Fechou o tempo para as empresas de banda larga no Brasil
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Fechou o tempo para as empresas de banda larga no Brasil

Depois de decidirem colocar limites de transferência de dados a partir de 2017, operadoras não conseguem sustentar o porquê da decisão e, agora, enfrentam a revolta do público e um contra-ataque jurídico.

Depois de decidirem colocar limites de transferência de dados a partir de 2017, operadoras não conseguem sustentar o porquê da decisão e, agora, enfrentam a revolta do público e um contra-ataque jurídico

Surfistas digitais, atentem: o mar está revolto na internet brasileira. Nas últimas semanas, você deve ter visto, surgiram diversos abaixo-assinados, movimentos contrários e promessas de boicote contra o plano das principais empresas de banda larga do país para instituir franquias de dados a partir de 2017. A rigor, não há impedimentos legais para o modelo. No entanto, organizações de defesa do consumidor orquestram, a partir de hoje, 15, um contra-ataque jurídico. Para esses grupos, a imposição freia o desenvolvimento econômico em diversas áreas e, a longo prazo, seria capaz de provocar uma reação em cadeia que culminaria no retrocesso da diminuição das desigualdades sociais no Brasil.

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Apesar do zumzumzum sobre o tema vir do começo do ano, as discussões se intensificaram após uma entrevista com o executivo da Telêfonica Vivo Christian Gebera publicada no Tecnoblog na segunda semana de abril. Ao comentar a aquisição da GVT pela Vivo, Gebera fala que a decisão de implementar a franquia de dados segue "uma tendência mundial". De acordo com ele, "a ideia é que o consumo [de internet] seja como uma conta de luz, onde o cliente pagará apenas o que precisar". A partir daí, a conversa degringolou.

Mas será que essa comparação faz sentido?

Vamos lá: a eletricidade, como sabemos, é um recurso escasso. A internet com limite de transferência de banda resulta num recurso também escasso, o que, para muitos especialistas, é algo fantasioso. "Numa família de quatro, onde um filho estuda online e outro gosta de jogar ou ver vídeos no youtube, cria-se um cenário onde há atrito porque a internet 'acabou'. Essa escassez não existe, é artificial", diz Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações e advogado do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Tem também outra falsa semelhança. Segundo a lei brasileira, a eletricidade é um serviço essencial para o serviço da cidadania. O Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, define no artigo 7º a internet como um serviço essencial para o serviço da cidadania. A diferença é que eletricidade é regulada em regime público, e a internet, privado. "O código de defesa do consumidor determina que esses serviços devem ser prestados de forma contínua e só podem ser interrompidos quando não há pagamento. Alguns dos planos de banda larga preveem o corte depois do fim da franquia, ou a diminuição da velocidade para uma taxa que, na prática, não permite usufruir da rede", afirma Flávia Lefèvre, advogada e conselheira do Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor). Tanto Proteste quanto Idec protocolaram ações civis públicas nesta semana.

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Talvez por que o argumento de internet como eletricidade não se sustente, as empresas de banda larga estabeleceram um regime de silêncio sobre o limite de franquia de dados. Após a declaração de Gebera, houve somente comunicados oficias, zero explicações. A Vivo, mais objetiva, afirma com todas as letras que os contratos posteriores ao dia quatro de abril estão sujeitos ao limite de banda "porém com condições promocionais" até o final do ano. A Oi já preve as franquias em seus contratos, mas "atualmente" não os prática - sem declarações para o futuro. A Net também já tem as franquias, mas ressalta que a diminuição na velocidade não é significativa. Óbvio, há opções de outras operadoras de internet que vendem tráfego livre, mas as três gigantes juntas dominam entre 85% e 90% do mercado, segundo estimativas.

Enquanto sobem os lucros, as empresas não fazem investimentos em contrapartida. Isso é ainda mais drástico quando se pensa que maior parte do backbone – o grosso da infraestrurura da internet brasileira – é pública

Como as operadores não oferecem explicações, resta especular com base nos números. Amantes de intrigas, os comentaristas da internet já relacionaram o declínio das TVs a cabo com a mudança – afinal, as mesmas empresas oferecem canais por assinatura e o limite de tráfego afeta drasticamente serviços de streaming como o Netflix, grandes competidores. Além disso, a escalada do dólar reduziu o valor das remessas de lucros enviados às matrizes no exterior. De concreto, mesmo, há a eterna carta da infraestrutura defasada para atender ao atual volume do usuários.

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Um dos anexos do processo do Proteste é um gráfico elaborado a partir de dados da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) que cruza o número de assinantes de banda larga com as metas de qualidade estabelecidas pela Agência em 2011. São curvas opostas: de 2012 a 2015, os acessos subiram de pouco menos de 15 milhões para pouco mais de 25 milhões, enquanto a taxa de cumprimento das metas caiu de pouco mais de 70% para pouco menos de 60%. "Quer dizer, enquanto sobem os lucros, as empresas não fazem investimentos em contrapartida. Isso é ainda mais drástico quando se pensa que maior parte do backbone – o grosso da infraestrurura da internet brasileira – é pública", diz Lefévre.

"Qual o benefício para os usuários dessa franquia de dados? Nenhum. Há algum compromisso das empresas de investirem mais em infraestrutura com o aumento de receito a partir da franquia de dados? Nenhum, elas não tem obrigações", diz Marcelo Zuffo, professor de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da USP. O professor ressalta, no entanto, que o governo não ajuda, com bilhões mal (ou não) utilizados decorrentes do Funttel (Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações) e do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), impostos específicos para o setor. "Enquanto isso, as agências reguladoras são reféns das operadoras", afirma.

O silêncio da Anatel tem, de fato, causado revolta em muita gente. Mas isso ocorre pela internet ser regulada dentro de um regime privado, segundo a Lei Geral das Telecomunicações de 1997. A agência pouco pode fazer para interferir nas vontades das empresas de banda larga. Entre as novas regras estabelecidas em março que dizem respeito ao modelo de franquia de dados, há a liberdade para as operadores de serviço definirem por conta própria com quanta antecedência avisarão ao usuário que o limite de tráfego está próximo.

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Rafael Zanatta explica que para entender o porquê dessa realidade é necessário levar em conta o contexto em que a Lei Geral das Telecomunicações foi aprovada. "Em 1997 nós acabávamos de passar por um processo de privatização do sistema de telecomunicação. O grande objetivo era garantir que a telefonia fixa fosse acessível para todos, o que foi alcançado", conta. Na época, a internet era incipiente, fora lançada comercialmente no Brasil dois anos antes e, portanto, não havia sentido em tratá-la da mesma maneira que a telefonia fixa.

"Hoje, o cenário mudou", afirma Zanatta. "Nossa primeira batalha é impedir o estabelecimento geral do modelo de franquia de dados. Em seguido, precisamos tentar mudar como se regula a banda larga no Brasil, inclusive para definir melhor quem deve investir e como, o que inclui prestadores de serviço como Netflix e Google, que hoje só aproveitam e lucram com a rede, sem nenhuma contrapartida."

Um passo para frente, dois para trás

A internet brasileira é cara e lenta. Segundo a ONU, o acesso à banda larga deveria custar 2% da renda média domiciliar de um país, o que nosso caso seria mensalidades de R$ 29 - o que não existe. Quanto a velocidade, a média brasileira é comparável a da China, Panamá e Vietnã. Na América do Sul, nossos vizinhos da Argentina, Uruguai, Chile e Colómbia navegam mais rápido, de acordo com dados da Akamai.

Se esse cenário já não é o ideal, o futuro pode ser pior. "Há diversas pesquisas que indicam uma correlação linear absoluta de qualidade de internet com o desenvolvimento social", diz o professor Zuffo. "Sem dúvida, o franqueamento dos dados afeta todos os domínios de atividades econômicas do país."

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Você pode começar a análise do tema por onde quiser. Em São Paulo, por exemplo, para fazer um Boletim de Ocorrência você deve utilizar a delegacia virtual. Se inscrever no vestibular? Internet. Diversos programas sociais? Também. Certidões públicas sem fim? Idem. Ensino à distância, seja ele público ou privado? Sem uma rede confiável, vira história. A lista não para.

"Há uma tentativa de argumentação por parte das empresas que esse modelo fará com que os heavy-users, quem joga online ou é viciado em Netflix, por exemplo, vão pagar mais já que usam a maior parte da banda. Essa distinção não faz sentido", afirma Carlos Affonso Souza, presidente do ITS (Instituto de de Tecnologia & Sociedade do Rio), think tank do setor, e professor de Direito da UERJ. Para Carlos, mesmo os usuários ditos comuns da rede gastam muito tempo assistindo a vídeos, mesmo que embedados em plataformas de redes sociais.

"Precisamos mudar como se regula a banda larga no Brasil, inclusive para definir melhor quem deve investir e como, o que inclui prestadores de serviço como Netflix e Google, que hoje só aproveitam e lucram com a rede, sem nenhuma contrapartida."

Além disso, o limite de dados tem efeito significativo sobre a segurança e estabilidade da rede e sistemas conectados a ela. Uma experiência recente na África do Sul motrou que, ao estabelecer o modelo de franquias, os computadores do país ficaram em geral mais vulneráveis a ataques de vírus ou trojans, já que as atualizações automáticas foram desabilitadas.

"Se você pensar que hoje a maior parte dos nossos backups também está na nuvem, imagine a quantidade de dados que serão perdidos em acidentes, já que ficará muito caro manter isso", ressalta Souza. Ainda no capítulo nuvem, os últimos anos viram a explosão de soluções tecnológicas SAS (ou software as a service) que não precisam ser instaladas fisicamente para funcionar. De pequenos negócios domiciliares, passando por toda a cultura das startups, até grandes empresas, de repente a manutenção dos atuais programas de gestão e controle fiscal, entre outros, não será mais viável.

Para mais um exemplo, aquele simpático café do lado da sua casa onde você faz pose com o laptop no sábado de manhã não vai mais te oferecer wi-fi com senha irônica - ou, quem sabe, vai aumentar os preços para incorporar os novos custos. "Para resumir, o impacto social dessa estratificação de usuários da internet no Brasil deve ser devastador", diz o presidente da ITS.

As ações do Proteste e do Idec são diferentes. O Proteste exige que as empresas mantenham a conexão à intenet após o fim da franquia de dados, com uma velocidade mínima de 1 Mb/s. O Idec, por sua vez, alega crime contra a ordem econômica, já que "as empresas, independente de culpa, se juntaram para dominar o mercado e arbitrariamente subirem seus lucros", explica Zanatta.

O que todos parecem concordar é que, caso os modelos de franquia se tornem realidade, teremos um protudo pior por preços mais altos. E acho que ninguém deseja isso, né?