Seis meses depois, desastre de Mariana ainda prejudica vidas de animais
Cientistas afirmam que onda de destruição causada pelo rejeito da mineração de ferro da Samarco atingiu – e possivelmente extinguiu – várias espécies desconhecidas. Crédito: Mauricio Fidalgo

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Seis meses depois, desastre de Mariana ainda prejudica vidas de animais

Cientistas afirmam que onda de destruição causada pelo rejeito da mineração de ferro da Samarco atingiu – e possivelmente extinguiu – várias espécies desconhecidas.

Há seis meses, uma onda de morte se espalha lentamente pelo litoral brasileiro. No dia 5 de novembro, a barragem da Samarco, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, estourou. De lá escorreram 50 bilhões de litros de rejeito da mineração de ferro, uma lama escura, tóxica e sem vida. O lodo atingiu o Rio Doce e, depois de se arrastar por 660 quilômetros e 16 dias, chegou ao mar na costa do Espirito Santo. As correntes oceânicas, o vento e a chuva, ajudaram a lama a se espalhar por 7.000 km².

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A expressão onda de morte não é exagero. A passagem da lama deixou uma quantidade incalculável de animais soterrados e sufocados pelo caminho, no que é considerado o maior desastre ambiental da história brasileira. Segundo o engenheiro ambiental Carlos Barreira Martinez, coordenador do Centro de Pesquisa Hidráulicas e Recursos Hídricos da UFMG, a primeira leva de animais mortos aconteceu logo quando a lama atingiu a região. "O impacto foi imediato, reduzindo o oxigênio e aumentando a turbulência da água. A lama entra nas guelras e sufoca os peixes, crustáceos, tudo", diz.

Uma amostragem inicial, realizada nas primeiras semanas após o acidente, encontrou 7.410 carcaças de peixes em um trecho de apenas 150 quilômetros da superfície do rio. O número real, no entanto, deve ser muito maior, já que o cálculo levou em conta apenas os peixes encontrados na superfície e não os soterrados pelo lodo.

A contagem de mortos continua até hoje. Coberta pelo rejeito de minério de ferro e artificialmente assoreada, a região se tornou inóspita à vida. "Os peixes mais afetados são os que vivem próximos à calha do rio, como o mandi amarelo, o surubim e o cascudo, porque passam a viver em um deserto, sem ter do que se alimentar", diz Martinez. Para piorar, a água está cheia de material em dispersão que pode prejudicar o aparelho respiratório dos animais. Aos sobreviventes, sobrou apenas duas opções: migrar para os rios tributários ou morrer.

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Segundo um levantamento do Ibama, a onda de lama afetou ao menos 80 espécies de peixes, 112 de aves, 35 de mamíferos, 28 de anfíbios e 4 de répteis só na bacia do Rio Doce. "Muito mais do que os organismos em si, os processos ecológicos responsáveis por produzir e sustentar a riqueza e a diversidade do Rio Doce foram afetados", escreveram os técnicos do instituto.

Mais importante ainda: das 80 espécies de peixes atingidas, 11 são classificadas como ameaçadas de extinção e 12 são endêmicas — só existem lá. "É bem provável que algumas espécies devam desaparecer da região", diz Martinez.

A extinção de uma espécie por causa do desastre pode, inclusive, afetar a busca por novas moléculas para o desenvolvimento de produtos químicos e medicamentos

As perdas à biodiversidade, acreditam os especialistas, devem ser ainda maiores do que previsto. Segundo um estudo publicado pelo biólogo Antonio Carlos Marques, professor do Instituto de Biociências e diretor do Centro de Biologia Marinha da USP, na revista BIOTA Neotropica, milhares de espécies pouco conhecidas ou completamente desconhecidas pela ciência podem estar entre as atingidas pela chegada da lama ao oceano.

Imagens do estudo que aborda a vida da água-viva Kishinouyea corbini Larson que vivia apenas na região do desastre. Cientistas temem que a espécie tenha sido completamente sufocada pelo lodo. Crédito: Centro de Biologia Marinha da USP/ BIOTA Neotropica

O estudo, que ele publicou junto com a bióloga Lucília Santos Miranda, também da USP, se foca em um apenas um desses organismos: a Kishinouyea corbini Larson. Uma espécie extremamente rara de água-viva pequena, que não vive solta pelo mar, mas fixa, com a boca voltada para cima a fim de se alimentar de pequenos crustáceos. A única população encontrada no hemisfério sul vivia justamente na Praia dos Padres, no Espírito Santo, que foi devastada pela lama da Samarco. "Era uma população muito reduzida. Ela só existia naquela praia, que foi toda coberta pelo sedimento. Nosso temor é que os animais tenham sido simplesmente sufocados", diz Marques, que teve financiamento da Fapesp.

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O pesquisador diz que não foi possível verificar a real extensão do impacto na região porque ainda não havia sido liberada para pesquisas. "Mas há boa chance de que toda essa linhagem do atlântico sul tenha sido extinta", diz.

O desastre atinge a ciência

De acordo com Marques, a intenção do estudo foi usar a água-viva como um ícone do impacto do desastre aos animais ainda desconhecidos ou pouco estudados pela ciência. Estimativas mostram que pelo menos 91% das espécies marinhas ainda não foram descritas pelos cientistas.

Esse impacto se torna maior numa região atingida pela lama. "Aquele ambiente era muito específico, com muitas algas e grupos semelhantes aos corais. Esse tipo de meio particular favorece o surgimento de espécies especialistas na região", diz Marques. Para ele, o desastre pode ter atingido espécies ou linhagens desconhecidas que só existiam ali.

Essa perda, afirma Marques, é inestimável para os cientistas. "Quando ocorre o desaparecimento de uma espécie, há o desaparecimento de todas as informações científicas relacionadas a ela", diz.

As águas-vivas K. corbini , por exemplo, poeriam fornecder informações cruciais sobre a evolução de todo o filo dos Cnidários, que inclui os corais, as anêmonas do mar e caravelas. Isso porque elas fazem parte da classe Staurozoa, um grupo com cerca de 50 espécies que é descendente direto dos primeiros ancestrais das águas-vivas a se diferenciarem do resto do grupo. "Se você quiser entender como foi a evolução das águas-vivas e das caravelas, precisa estudá-las", diz Marques.

A extinção de uma espécie pode, inclusive, afetar a busca por novas moléculas para o desenvolvimento de produtos químicos e medicamentos. No caso das águas-vivas, cada espécie produz um tipo de veneno, composto por moléculas únicas. "Várias dessas moléculas podem ter utilidade científica. Quando você perde uma linhagem inteira, perde uma riqueza nunca explorada", diz o pesquisador. Antes do desastre, ele estava começando a estudar o veneno produzido pela K. corbini.

Deve demorar algumas décadas até que a bacia do Rio Doce e o oceano consigam se recuperar do desastre. Com o passar dos anos, a lama deve se dispersar pelo mar. Se alguns membros das espécies atingidas conseguirem se refugiar em algum ponto do litoral ou num rio tributário, é possível que consigam recolonizar a área. "O ambiente deve se estabilizar em algum ponto entre o desastre total e o estado em que se encontrava antes", diz Carlos Barreira Martinez, da UFMG. "Mas isso vai depender de a área parar de sofrer agressões, como a pesca, o lançamento de esgoto e agrotóxicos."

Quanto às espécies extintas, essas não voltarão nunca. Nem as informações científicas que se perderam com elas.