordem implacável." O prognóstico pessimista de Cajal se prolongaria ao longo do século XX.

Embora a noção de que o cérebro adulto pode passar por grandes modificações positivas tenha recebido alguma atenção esporádica ao longo do século XX, ela foi praticamente ignorada, como um jovem psicólogo chamado Ian Robertson veio a descobrir em 1980. Ele havia recém começado a trabalhar com indivíduos que sofreram derrames no Hospital Astley Ainslie, em Edimburgo, e ficou intrigado com aquilo que viu. "Adentrei naquilo que até então era campo novo para mim: a neurorreabilitação", ele afirmou. No hospital, ele observou adultos que recebiam terapia ocupacional e fisioterapia. Ele pensou: se essas pessoas sofreram derrame, significa que uma parte do cérebro delas foi destruída. E se uma parte do cérebro foi destruída, todos sabemos que ela se perdeu para sempre. Então, como é possível que essas terapias físicas repetitivas façam tanta diferença e ajudem tanto? Não fazia sentido. "Eu estava tentando compreender qual era o modelo", ele afirmou. "Qual é a base teórica para a atividade aqui?" E as pessoas que responderam as suas perguntas foram, no que se entende hoje, pessimistas.

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"Toda a filosofia deles era compensatória", Robertson afirmou. "Eles pensavam que as terapias externas estavam somente prevenindo que mais coisas negativas acontecessem com o cérebro delas." Em certo momento, ainda intrigado, ele solicitou um livro-texto que explicasse como era possível que isso acontecesse. "Havia um capítulo sobre cadeiras de rodas, e um capítulo sobre bengalas", ele afirmou. "Mas não havia nada, absolutamente nada, sobre a noção de que a terapia poderia mesmo influenciar a reconexão física do cérebro. Essa atitude de fato remonta a Cajal. Ele influenciou toda a mentalidade de que o cérebro adulto é conectado, que a única coisa que pode acontecer é perder neurônios, e que se você sofrer um dano cerebral, a única coisa a fazer é ajudar as partes restantes a funcionar ao redor dele."

Merzenich e Bach-y-Rita queriam provar que Cajal e o consenso científico estavam errados. O cérebro adulto era plástico. Ele poderia se reconectar por conta própria e, às vezes, de forma radical.

Entretanto, o prognóstico de Cajal também apresentava um desafio. Foi somente nos anos 1960 que a "ciência do futuro" começou a dar atenção ao assunto. Os dois pioneiros determinados, cujas histórias são contadas no livro de Doidge, são Paul Bach-y-Rita e Michael Merzenich. Bach-y-Rita é, talvez, famoso por seu trabalho ajudando indivíduos cegos a "ver" de uma forma nova e radicalmente diferente. Em vez de receber informações sobre o mundo através dos olhos, ele se questionou se eles poderiam recebê-las na forma de vibrações na pele. Eles sentavam em uma cadeira e se recostavam sobre uma chapa metálica. Pressionadas contra a parte de trás da chapa de metal estavam 400 placas menores que vibravam conforme um objeto se movimentava. Conforme os dispositivos de Bach-y-Rita ficavam mais sofisticados (uma das versões mais recentes é colocada na língua), os cegos congênitos começaram a relatar a experiência de "ver" em três dimensões. Foi somente com o advento da tecnologia de neuroimagem que os cientistas começaram a ter evidências para uma hipótese incrível: que as informações parecem ser processadas no córtex visual. Embora a hipótese ainda precise ser estabelecida, é como se o cérebro dos cegos tenha sido reconectado de uma forma radical e útil que durante muito tempo pensou-se que era impossível.

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Merzenich, entretanto, ajudou a confirmar, no fim dos anos 1960, que o cérebro contém "mapas" do corpo, bem como do mundo exterior, e que esses mapas têm a capacidade de se modificar. Em seguida, ele ajudou a desenvolver o implante coclear, o qual ajudou pessoas surdas a escutar. Isso depende do princípio da plasticidade, no qual o cérebro precisa se adaptar para receber as informações auditivas do implante artificial, em vez da cóclea (que, em uma pessoa surda, não funciona). Em 1996 ele ajudou a consolidar uma empresa comercial que produz softwares educacionais chamada de Fast ForWord com o intuito de "aprimorar as capacidade cognitivas das crianças por meio de exercícios repetitivos com base na plasticidade, a fim de melhorar a função cerebral", conforme o site da empresa. Como Doidge escreve, "Em certos casos, as pessoas que tiveram uma vida inteira de dificuldades cognitivas melhoram após 30 a 60 horas de tratamento".

Embora tenha levado várias décadas, Merzenich e Bach-y-Rita queriam provar que Cajal e o consenso científico estavam errados. O cérebro adulto era plástico. Ele poderia se reconectar por conta própria e, às vezes, de forma radical. Isso se mostrou uma surpresa para especialistas como Robertson, agora diretor do Instituto de Neurociências da Trinity College em Dublin. "Posso recordar de quando dava aulas na Universidade de Edimburgo aos alunos, nas quais eu passava informações erradas, com base no dogma de que, uma vez morta, uma célula cerebral não pode se regenerar, e que a plasticidade ocorre somente nos primeiros anos da infância", ele afirmou.

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Foi somente com a publicação de uma série de estudos envolvendo neuroimagem que essa nova verdade começou a ser transmitida às sinapses das massas. Em 1995, o neuropsicólogo Thomas Elbert publicou seu trabalho sobre músicos de instrumentos de cordas, que mostrou que os "mapas" representando cada dedo da mão esquerda – utilizados para o dedilhado – foram ampliados em comparação aos indivíduos que não são músicos (e comparados aos da mão direita, os quais não estão envolvidos no dedilhado). Isso demonstrou que seu cérebro se reconectou como resultado de muitas, muitas e muitas horas de prática. Três anos mais tarde, uma equipe sueca e norte-americana, conduzida por Peter Eriksson do Hospital da Universidade de Sahlgrenska, publicou um estudo na revista Nature que mostrou, pela primeira vez, que a neurogênese – a criação de células cerebrais novas – era possível em adultos. Em 2006, uma equipe liderada por Eleanor Maguire do Instituto de Neurologia da Universidade College em Londres descobriu que os motoristas de táxi da cidade têm mais substância cinzenta em uma área relativa ao hipocampo do que os motoristas de ônibus por causa de seu conhecimento espacial espantoso das ruas labirínticas de Londres. Em 2007, o livro de Doidge, The Brain that Changes Itself, foi publicado. Na resenha do livro, o New York Times declarou que "o poder do pensamento positivo finalmente ganhou credibilidade científica". E o livro vendeu cerca de um milhão de cópias em 100 países. Subitamente, a neuroplasticidade estava em todos os lugares.

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Acrescentando mais uma volta à discussão já bastante confusa sobre neuroplasticidade está o fato de que essa palavra pode significar várias coisas.

É fácil, e até divertido, ser cínico a respeito disso. Entretanto, a neuroplasticidade é algo realmente singular. "O que sabemos é que quase tudo o que fazemos, todos os nossos comportamentos, pensamentos e emoções, modificam nosso cérebro fisicamente de uma forma que sustenta mudanças na química e na função cerebral", Robertson afirmou. "A neuroplasticidade é uma característica constante na essência do comportamento humano." Essa compreensão do poder do cérebro, ele afirma, abre a possibilidade para novas técnicas a fim de tratar uma série de doenças potencialmente espetacular. "Não existe nenhuma doença ou lesão, acredito eu, na qual não haja um potencial que permita realizar uma aplicação inteligente de estímulos no cérebro por meio do comportamento, possivelmente combinado com outros estímulos."

E ele concorda que o poder do pensamento positivo agora ganhou credibilidade científica? "Minha resposta imediata é: sim", ele afirma. "Eu acho que os seres humanos têm muito mais controle sobre suas funções cerebrais de que já se tem conhecimento." A resposta mais elaborada é: sim, mas com ressalvas. Em primeiro lugar, há a influência de nossos genes. Certamente, pergunto a Robertson, eles ainda têm uma influência poderosa sobre tudo, desde nossa saúde a nosso caráter? "Meu princípio básico é que se trata de uma divisão de 50 a 50 em termos de influência da natureza, e de cultura", ele afirma. "Porém, devemos ser bastante positivos a respeito dos 50% que são ambientais."

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Acrescentando mais uma volta à discussão já bastante confusa sobre neuroplasticidade está o fato de que essa palavra pode significar várias coisas. Em um sentido mais amplo, afirma Sarah-Jayne Blakemore, vice-diretora do Instituto de Neurociência Cognitiva de Londres, ela se refere "à capacidade do cérebro em se adaptar aos estímulos ambientais em processo de mudança". Porém, o cérebro pode se adaptar a eles de várias formas diferentes. A neuroplasticidade pode se referir a mudanças estruturais, como quando neurônios são criados, quando eles morrem, ou ainda quando as conexões sinápticas são criadas, reforçadas ou interrompidas. Pode também se referir a reorganizações funcionais, tais como aquelas experimentadas pelos pacientes cegos de Paul Bach-y-Rita, cujos dispositivos acionaram o cérebro a começar a usar os córtices visuais, os quais foram previamente desnecessários.

Em uma escala desenvolvimental maior, há duas categorias de neuroplasticidade. Elas são "realmente diferentes", afirma Blakemore. "É necessário diferenciar uma da outra." Ao longo da infância, nosso cérebro passa por uma fase de plasticidade de "expectativa da experiência". Ele tem a "expectativa" de esperar certas coisas importantes do ambiente, em certas idades como, por exemplo, falar. Nosso cérebro somente encerra esse desenvolvimento perto dos 20 anos. "É por isso que as apólices de seguro dos veículos são tão caras para pessoas com menos de 25 anos", afirma Robertson. "Seu lobo frontal ainda não está totalmente conectado com o resto do cérebro. Toda sua capacidade de antecipação de risco e impulsividade não está lá." E há também a plasticidade "dependente da experiência". "É o que o cérebro faz sempre que aprende algo, ou sempre que algo muda no ambiente", afirma Blakemore.

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Essa é a verdade sobre a neuroplasticidade: ela existe, e funciona, mas não é uma descoberta milagrosa que, com um pouco de esforço, é possível transformar um indivíduo em amante de brócolis, corredor de maratona e autoimune a doenças.

Uma forma na qual a ciência tem sido exagerada é na mistura desses tipos diferentes de mudanças. Alguns escritores fizeram parecer que quase tudo conta como "neuroplasticidade", logo, trata-se de algo revolucionário, mágico e digno de ser publicado. Porém, não é nenhuma novidade, por exemplo, que o cérebro é altamente afetado pelo ambiente quando somos jovens. Todavia, em The Brain that Changes Itself, Norman Doige observa a grande variedade de interesse sexual humano e chama isso de "plasticidade sexual". A neurocientista Sophie Scott, vice-diretora do Instituto de Neurociência Cognitiva de Londres, duvida disso. "Trata-se tão somente do efeito de crescer em seu cérebro", ela afirma. Doidge inclusive usa a neuroplasticidade para explicar mudanças culturais, como a ampla aceitação, nos tempos modernos, de que nós nos casamos por causa do amor romântico, em vez de conveniências socioeconômicas. "Isso não é neuroplasticidade", afirma Scott.

Essa, então, é a verdade sobre a neuroplasticidade: ela existe, e funciona, mas não é uma descoberta milagrosa que, com um pouco de esforço, é possível transformar um indivíduo em amante de brócolis, corredor de maratona, autoimune a doenças e um gênio incrível. A "questão profunda", afirma Chris McManus, professor de Psicologia e Educação Médica na University College de Londres, é: "Por que as pessoas, incluindo cientistas, querem tanto acreditar nisso?" Curioso sobre as causas subjacentes à mania pela neuroplasticidade, ele acredita que essa é a versão mais recente do mito da transformação pessoal que assombra a cultura ocidental há gerações.

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"As pessoas têm todo tipo de sonhos e fantasias, e eu acho que não somos muito bons em torná-los realidade", afirma McManus. "Mas gostamos pensar que quando alguém não é bem-sucedido na vida, ele ou ela podem se transformar e alcançar o sucesso. É bem o estilo do Samuel Smiles, não é? O livro que ele escreveu, chamado Self-Help, era o pensamento positivo da época vitoriana."

Samuel Smiles [uma revelação: Samuel Smiles é meu tio-tio-avô] é comumente citado como o inventor do movimento de "autoajuda" e seu livro, assim como o de Doidge, falava sobre algo profundo na população e se tornou um best-seller surpreendente. A mensagem otimista que Smiles transmitia falava do mundo novo e moderno, e dos sonhos dos homens e mulheres que viviam nele. "No século XVIII, o poder estivera totalmente na aristocracia", afirma a historiadora Kate Williams. "Smiles escrevia no tempo da Revolução Industrial, da educação difundida e das oportunidades econômicas oferecidas pelo Império. Era a primeira vez que a classe média podia trabalhar arduamente e se dar bem. Eles precisavam de uma ética de trabalho formidável para conseguir o sucesso, e foi o que Smiles elaborou no Self-Help."

Na segunda metade do século XIX, pensadores norte-americanos adaptaram essa ideia de modo a refletir a crença nacional de que estavam criando um mundo novo. Adeptos dos movimentos do Novo Pensamento, da Ciência Cristã e da Cura pela Metafísica eliminaram muito do papo de trabalho árduo, exigido pelos britânicos, para criar o movimento de pensamento positivo os quais muitos acreditam que forneceu alguma credencial científica à neuroplasticidade. O psicólogo William James chamou isso de "o movimento de cura da mente", a "crença intuitiva no poder salvador de atitudes mentais saudáveis as quais, na conquista pela eficácia da coragem, esperança e confiança, juntamente com um desprezo correlativo para a dúvida, o medo e a preocupação, todos esses estados mentais que evocam a precaução". Eis a noção inerentemente americana da que a autoconfiança e o otimismo – pensados por si mesmos – poderiam oferecer a salvação pessoal.

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Esse mito – de que podemos ser o que quisermos e realizar nossos sonhos conquanto tenhamos autoconfiança suficiente – emerge novamente em nossa literatura, cinema e nas notícias, e também em competições de cantores da televisão estrelando Simon Cowell, bem como loucos como ele da neuroplasticidade. Uma encarnação anterior, e consideravelmente similar, foi a programação neurolinguística, que afirma que condições psicológicas como a depressão não passam de padrões aprendidos pelo cérebro, e que o sucesso e a felicidade não passam de uma forma de reprogramá-lo. A ideia apareceu com uma roupagem mais acadêmica, de acordo com McManus, na forma do que é conhecido hoje como Modelo Padrão de Ciência Social. "É uma ideia dos anos 1990 na qual todo o comportamento humano é infinitamente maleável e que os genes não têm participação nenhuma."

Entretanto, os seguidores da plasticidade têm uma resposta à questão dos genes, e sua grande influência sobre todas as questões da saúde, da vida e do bem-estar. A resposta deles é a epigenética. Trata-se de uma compreensão relativamente nova sobre a forma como o ambiente pode modificar a forma como os genes se expressam. Deepak Chopra afirmou que a epigenética nos mostrou que "independentemente da natureza dos genes que herdamos de nossos pais, a mudança dinâmica nesse nível nos permite uma influência quase ilimitada sobre nosso destino".

Jonathan Mill, professor de Epigenética na Universidade de Exeter, rejeita esse tipo de alegação. "É uma ciência muito empolgante", ele afirma, "mas afirmar que essas coisas vão reconectar totalmente seu cérebro e o funcionamento dos genes é ir longe demais". E não é somente Chopra quem faz isso. Grandes jornais e periódicos acadêmicos também são culpados, em algumas situações, por cair nesse mito. "Já vimos todo tipo de manchetes excessivamente sensacionalistas. As pessoas que vêm fazendo epigenética há algum tempo estão praticamente desesperadas neste momento, em parte porque ela está sendo usada como explicação para todo tipo de coisas sem qualquer evidência direta e real."

Assim como a epigenética não cumpre a nossa promessa cultural de transformação pessoal, a neuroplasticidade também não o faz. Mesmo que algumas das alegações mais críveis sejam, de acordo com Ian Robertson, atualmente justificáveis. Veja uma delas, a de que é possível diminuir em 60% o risco de desenvolver demência. "Não há um único estudo científico que tenha demonstrado que qualquer intervenção de qualquer tipo possa reduzir o risco de demência em 60% ou outro percentual", ele afirma. "Ninguém fez pesquisas utilizando metodologias apropriadas de grupo controle para mostrar que há qualquer relação de causa e efeito."

De fato, o registro clínico de muitos tratamentos famosos que usam os princípios da neuroplasticidade é notavelmente misto. Em junho de 2015, a FDA dos EUA permitiu a venda e anúncio da última versão dos dispositivos para a língua destinados aos cegos de Bach-y-Rita, citando estudos bem-sucedidos. E ainda, uma revisão de Cochrane sobre a terapia de movimento restrito-induzido – um tratamento fundamental para os pregadores da neuroplasticidade, a qual oferece melhoras na função motora para pessoas que sofreram derrame – descobriu que "esses benefícios não reduzem a incapacitação de maneira convincente". Uma metanálise de neuroplasticidade, datada de 2011, sobre as técnicas de aprendizado do Fast ForWord, de Michael Merzenich, mostrou que os efeitos empolgantes do Doidge não encontraram "nenhuma evidência", de que seriam "tão eficazes quanto tratamentos para dificuldades de fala ou de escrita para crianças". Isso, de acordo com Sophie Scott, também serve para demais tratamentos. "Houve muita empolgação sobre os kits de treinamento cerebral e, na realidade, estudos grandes como esses em geral não apresentar muitos efeitos", ela explicou. "Ou eles mostram que você se sai melhor nas coisas que já havia praticado antes, mas isso não pode ser generalizado para algo melhor." Em novembro de 2015, uma equipe liderada por Clive Ballard na King's College de Londres descobriu evidências de que os jogos de treinamento cerebral na internet podem ajudar no raciocínio, na atenção e na memória aos indivíduos com mais de 50 anos.

Talvez seja compreensível por que níveis absurdos de esperança surgem quando as pessoas leem histórias de recuperações aparentemente milagrosas de lesões cerebrais nas quais as pessoas passam a ver, ouvir e caminhar novamente. Essas explicações dramáticas fazem parecer que tudo é possível. Mas o que normalmente está sendo descrito, nesses casos, é uma forma de neuroplasticidade bastante específica – a reorganização funcional – que pode aparecer somente em certas circunstâncias. "Os limites são, em parte, arquitetônicos", afirmou Greg Downey. "Algumas partes do cérebro são melhores em fazer certas coias, e parte disso ocorre simplesmente a partir de onde elas se encontram."

Apesar do que as tendências de nossa cultura podem nos induzir insistentemente a acreditar, o cérebro não é uma massinha de modelar.

Outra limitação, àqueles que esperam desenvolver superpoderes, é o simples fato de que todas as partes de um cérebro normal já estão ocupadas. "O motivo pelo qual você se reorganiza após uma amputação, por exemplo, é que você simplesmente colocou em desuso uma seção do córtex somatossensorial", ele afirmou. Um cérebro saudável simplesmente não tem esse espaço disponível. "Porque ele continua sendo usado para o que sempre foi usado, não é possível treiná-lo para fazer outra coisa. Ele já está fazendo algo."

A idade também representa um problema. "Com o tempo, o plástico enrijece", afirmou Downey. "Você começa com mais dele e o espaço para o movimento diminui lentamente. É por isso que uma lesão cerebral aos 25 é uma situação totalmente diferente de uma lesão cerebral aos sete anos. A plasticidade afirma que você pode começar com muito potencial, mas que vai estabelecendo um futuro incrivelmente determinado pelo que você já fez antes."

Robertson fala do tratamento de um historiador e escritor famoso que sofreu um derrame. "Ele perdeu completamente a capacidade de linguagem expressiva", ele afirmou. "Ele não conseguia dizer uma palavra sequer, e não conseguia escrever. Ele passou por muita terapia e nenhum tipo de estímulo podia recuperá-lo porque seu cérebro se tornou hiperespecializado, e toda uma rede se desenvolveu para a produção altamente refinada da linguagem." Apesar do que as tendências de nossa cultura podem nos induzir insistentemente a acreditar, o cérebro não é uma massinha de modelar. "Não é possível abrir áreas novas dele", afirmou McManus. "Não é possível expandi-lo em partes diferentes. O cérebro não é uma geleca. Você não pode fazer o que quiser com ele."

Mesmo aqueles cujas vidas foram transformadas pela neuroplasticidade estão descobrindo que a modificação cerebral não é assim tão fácil. Veja a recuperação de um derrame: "se você precisa recuperar o movimento de um braço, vai precisar movimentá-lo dezenas de milhares de vezes antes de começar a aprender novas vias neurais para fazer isso normalmente", afirmou Downey. "E depois, ainda não há garantia de que vá funcionar." Scott afirma algo semelhante sobre a terapia de fala e da linguagem. "Tivemos dias sombrios, por assim dizer, há 50 anos, em que se você tivesse um derrame, você não receberia outro tratamento até de parar de engasgar, simplesmente porque eles decidiam que não ia funcionar. Entretanto, agora está ficando absolutamente claro que sim, pode funcionar, e isso é algo fenomenalmente bom. Só que nada disso vem de graça."

Aqueles que promovem excessivamente essas disciplinas emergentes como a neuroplasticidade ou a epigenética podem ser, por vezes, culpados de falar como se a influência de nossos genes não importasse mais. Esse entusiasmo pode fazer crer, ao não especialista, que a cultura pode facilmente conquistar a natureza. Esta é uma história que atrai inúmeros indivíduos, jornais, bloggers e gurus, porque nossa cultura a reforça e é algo no qual queremos acreditar: que a transformação pessoal radical é possível, e que temos potencial para ser quem e o que quisermos ser, que podemos encontrar a felicidade, o sucesso e a salvação – tudo o que precisamos fazer é tentar. Somos sonhadores até mesmo com as nossas sinapses, somos os protagonistas do sonho americano.

É claro, foi nosso cérebro maleável que se moldou a esses ritmos. Conforme crescemos, os mitos otimistas de nossa cultura se tornaram tão imbuídos em nosso senso de self que podemos perder a noção de que se trata de um mito. A ironia é que quando os cientistas descrevem com esmero os cegos que enxergam, e os surdos que ouvem, e tomamos isso como milagres, é tudo culpa de nossa neuroplasticidade.

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri