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Tecnologia

Os Carros-Fantasma do Uber

O que há por trás dos dados manipulados pelo mais polêmico aplicativo de transporte.

Quando Heather*, motorista do Uber com oito meses de casa, abriu o aplicativo de passageiros semanas atrás em sua casa, percebeu algo esquisito. O mapa mostrava quatro colegas nas ruas vizinhas, mas o tempo de espera estimado para a chegada de um carro era de 17 minutos. Pela janela, não viu nenhum veículo.

A discrepância percebida não seria tão óbvia em um local movimentado. Em regiões mais isoladas como a de sua residência, porém, foi possível comprovar a inexistência dos tradicionais carros sedãs pretos da companhia.

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Heather não foi o único a perceber o fenômeno. Um dos motoristas, que faz transmissões frequentes com conselhos sobre o uso do sistema, chegou até a publicar um vídeo no YouTube para mostrar como o aplicativo por vezes mostra veículos que não estão lá. (Para aqueles que desconhecem os detalhes do Uber, um esclarecimento: existem duas versões do app — uma para motoristas, outra para passageiros. É muito comum que os motoristas usem as duas versões durante o dia para evitar trechos lotados de outros motoristas da companhia.)

Ao longo de seis meses, meu colega Luke Stark e eu temos estudado como os motoristas do Uber interagem com o aplicativo. Nossa pesquisa, que integra um projeto do Microsoft FUSE Labs, foi conduzida em fóruns de motoristas do Uber e por meio de entrevistas com os próprios. Em ambos os métodos, ouvimos muitos e diferentes comentários sobre os tais carros-fantasma.

Alguns disseram que poderia ser um lag de 30 a 60 segundos no sistema; já outros relataram ver com regularidade um grupo de carros-fantasma onde quer que a marcação do passageiro estivesse.

"Sei que isso pode parecer enganoso para você, mas é mais um efeito visual do que uma localização precisa dos motoristas na região."

Há também a especulação de que isso é proposital por parte do Uber, e não uma falha. Se um passageiro em potencial abre o aplicativo e não vê nenhum carro por perto, é provável que tente outro serviço. Caso observe um monte de carros ao seu redor, a chance de prosseguir na corrida aumenta.

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Quando um funcionário questionou a aparente divergência, um porta-voz do Uber disse que no aplicativo de carona o "número de carros e sua localização geralmente são precisos". Já quando Heather perguntou o mesmo, um integrante do suporte do Uber lhe disse que o mapa não passava de um "protetor de tela".

"O aplicativo está apenas mostrando que há gente na estrada na hora", escreveu a pessoa em um email. "Esta não é uma representação dos números exatos de motoristas ou sua localização. É mais um efeito visual que permite às pessoas saberem que temos motoristas em busca de corridas."

"Sei que isso pode parecer enganoso para você, mas é mais um efeito visual do que uma localização precisa dos motoristas na região. Seria melhor encarar como um protetor de tela no computador. Assim que alguém pedir por uma corrida, informações reais sobre a localização do motorista aparecerão no aplicativo."

O fato é que o Uber não faz nenhuma distinção no app entre os sedãs pretos disponíveis para os passageiros e aqueles que podem ser parte de um "efeito visual".

Escrevi para o suporte do Uber como passageiro no mesmo mês que Heather. Perguntei a mesma coisa, só que em outra região. A resposta que recebi foi diferente: me foi explicado que qualquer discrepância era questão de afastar ou aproximar o zoom.

"O mapa é o mais preciso possível na sua região", disseram.

O DESAFIO DOS DADOS EM TEMPO REAL

O Uber tem dados extensos sobre movimentações históricas e em tempo real de passageiros e motoristas, mas pode ser um grande desafio levar informações relevantes aos passageiros e motoristas pelo aplicativo.

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"Do ponto de vista da engenharia, tentar colocar um monte de informações relativamente complexas de forma intuitiva na tela de um iPhone é, com certeza, um de nossos maiores problemas", afirmou o cientista de dados do Uber, Kevin Novak, em uma apresentação [a parte relevante começa aos 38:30] de 2014.

Em tese, se o Uber mostrasse as posições de seus motoristas em tempo real, essa informação poderia ser usada por seus competidores, que poderiam enviar seus motoristas para preencher qualquer vácuo. Mas outro membro do suporte do Uber que conversou com Heather comentou ainda que "os engenheiros do Uber estão dando duro para melhorar o software para fornecer uma visão em tempo real da disponibilidade de motoristas na região".

Ainda assim, ao manter os usuários no escuro quanto à precisão ou limitações da informação, o Uber pode ter mais controle sobre como passageiros e motoristas interagem com o sistema.

SUPERANDO O ALGORITMO

Outras anomalias nas representações visuais do Uber surgiram a partir da experiência dos motoristas, em especial na parte da precificação.

O Uber liga motoristas a passageiros por meio de combinações diretas com a localização específica. O sistema usa mensagens de texto, notificações, emails, mapas de calor e precificação dinâmica para fazer com que motoristas rodem por áreas de alta demanda em determinados horários.

A companhia afirma que seu algoritmo de precificação ajusta o preço de uma viagem para refletir oferta e demanda: os preços sobem quando mais passageiros pedem mais corridas, como em horários de pico ou quando começa a chover. "A precificação dinâmica é ativada por fluxos de dados dos passageiros ou motoristas cujos aplicativos forneçam informações quanto à oferta e demanda", afirmou porta-voz da empresa via email. O Uber mostra aos motoristas mapas de calor para visualizar oferta e demanda.

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Ao passo em que os preços são uma representação do mercado, nossa pesquisa sugere que os algoritmos do Uber também trabalham com previsões: eles antevêm oferta e demanda de modo que motoristas possam estar pré-posicionados para atender os passageiros, mas nem sempre refletindo uma imagem precisa em tempo real.

A natureza premonitória do algoritmo também é explicada no pedido de patente do Uber para seu sistema de posicionamento de oferta dinâmico. O pedido descreve como "uma ou mais sub-regiões podem ser definidas como subatendidas por provedores do serviço em comparação à uma ou mais sub-regiões ao prever uma futura ocorrência no tempo (ou seja, um tempo além do tempo atual) em que determinada região terá queda na oferta em um momento posterior… Desta forma, um provedor poderá, por exemplo, reconhecer quais regiões serão subatendidas (a dez minutos no futuro, por exemplo), e então rumar para o local para realizar um maior número de corridas."

O mesmo pedido de patente afirma que, em algumas de suas implementações, o sistema do Uber usa fatores como dados históricos, clima e informações de calendário (como eventos) para determinar quando uma região será subatendida.

Motoristas de diferentes mercados muitas vezes veem que tais notificações não são indicadores confiáveis de demanda. Como resultado, reagem a tais altas de outra forma. Alguns seguem as instruções enviadas por mensagem e reagem positivamente à alta. Outros a abordam de acordo com como creem outros motoristas respondem aos incentivos do Uber: eles podem evitar as regiões recomendadas pelo aplicativo ou dirigir em horários que o aplicativo não destaca de maneira explícita.

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Outros ainda perceberam que o indicativo de alta some se vários motoristas forem até a região, então eles consideram esperar próximo à região para ajudar a conter o crescimento.

Muitos motoristas também usam o aplicativo do passageiro para ver contra o que estão concorrendo. Quando uma alta chega a 1.5x a taxa normal, alguns dos motoristas verificam o aplicativo do passageiro para avaliar se deveriam pegar corridas naquele preço ou se deveriam esperar que aumentasse. Se há muitos outros motoristas por perto, a estratégia é aceitar as corridas; se há poucos carros por perto, podem esperar que o preço aumente ainda mais.

A capacidade do Uber em reduzir tempos de espera para passageiros e aumentar as corridas dos motoristas por meio de uma análise algorítmica de onde todos estão pode ser um enorme benefício para os usuários do aplicativo, e uma bênção para cidades que querem reduzir o trânsito e poluição.

Mas o Uber não diz aos motoristas quanto tempo deve durar uma alta ou quantos motoristas foram alertados informação que poderia ajudar os motoristas a melhor planejarem seus turnos e rotas, seja para perto ou longe de uma zona de alta.

Em fóruns e entrevistas, vários motoristas veteranos aconselham contra "seguir a alta" porque afirmam não ser uma fonte confiável de corridas. Um estudo sobre comportamento de motoristas revelou que "mais da metade dos motoristas entrevistados, porém, não eram influenciados por preços em alta". Alguns apenas vão rumo à zonas em alta se estiverem próximos; caso tenham que dirigir por 20 minutos até chegar a uma, ela pode desaparecer antes de sua chegada. Outros se veem em uma zona de alta esperando de 15 a 20 minutos sem pegar uma corrida.

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Não se diz aos motoristas quantos passageiros estão na região ou quantos motoristas foram alertados. Enquanto engenheiros do Uber têm uma "visão total" da atividade entre passageiros e motoristas, estes últimos não tem acesso aos dados.

A CARTADA DO PASSAGEIRO

Os passageiros também sabem manipular o sistema. Alguns motoristas contam casos de passageiros que colocam sua localização fora de uma zona de alta e então ligam para os motoristas para dizer onde estão de verdade. Dentre os motoristas, há quem expresse frustração ao receber pedidos de corrida de fora das áreas da qual esperavam porque aí trabalham ganhando menos. Eles arriscam aumentar seu índice de cancelamento, monitorado pelo Uber, caso neguem corridas. No mercado de San Francisco, por exemplo, espera-se que os motoristas mantenham esse índice abaixo de 5% ou correm o risco de serem demitidos do sistema.

Print do site parceiro do Uber em San Francisco

Motoristas e passageiros não compreendem como informações que passam por curadoria de algoritmos são filtradas e manipuladas para um consumo mais fácil e por vezes enganoso. Eles aprendem a avaliar incentivos algorítmicos diante de sua própria experiência e de outros motoristas.

O acesso do Uber a informações em tempo real sobre onde estão localizados passageiros e motoristas o ajudou a se tornar um dos aplicativos mais eficientes e úteis a serem produzidos no Vale do Silício nos últimos anos.

Mas, se você abrir o aplicativo achando que terá acesso ao mesmo tipo de insight, pense novamente: motoristas e passageiros só veem uma parte de todo o panorama.

Alex Rosenblat é pesquisador e redator técnico do Data & Society, instituto de pesquisa nova-iorquino focado em questões éticas, sociais e culturais derivadas do desenvolvimento tecnológico centrado em dados.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos motoristas.

Tradução: Thiago "Índio" Silva