O problema da atual realidade virtual é que você se sente um bonecão de posto
Um exemplo da famigerada experiência de bonecão de posto. Crédito:Official GDC

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Tecnologia

O problema da atual realidade virtual é que você se sente um bonecão de posto

Desenvolvedores de RV ainda não criaram soluções decentes para nos locomovermos em mundos abertos virtuais. Como resolver?

Desenvolvedores de RV ainda não criaram soluções decentes para nos locomovermos em mundos abertos virtuais. Como resolver?

Quando acabou o Congresso de Desenvolvedores de Jogos de São Francisco, nos EUA, eu havia passado mais tempo na realidade virtual do que no mundo físico. Fui um quarterback em um estádio lotado de fãs, tornei-me um espião que se esgueirava para fugir de guardas robóticos e, por fim, virei um rockstar que tocava solos fantásticos pruma platéia emocionada.

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Em retrospecto, o que mais me impressionou nessa semana de imersão — mais do que a sensação fantasmagórica do capacete e do cabo colados à base do meu crânio e do que minhas falsas glórias — foi o quão estáticas eram essas experiências.

Houve algumas exceções, entre elas Eve: Valkyrie, um jogo de combate aéreo; no entanto, a maioria dos jogos oferecia pouca ou nenhuma mobilidade.

Isso não é coincidência. O maior problema dos desenvolvedores de jogos em realidade virtual é, definitivamente, a mobilidade; em outras palavras: andar à toa por espaços virtuais, um dos maiores apelos do videogame, causa enjoo na realidade virtual.

Se a RV for tão revolucionária quanto seus defensores acreditam, a solução desse problema mudará a indústria dos games para sempre. Mas será que é isso que queremos?

POUCO A POUCO

A Sony, que testa e aprova cada jogo lançado para Playstation 4, criou seu próprio "jogo-teste", um software que mostra o que não deve ser feito em um jogo de realidade virtual.

"Chamamos esse software de 'demo ruim'", disse o engenheiro sênior da Sony, Chris Norden.

O software permite que os desenvolvedores aumentem a latência do jogo, retirem frames, mudem o campo de visão, alterem a distância interpupilar (IPD, na sigla original), mostrem sombras de objetos apenas para um olho e alterem 20 outras funções. Quando desajustadas, essas variáveis causam enjoos nos jogadores.

O demo é tão enjoativo que possui um botão cuja função é parar o jogo imediatamente. "É por isso que não disponibilizamos o código-fonte do demo", diz Norden. "Ele é cheio de coisas que nunca deveriam ser feitas, e nós não queremos que ninguém mais aprenda a fazê-las."

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Não é só a Sony; a Valve e a Oculus também têm sistemas de controle de qualidade extremamente rígidos. A Oculus criou um novo sistema de classificação de "conforto" que divide seus novos lançamentos entre três categorias: "confortável", "moderado" e "intenso".

Do ponto de vista evolutivo, vamos lá, nossa sensibilidade a movimentos bruscos tem origem no sistema vestibular, que controla nosso equilíbrio e age também como u mecanismo de defesa. O álcool interfere nesse sistema, o que explica porque, após uma bebedeira, sentimos que nosso corpo está se movendo mesmo quando parados. A discrepância entre o que o corpo vê e o que sentimos explica porque vomitamos quando bêbados. Convenientemente, o ato de vomitar também diminui o álcool presente em nosso sangue.

O ato de andar virtualmente enquanto seu corpo está em repouso causa o mesmo tipo de enjoo. Esse é o que os desenvolvedores chamam de "problema da mobilidade". A capacidade de explorar espaços virtuais tem sido o principal elemento dos jogos mais populares das últimas décadas. De Grand Theft Auto a Assassin's Creed, uma grande parte do apelo desses jogos é o fato de que nós, jogadores, podemos explorar cidades, florestas ou outras galáxias.

Isso não é um problema em Fantastic Contraption, produzido pela Northway Games. Para andar pelo mundo do jogo, é preciso se mover pelo mundo real. Ao entrar no virtual, me vi em uma plataforma verde sob um céu azul. O jogo se passa num espaço colorido, abstrato e sem arestas — uma realidade inofensiva e infantil que destoa dos jogos sombrios que atualmente dominam o mercado.

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O game me mandou construir uma máquina capaz de transportar uma bola rosa até um bloco da mesma cor. Para cumprir a missão, era preciso pegar varetas e rodas oferecidas por meu assistente, um gato verde. Quando eu precisava de uma vareta maior, puxava suas duas extremidades para alongá-las. Quando eu tinha que realinhar as rodas, ajoelhava e as movia com minhas mãos. Esse é um jogo no qual o jogador usa todo o corpo, andando pelo ambiente, pegando objetos virtuais e juntando-os para construir algo novo. Um número surpreendente de jogos apresentados na GDC utilizava a mesma abordagem. Em vez e resolver o problema da mobilidade, esses jogos decidiram evitá-la, para tanto limitando a ação do jogo a um espaço predeterminado. Em I Expect You to Die, da Schell Games, o jogador é um agente secreto que deve resolver pequenos puzzles em ambientes fechados como escritórios e carros.

"É preciso evitar o movimento de câmera virtual", disse Jesse Schell, presidente da Schell Games e professor no Centro de Tecnologia de Entretenimento de Carnegie Mellon. "Sei que essa é uma escolha polêmica, mas estamos percebendo cada vez mais que o trunfo dos jogos tradicionais é a capacidade de explorar um espaço, enquanto o principal objetivo dos games em realidade virtual é a manipulação de objetos."

O jogo Job Simulator, que está se revelando um sucesso do mundo da realidade virtual, é uma obra-prima da manipulação de objetos. O game te transforma em um funcionário atrapalhado encarregado de uma série de trabalhos mecânicos. Durante minha experiência, controlei um burocrata preso em um cubículo e uma atendente de loja. Quando estamos na realidade virtual, nosso primeiro impulso é pegar o que não estiver preso à parede e jogar para o outro lado da sala, e o Job Simulator oferece a oportunidade única de jogar xícaras de café em seus colegas de trabalho e de apertar cada botãozinho no recinto.

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Outra solução popular para o problema da mobilidade é a cabine de comando. Correr no mundo virtual enquanto seu corpo fica parado causa enjôo, mas estamos acostumados com a sensação de ver o mundo passar do lado de fora de um veículo. Isso facilita a conversão de jogos como Elite: Dangerous para a realidade virtual, embora o resultado não seja muito diferente do original. O jogo é o mesmo — mas agora você pode mexer a cabeça e ver o resto da cabine.

É comum que nós, jogadores e críticos, nos preocupemos com detalhes, confundindo mudanças irrelevantes entre um jogo e outro ("esse Call of Duty tem jetpacks!") com novidades, mas a verdade é que a maioria dos jogos reutiliza as mesmas ideias há décadas. A transição para o 3D e a criação de jogos online no final dos anos 90 foi a última vez em que a indústria dos games explorou novas fronteiras.

Ao jogar Fantastic Contraption, no entanto, senti que estava presenciando o início de uma revolução igualmente significativa. Essa é a parte mais interessante da realidade virtual: os desenvolvedores têm a chance de criar experiências inovadoras e únicas.

"Explorar um jogo é essencial, especialmente em jogos 3D, nossa especialidade. Muitos dizem que isso é impossível, ou que muitos outros já desistiram, mas esse é só o início da realidade virtual"

Mas quantos jogos com mobilidade limitada nós jogaremos antes de sentirmos falta de explorar continentes inteiros? Será que veremos um jogo de tiro em primeira pessoa com um mundo tão aberto quanto o de jogos tradicionais?

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Houve um tempo em que acreditávamos que FPSs (first person shooters ou jogos de tiro em primeira pessoa, se preferir) não podiam ser jogados em consoles — mas aí Halo apareceu.

"Um de nossos objetivos era resolver o problema da mobilidade", disse Jaime Griesemer. Griesemer é um ex-designer da Bungie que ajudou a desenvolver os controles do primeiro Halo, e que hoje é o diretor criativo da Highwire Games, empresa que está criando seu primeiro jogo em realidade virtual, Golem. "Explorar um jogo é essencial, especialmente em jogos 3D, nossa especialidade. Muitos dizem que isso é impossível, ou que muitos outros já desistiram, mas esse é só o início da realidade virtual."

A solução de Griesemer para a questão da mobilidade envolve o sensor de movimento do headset utilizado na realidade virtual. Quando eu queria andar para frente, inclinava meu corpo para frente. Caso eu quisesse andar para trás, era só inclinar meu tronco para trás.

Golem. Crédito: Highwire Games.

É de se imaginar que, se alguém pode resolver esse problema, esse alguém é o designer que praticamente inventou o esquema de movimentação utilizado em grande parte dos jogos atuais. No entanto, após jogar Golem, concluí que o jogo tem potencial, mas não é um grande exemplo de jogabilidade.

Em Golem, o jogador controla uma criança paraplégica com a habilidade de controlar objetos inanimados. Comecei o jogo como uma bonequinha correndo pela sala como um ratinho até encontrar um buraco nas vigas debaixo da cama, e terminei o demo como um gigante de pedra com uma espada a mover meu controle para lutar contra outros gigantes. Para jogar, tive que sentar direito, manter meu braço levantado e forçar os músculos da barriga para me inclinar na direção desejada, o que não foi nada fácil, considerando que minha barriga tem o tônus de um saco de marshmallows.

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Se Doom faz você se sentir incrível por destruir legiões de demônios com a ponta de seus dedos e Fantastic Contraption permite que você solucione problemas usando todo seu corpo, Golem encontra um meio-termo que não me surpreendeu. O esforço é grande demais para a recompensa. Dentre os jogos que testei, Budget Cuts tinha a melhor solução para o problema da mobilidade. Nesse jogo de stealth em primeira pessoa, o jogador deve fugir de robôs e matá-los à distância. Para contornar um obstáculo, deve-se lançar uma bola de luz no destino desejado e aperta outro botão para se teletransportar. É muito parecido com o que acontece em Portal. Dessa forma, é possível andar livremente por esses pequenos espaços e usar o teletransporte para explorar todo o universo do jogo.

Trailer de Budget Cuts. Crédito: Divulgação

Budget Cuts foi feito em seis meses pela Neat Corporation, uma equipe formada por dois desenvolvedores suecos. "Recebemos o kit de desenvolvimento da Vive e passamos duas semanas desenvolvendo nosso protótipo", disse Joachim Holmér, co-fundador da Neat Corporation. "Sabemos que o enjoo é um problema, por isso quisemos criar um jogo que todos pudessem jogar. O teletransporte é uma boa solução, porque nele não há aceleração contínua."

É possível que esses dois desenvolvedores desconhecidos tenham resolvido o problema, mas isso não significa que as empresas independentes irão continuar a revolucionar o mundo da realidade virtual.

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E OS GRANDES ESTÚDIOS?

Nenhum dos desenvolvedores envolvidos com realidade virtual com quem falei na GDC tinha uma equipe com mais de 20 pessoas. Até mesmo o Adr1ft, o primeiro jogo de grande orçamento feito para realidade virtual, foi criado por uma equipe de apenas seis pessoas.

Fico feliz em dizer que, depois de assistir a várias palestras e conversar com diferentes desenvolvedores na GDC, descobri que eles são pessoas bem-intencionadas que não querem repetir os erros do passado. Eles querem criar jogos mais inclusivos, seguros e receptivos.

"Somos responsáveis pelo conteúdo que criamos", disse Kimberly Voll, cientista cognitiva que fez parte da equipe que criou Fantastic Contraption, durante sua palestra na GDC. "Temos que pensar sobre confiança e espaços seguros. Pensar em pesquisas sobre o efeito dos jogos em crianças. Se a gente não puder fazer isso, precisamos falar com quem pode. Essa é uma época empolgante, e nós queremos manter esse ritmo, mas sem nunca esquecer dessas outras questões."

Os grandes estúdios, com algumas exceções, não estão participando da corrida da realidade virtual. A Ubisoft, que costuma apostar em novas plataformas, anunciou o lançamento de dois jogos pequenos jogos em realidade virtual: Werewolves Within e um jogo de voo, Eagle Flight.

A Insomniac Games, um estúdio AAA que trabalhou na série Ratchet & Clank e mais recentemente em Sunset Overdrive, designou uma equipe para desenvolver Edge of Nowhere, um jogo de aventura similar a Uncharted passado em uma Antártida lovecraftiana.

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Mas o mais importante é que os grandes estúdios não estão preparados para transpor suas franquias mais populares para o mundo da realidade virtual. "Os grandes estúdios irão entrar no ramo da realidade virtual quando o mercado estiver estabelecido e quando o investimento for rentável", disse Harley Baldwin, vice-presidente da Schell Games, estúdio que está produzindo I Expect You to Die.

Por enquanto, faz sentido que os pequenos desenvolvedores estejam tão dispostos a resolver o problema da mobilidade.

"O problema é que muitos desenvolvedores precisam de nossa ajuda. O único jeito de conseguir apoio é por meio de investimentos e, para conseguir isso, precisamos descobrir um jeito de tornar a realidade virtual lucrativa"

"Ter uma equipe pequena e focada é vantajoso,porque assim podemos fazer decisões difíceis e alterar nosso foco quando necessário", disse Baldwin. "É difícil imaginar o que aconteceria em uma empresa maior quando eles testassem uma nova fase que não fosse tão boa, por exemplo."

Esse tipo de aposta é arriscada e dispendiosa demais para estúdios AAA.

A questão é: por quanto tempo essas equipes pequenas e idealistas irão apostar na realidade virtual? Muitos juram que essa nova plataforma é uma mina de ouro. Mas Wanda Meloni, diretora executiva da Open Gaming Alliance, diz que empresas de consultoria como a Digi-Capital, que estimou que o mercado de realidade virtual valerá US$30 bilhões em 2020, podem estar enganadas.

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"Muitos analistas estão abaixando suas estimativas, e acho que esse é só o começo", disse Meloni em um painel organizado pela JPR, uma empresa de consultoria. "O hardware é incrível, mas para ter um ecossistema estável, precisamos criar um software condizente. O problema é que muitos desenvolvedores precisam de nossa ajuda. O único jeito de conseguir apoio é por meio de investimentos, e para conseguir isso, precisamos descobrir um jeito de tornar a realidade virtual lucrativa".

Esse é o grande dilema da realidade virtual: os grandes estúdios não estão dispostos a investir milhões de dólares em jogos voltados para um público que ainda não existe, mas é provável que esse público esteja apenas esperando o lançamento de um jogo que justifique a aquisição de um headset. Para ser sincero, já vi vários jogos de realidade virtual interessantes, mas nenhum deles realmente me impressionou.

Se a realidade virtual realmente for lucrativa, é improvável que os grandes estúdios continuem a ignorá-la. Se eu fizesse parte de um estúdio como a Activision ou a Electronic Arts, esperaria para ver qual desses pequenos estúdios encontraria a melhor solução para o problema da mobilidade. Em seguida eu contrataria essa equipe e investiria todo o poder do meu estúdio na produção de um jogo (ou talvez eu pularia a parte da contratação, roubaria a ideia, e colocaria mais armas). Imaginem só um jogo de realidade virtual com uma verba de milhões de dólares e uma equipe de 100 pessoas!

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Acho que aqueles que estão empolgados com a realidade virtual — os gamers que já investem em consoles e PCs de última geração — esperam que ela torne seus jogos favoritos cada vez mais imersivos. A maioria dos desenvolvedores diz não querer jogar, quanto mais criar, algo como um FPS em realidade virtual. Mas eu desconfio que é isso que os jogadores querem, e quando uma empresa finalmente criar esse jogo, outras vão seguir seus passos.

PRAZER CULPADO

Durante o GDC, testei um jogo em realidade virtual muito parecido com um FPS clássico. O nome do jogo é Bullet Train, um título inteligente, já que inclui tanto balas quanto trens. A mobilidade do demo parecia um pouco com a de Budget Cuts. Uma diferença importante, no entanto, é que em vez de me teletransportar para onde eu quisesse, eu só podia me teletransportar para pontos predeterminados. Essa é uma forma menos interessante de se mover e que requer menos esforço.

A demo do Bullet Train. Crédito: Divulgação

A demo começa com meu trem chegando em uma estação. As portas se abrem, e sou atacado por um grupo de Caras Malvados com armaduras pesadas. Teletransporto-me para o outro lado dos trilhos, onde pego uma AK-47 e mando bala. Nesse ponto, mais Caras Malvados começam a encher a estação. Assim, me teletransporto para cima da escada, pego duas pistolas, uma para cada mão, e começo a atirar em câmera lenta como o herói de um filme do John Woo. Posso parar o tempo, pegar balas no ar e jogá-las de volta para meus inimigos. Quando me teletransporto para um canto e mando um tiro de espingarda na barriga de um dos vilões, ele voa para o outro lado da estação.

Mato dezenas desses imbecis, como já fiz em vários outros jogos — e faço tudo isso sorrindo. Gosto de atirar em pessoas de mentira. Me processem. Não me orgulho disso, mas se eu tivesse que escolher entre jogar Fantastic Contraption e uma versão completa de Bullet Train, eu provavelmente escolheria a segunda opção.

Sei que a realidade virtual pode criar jogos muito mais inovadores do que Bullet Train, mas também acredito que há uma lacuna entre os papos utópicos que ouvi entre desenvolvedores na GDC e o tipo de jogo que fará o público abrir a carteira.

Sei disso porque sou um membro desse público e, lá no fundo do meu cérebro idiota e pervertido por décadas de jogos que satisfazem meus instintos mais básicos, a realidade virtual não será uma plataforma de verdade até eu explodir alguém. Eu quero fugir, afinal. Quero desligar meu cérebro e jogar algo que satisfaz meu desejo por ordem, controle e realização. Quero algo familiar.

"Vivemos numa época incrível", disse Voll à platéia de desenvolvedores da GDC. "Estamos aqui para estabelecer a linguagem e as regras da realidade virtual. Daqui a dez anos, se os livros escolares ainda existirem, eles falarão sobre o que estamos fazendo aqui hoje. Bem vindos à nova fronteira."

Os desenvolvedores responderam com uma salva de palmas calorosa. O discurso também me inspirou, mas parte de mim sente que eles estão superestimando seu público.

Tradução: Ananda Pieratti