Por Dentro do Complexo Universo de Roberto Holz, ​o Luthier da Idade Média
​Crédito: Guilherme Santana/VICE

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Tecnologia

Por Dentro do Complexo Universo de Roberto Holz, ​o Luthier da Idade Média

Reproduzindo, construindo e fabricando na mão instrumentos de todos os tipos, Holz não vê problema em ser chamado de louco, maníaco e acumulador.

Da rua dava pra ouvir alguém improvisando jazz com uma flauta. A música vinha de uma bela casa de dois andares e três carros antigos na garagem localizada no Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Apertei a campainha. A melodia cessou e então fui recebido por Roberto Holz, o luthier especializado na construção de instrumentos da Idade Média.

Eu estava lá após uma conversa com a Mônica Lucas, chefe do Departamento de Música da Universidade de São Paulo. Foi ela quem me deu a dica: "Procura o Holz, um senhor que recria instrumentos de mais de cinco séculos atrás, ele sempre vale uma boa conversa". Com uma simples pergunta sobre música, Roberto é capaz de elaborar um ensaio oral sobre física, biologia, a história da humanidade, aventuras pela Europa e assuntos diversos. Ele tem 65 anos de idade, é solteiro, mora com a mãe brasileira, o pai alemão, dois cachorros de raça e uma infinidade de instrumentos espalhados por praticamente todos os cômodos da casa. Há 35 anos ganha a vida colecionando, restaurando e construindo objetos quase que extintos do vocabulário e do imaginário coletivo.

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"Faço apenas os instrumentos que sei tocar, que são todos os tipos de flautas e clarinetes, oboé, fagote, horn inglês, gaita de fole, violino, hurdy gurdy, clarone e outras coisas. Consigo construir cerca de 900 modelos diferentes. Mas se você me perguntar se toco todos perfeitamente, eu direi que não. Sou muito exigente com isso", diz Holz, com sua voz de tenor.

Flauta gótica alemã feita com um chifre de boi. Crédito: Guilherme Santana/VICE

No ateliê de Holz, um quartinho com varanda, só há uma tomada, que é para o toca-disco empoeirado. Os outros aparatos eletrônicos são a lampada no teto e o telefone. De resto, há mais algumas centenas de instrumentos curiosos, livros para todos os lados, quadros de época e muitas ferramentas, a maioria fabricada por ele com pedaços de metal e madeira. Durante minha visita, o telefpne tocou cinco vezes. Uma hora podia ser alguém que trouxe um violino da Itália para restaurar, e na outra, algum músico querendo saber da nova flauta que o luthier estava fazendo.

Os clientes de Roberto vão desde dom Francisco de Orleans e Bragança, da Família Imperial Brasileira, passando por Peter Krupp, herdeiro da indústria de metal ThyssenKrupp, até músicos amadores com profissões rentáveis. Fluente em cinco idiomas, o requisitado artesão diz que boa parte de seus instrumentos vão para a Europa.

Quando descreve seus clientes, Holz parece esboçar um retrato dele próprio. "São pessoas que esbanjam erudição e que gostam do que há de melhor na literatura, poesia, teatro, artes plásticas e música. Normalmente são profissionais liberais com uma grana boa, poliglotas que já viajaram muito e que, nas horas vagas, são músicos de altíssimo nível."

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Durante minha visita, Holz tocou diversos instrumentos e estilos musicais. Aqui, ele aparece com um fagote. Crédito: Guilherme Santana/VICE

A iniciação de Holz na música começou a partir dos sete anos de idade, quando ele aprendeu a tocar piano, acordeão e sanfona para agradar a mãe. Depois foi para o violão, "porque era algo mais punk e rebelde". O interesse pela luthieria e a música medieval vieram em seguida.

"Quando jovem, eu tocava músicas do alto romantismo, como as de Schumann, Brahms, Beethoven. Depois fui para Bach, Vivaldi, Mozart, e então me deparei com o mundo da Idade Média e fiquei encantado. Naquela época, entre os séculos V e XV, o maior divertimento do povo era a música, que também era algo espirítual e sagrado. Algumas pessoas que não manjam nada de História ficam com esse papo de que na Idade Média tudo era atrasado, ridículo, rudimentar. Mas foi nessa época que surgiram os maiores gênios da humanidade".

Após citar uma longa lista de intelectuais e artistas de tempos longínquos, ele prossegue em seu tom entusiasmado:

"Como eu sempre gostei do que havia de mais fino, fiquei impressionado com os instrumentos daquele período, que podem facilmente custar dezenas de milhares de doláres. O problema é que eu não queria só um desses instrumentos, mas vários, então comecei a estudar a reprodução deles, de forma que aos 30 anos de idade alguns músicos já estavam solicitando minhas primeiras encomendas. Em seguida, fiquei viajando para a Europa, onde tudo isso foi criado, e fui aperfeiçoando cada vez mais a minha técnica para instrumentos sofisticados".

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Projeto de flauta, ferramentas e um dente de elefante. Crédito: Guilherme Santana/VICE

No trabalho do luthier da Idade Média, tudo começa com a escolha do material. Em alguns casos, quanto mais antiga a madeira, melhor, o que valoriza suas propriedades de resistência e de vibração. Ela pode vir do mastro de um navio que afundou e foi reencontrado ou de móveis de séculos passados. Roberto diz que já comprou peças com cerca de 300 anos de idade em leilões europeus. Em seu sítio no interior de São Paulo, ele estoca diversos tipos de madeira, ossos recolhidos em abatedouros pela cidade, chapas de prata, bronze e ouro, além de grandes peças de marfim vindas de Guiné-Bissau, no oeste da África.

"Para fazer o meu trabalho da maneira certa, não há espaço para as máquinas"

"Mas o material corresponde a 5% do preço final do instrumento, o que conta mesmo é a capacidade intuitiva de cada construtor, a magia que cada um consegue imprimir no objeto", diz Roberto. "No fim da linha, o que define um bom instrumento é uma série de fatores subjetivos. Ninguém sabe porque um violino Stradivarius de 300 milhões de dólares é bom, pois o que faz um instrumento perfeito é uma série de combinações únicas que jamais poderão coexistir novamente. Violino bom não se faz, violino bom acontece. Normalmente, para cada três instrumentos complexos que eu faço, um é descartado por não atingir um nível satisfatório de excelência."

Violinos, alaúdes e hurdy gurdy. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Como nem sempre há modelos e estudos para a reprodução do tipo de instrumento que Roberto faz, ele também os constrói a partir da observação de pinturas do passado e de descrições encontradas em livros. Usando os mesmos métodos dos artesões medievais, Holz faz esta opção por acreditar que o domínio da tecnologia moderna poderia afetar negativamente a qualidade da sua mão de obra.

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"Os artistas do passado eram bons porque estavam limpos pra usar a imaginação, não estavam contaminados com essa papagaiada da tecnologia eletrônica. Para fazer o meu trabalho da maneira certa, não há espaço para as máquinas. Trabalho apenas com canivetes, formões, pedaços de ferro cortantes, a serra de 150 anos do meu bisavô, tudo o que um construtor medieval usava", sentencia. Em outras palavras, Holz é anti-tecnologia.

Depois de muito esforço manual para terminar o instrumento, que pode ser encomendado em diversos materiais nobres, Holz talha discretamente um número serial para que a peça possa ser identificada, evitando assim casos de falsificação. O processo completo pode levar duas semanas de oficina, e o código de ética do luthier é de não deixar sua marca ao término do trabalho. De acordo com ele, isso seria desleal com os verdadeiros inventores do passado.

"No começo eu até deixava minha marca, meu logotipo. Mas depois percebi que era uma vaidade babaca. Se eu fizer uma flauta medieval, estarei apenas recriando a obra de um cara lá atrás", diz. "Não assino um instrumento nem que o cliente peça. Eles insistem, pois querem mostrar que fui eu que fiz, mas eu não faço isso nem quando dizem que vão pagar um extra."

"Você pode até achar que eu sou um louco, um maníaco, um acumulador, e se você achar, não tem problema"

Mas ele abre algumas excessões, assinando apenas suas criações originais, as quais ele mostra-se um pouco mais tímido ao falar sobre. Da sua imaginação, já se concretizaram flautas para cegos, móveis, um skate movido por manivelas ("ainda em fase de desenvolvimento") e um tipo de clarinete com um complexo sistema de dutos de ar.

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Este é o clarinete que Holz inventou e não vende de jeito nenhum. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Holz tem um grande carinho por cada um de seus instrumentos e invenções. Há muitas peças que ele se recusa a vender, e admite que o hábito de colecionador talvez seja tão ou mais forte do que o de luthier. As prateleiras, armários, gavetas e paredes guardam peças que despertam suas lembranças e histórias de vida.

"Se um instrumento sumir daqui, eu vou notar na hora e irei ficar em depressão. Cada um deles é uma parte de mim e da minha memória. Eu tenho a alma de um colecionador. Quando quero uma flauta porque ela pertenceu a tal músico ou tem tal história, eu não descanso até conseguir ela. Você pode até achar que eu sou um louco, um maníaco, um acumulador, e se você achar, não tem problema. Tenho pesadelos, vendo o carro, compro o instrumento, e no dia seguinte eu quero outro", desabafa Holz.

O artesão faz uma pausa, cruza os braços e olha atentamente ao redor.

"Até certa idade, eu era um ateu, um materialista. Hoje deixo um espaço aberto para a magia inexplicável das coisas. Eu e muitas pessoas envolvidas nesse universo, que não são bobas nem nada, acreditam que o instrumento musical adquire encantamento e poderes próprios com o tempo. Antes eu não aceitava isso de jeito nenhum, achava que era só madeira. Mas agora tenho certeza: os instrumentos têm alma própria." Ele se levanta, escolhe um violino e começa a entoar mais uma bela melodia.