Retratos da inclusão digital no Brasil
Garoto com seu smartphone no bairro do Cascadura, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Crédito: Tércio Teixeira/ R.U.A.

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Tecnologia

Retratos da inclusão digital no Brasil

"Se minha vida mudou por causa da tecnologia? Mudou, mudou."

Em 2015, a ONU anunciou 17 metas globais para os próximos 15 anos. A do Brasil foi Redução das Desigualdades. Clique aqui pra sacar as matérias de VICE sobre o assunto.


Faz uns meses que Vivian de Lima, de 32 anos, criou uma página no Facebook para seu salão de festas na favela de Heliópolis em São Paulo. Ela começou pelo maior atrativo: imagens de bolos, fantasias e decorações. O público aprovou na hora. Vieram os likes, os comentários, as boas notas, as recomendações. Para ela, porém, não era o bastante. Vivian queria compartilhamentos.

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Na busca por novos clientes, a dona do salão investiu em anúncios pagos na rede social. Botou dez reais. Poucos dias depois, veio o resultado: dois casais da região a contrataram para casamentos. O lucro do negócio superou R$ 6 mil. E não parou ali. O ritmo das postagens — e curtidas, comentadas, compartilhadas — cresce a cada dia. A demanda é tamanha que Vivian não pode se alongar em entrevistas. "Está muito corrido, desculpa", ela me disse várias vezes nas últimas semanas. "Mas, olha, melhorou muito depois da página."

Morador da Favela do Moinho, no centro de São Paulo, assiste ao jogo da seleção. Crédito: Felipe Paiva/ R.U.A.

Histórias como a de Vivian são comuns pelas periferias do Brasil. São donos de pizzarias, de salões de beleza, de lojas de salgadinhos e de outros pequenos negócios que usam a internet para aumentar suas vendas. No levantamento mais recente sobre conectividade nas favelas, de setembro, o Data Favela divulgou que 57% dos usuários que acessam à rede nas regiões periféricas tiveram aumento de renda graças à internet. É bastante significativo se considerarmos que os 12,3 milhões de moradores de favelas no Brasil movimentaram, segundo a mesma fonte, US$ 19,5 bilhões em 2015 até o mês passado.

Interior de barraco na Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Crédito: Tércio Teixeira/ R.U.A.

O fato é: a inclusão digital não é total, mas chegou.

Com maior poder de consumo das classes mais pobres, a tecnologia serve como aliada para moradores de periferias se tornarem, nas palavras dos próprios, protagonistas. Hoje a maioria deles possui smartphone – 9 em cada 10 residentes de Heliópolis usam a internet pelo celular, conforme pesquisa do Facebook feita com 1950 pessoas neste ano. O dispositivo serve para tudo: ver notícias, comunicar, empreender, entreter, pesquisar. "Tem muitos casos de pessoas que conseguiram emprego com vagas que viram na internet ou graças a um estudo online", me falou Francisco José de Lima, o Preto Zezé, presidente da Cufa, a Central Única das Favelas, para citar como é grande a abrangência dos celulares nessas regiões.

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Acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto na Câmara Municipal de São Paulo. Crédito: Rodrigo Zaim/ R.U.A.

O caminho para diminuir a desigualdade digital, porém, é longo. Segundo Zezé, embora possua maior poder de compra, o morador de favela enfrenta dificuldades para se conectar. A conexão nas regiões periféricas se dá por meio redes de dados que, além de ruins, são caras. Wi-Fi quase não existe. "A grande maioria usa 3G", me falou Renato Meirelles, sócio-diretor do Data Popular e fundador do Data Favela. "Mesmo assim, 14% de quem acessa à internet compartilha o sinal do Wi-Fi. Na classe A, você não imagina alguém rachar o ponto de Wi-Fi. Tudo na favela é maior proporcionalmente."

Acampamento Frente de Luta para Moradia no Viaduto do Chá, em São Paulo. Crédito: Rodrigo Zaim/ R.U.A.

A questão agora, dizem Meirelles e Zezé, é como transformar o poder de consumo de eletrônicos em boas políticas públicas e bons serviços. "Existe um preconceito de uma elite intelectual mais ligada à esquerda que o consumo é ruim", afirma Meirelles. "O problema de fato algum é a democratização do consumo. Na sociedade capitalista, para não ficar escravo do tanque de lavar roupa, é necessário consumir máquina de lavar. É justo que uma dona de casa da favela tenha uma. Mas claro que isso não basta. Falta uma consciência maior sobre cidadania. Uma noção mais clara de direitos e deveres, que é uma construção coletiva."

Crianças gravam festival de música na Zona Leste de São Paulo. Crédito: Felipe Paiva/ R.U.A.

Zezé concorda. "Consumo é importante, mas não basta. A busca por igualdade de oportunidades passa, antes de tudo, por uma presença maior do estado que garanta educação, creches e postos de saúde", diz. "Para que não fique num discurso vazio, é preciso sempre pautar esse acesso dentro de um processo de escolha e prioridades de politicas públicas. Assim, as pessoas saem daquela ideia de direito como favor e passam adotar uma postura de politicas de direitos."

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Queira ou não, o cenário da tecnologia no país é de transformação. A tal da inclusão digital, expressão usada ainda hoje junto da palavra "maldita" para tratar do que julgam ser maus comportamentos na rede, deve se prolongar por muitos anos. O momento atual é crucial para governantes, ONGs e órgãos públicos repensarem o que será feito a partir dessa maior democratização do consumo tecnológico. Se o compromisso com a mudança for séria, melhores conexões e serviços educacionais devem, a exemplo dos smartphones, se proliferar por todos os cantos das favelas. Caso haja enfraquecimento ou estagnação do processo, veremos um sucateamento tecnológico que, a longo prazo, pode ser excludente e danoso à população.

Entramos numa nova fase da inclusão – a busca pelo total, pelo estável: um período de transição determinante para o futuro de quem hoje vive nas periferias. Acima e abaixo, capturamos alguns retratos dos desdobramentos dessa etapa.

Crédito: Felipe Paiva/ R.U.A.

Alessandra, 31 anos, São Paulo, SP. A tecnologia ajuda, mas também atrapalha. Tudo é muito superficial. As pessoas estão perdendo o hábito de ler. Só querem assistir vídeos ou ler as manchetes. Sei disso porque escrevo pra página do Moinho aqui. As pessoas são enganadas muito facilmente. E ainda compartilham as coisas erradas. Ninguém mais pensa na água que bebemos ou no ar que respiramos. A gente só quer saber do último smartphone. As empresas deveriam começar a se responsabilizar mais pelos lixos dos eletrônicos. Um telefone desse, da LG, deve demorar mais de 500 anos para se desfazer na natureza. Deveria existir um incentivo pra reciclar eletrônicos novos. Tipo assim: você leva sua TV velha e ganha 50% de desconto na compra de uma nova e a empresa deve cuidar do lixo produzido.

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Crédito: Isabella Lanave/ R.U.A.

Vitor Hugo Bento, 28 anos, Curitiba, PR. Pra quem não tinha muita chance, o celular virou uma boa interação. Mas, agora, tudo o que você faz, todo mundo pode ficar sabendo e ver. É como uma fofoca. Tenho um de última geração só pra ligar pra minha mãe. Até tenho Facebook, WhatsApp, mas não gosto de ficar no celular. Você me viu algum momento no celular hoje?

Crédito: Felipe Paiva/ R.U.A.

Fernanda Miranda, 35, São Paulo, SP. No incêndio desse ano perdi tudo que eu tinha, menos essa televisão aí. Ela já tem uns 4 anos. Meu sonho é ter um notebook. Dá pra baixar música, vídeos. Se minha vida mudou por causa da tecnologia? Ah, mudou, mudou. Agora posso falar com minha mãe lá na Bahia. O telefone é demais. Agora tem esses smartphones que dão pra tirar foto e tem até um aplicativo que você vê as pessoas na tela. Os meus filhos todos usam. O ruim é que eles estão viciados em Whatsapp e Facebook. Só uso internet no celular. Não tenho em casa. Aí dá pra assistir TV e ler jornal no celular também.

Crédito: Isabella Lanave/ R.U.A.

Wagner Caveira, 28 anos, Curitiba, PR. Agora tenho acesso a parceiros que antes não tinha contato. Para pesquisar, tudo o que você joga no Google, você encontra. É a democracia da internet, apesar de ter gente que usa para outra coisa. O celular uso direto. É o meu contato com tudo: 'zapzap', face. Agora quero ter um computador para dar continuidade ao meu trampo. É uma necessidade. É o acesso à informação.

Crédito: Tércio Teixeira/ R.U.A.

João Batista Borges, 71 anos, Adriana Pontes Nogueira, 40 anos, e Gabriel Veloso, 8 anos, Rio de Janeiro, RJ. Mesmo não tendo dinheiro para equipamentos modernos, falamos com muita gente pelo celular. Temos duas TV antigas e dois celulares. Não usamos internet, não. Eu, João, não tenho telefone. O celular da Adriana tem internet, mas ela ainda não usou. Comprou faz dois meses. O brinquedo que o Gabriel mais gosta é o tablet. Mais que o videogame até. Problema é que está quebrado e é caro arrumar.

Crédito: Isabella Lanave/ R.U.A.

Josiane Ferreira, 34 anos, Curitiba, PR. O que mudou com a internet? Ah, não fez muita diferença pra mim, não. Eu assisto às novelas na TV, vejo jornal e uso o celular pra comunicação, e-mail e passatempo. Se tem algum eletrônico que sinto falta, que eu queria ter? Acho que nada, né, amor?

Crédito: Isabella Lanave/ R.U.A.

Maria Aparecida, 43 anos, Curitiba, PR. Mudou bastante coisa pra mim. Principalmente a comunicação com as pessoas que estão longe, né. Vejo jornal na TV todo dia e uma novela no começo da tarde. Uso meu rádio também, para escutar CD. E o celular uso pouco, mais pra ligação mesmo. Tudo o que eu queria, eu tenho.