​O Pregador de Bitcoins em Cuba
O ativista e desempregado Nelson Chartrand, de 50 anos, não pode trabalhar pelos meios tradicionais em Cuba e se alimenta apenas de manga e água com açúcar. Crédito: Daniel Oberhaus.

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Tecnologia

​O Pregador de Bitcoins em Cuba

A briga de Nelson Chartrand para implementar as moedas digitais em um país com pouquíssimo acesso à internet.

Nelson Chartrand parecia ansioso enquanto bebericava uma cerveja morna em um pequeno café do centro de Havana, em Cuba. O suor criava manchas negras na camisa cinza com a qual esfregava a testa úmida. Era difícil afirmar se sua transpiração excessiva vinha do calor sufocante da capital cubana ou de seus nervos.

A apreensão de Chartrand é compreensível. Ele acredita ter sido seguido até ali. Com movimentos discretos, aponta para um homem sentado em um canto do café. O homem parecia imerso em um jornal cubano enquanto esperava seu pollo asado.

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"Polícia secreta", Chartrand informou.

O anônimo — um gorducho careca e de calças tingidas — parecia distante da imagem que a expressão "agente secreto do governo" em geral conjura.

"Como você tem certeza disso?", perguntei a Chartrand, enquanto tentava observar a fonte da ansiedade dele.

Ele deu de ombros e ajustou seus óculos. "Impossível", admitiu. "Mas, acredite, eles sabem que estou aqui conversado com você. Se não estiverem aqui agora, então vão esperar por mim quando eu chegar em casa." Ele bateu o punho fechado contra a palma para enfatizar a situação.

"É que vivo na incerteza", Chartrand me disse, depois de dizer que não sentia medo. Ele sorriu de forma enigmática e mudou de assunto. "Essa", me informou, gesticulando para a bebida, "é a primeira cerveja que tomo em meses. Quase me esqueci do gosto dela."

Chartrand não conseguia pagar por esse tipo de luxo desde que perdeu o direito de trabalhar em Cuba há sete anos. Uma consequência infeliz de suas crenças políticas hereges, explicou. Chartrand é um dos cofundadores do Clube Anarcocapitalista Cubano, o CAC, uma associação de dissidentes políticos que queriam ver florescer um mercado livre na terra da revolução duradoura.

A sociedade foi fundada em março de 2014 e, desde sua origem, seus membros lutaram para subverter o governo de Castro por meio de campanha ideológica. Eles ofereciam seminários e distribuíam textos na internet sobre como a web, o mercado livre e o desmantelamento da autoridade centralizadora podem ajudar a promover uma Cuba verdadeiramente livre.

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"Nós nos incumbimos de estudar o Bitcoin porque somos contra o governo."

Em fevereiro, o CAC se tornou o primeiro grupo cubano a aceitar moedas digitais. A adoção do Bitcoin foi, segundo seus líderes, um elemento tático na luta contra o regime de Castro. A tarefa ganhou urgência desde que Obama anunciou os planos de normalizar as relações com a ilha em dezembro. O passo facilitaria a proliferação do acesso dos cubanos à internet global e transformaria a criptomoeda em uma alternativa viável para centralizar operações bancárias.

"Nós nos incumbimos de estudar o Bitcoin porque somos contra o governo", afirmou Chartrand. "Estamos curiosos com o Bitcoin como um jeito de trabalhar de fora das instituições centrais, para subverter o estado, e acreditamos que pode ser uma ferramenta bastante poderosa para os cubanos."

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Chartrand é rápido em apontar que o Bitcoin é antiautoritário na medida em que permite que transações financeiras ocorram na ausência de um poder central monetário. Isso é possível porque todas as transações são enviadas para um banco de dados distribuído conhecido como blockchain, mantido por várias atualizações de verificação em nós nas contas públicas. O resultado é um sistema monetário totalmente descentralizado.

Enquanto introduzir o Bitcoin em um país com pouca conectividade como Cuba cria inúmeras dificuldades, a tarefa não chega a ser impossível: o uso de Bitcoins pode ser adaptado à realidade cubana. Lá o fluxo de informações é bastante restrito. Muitos cubanos só ficam em dia scom os Top 40 e seus programas de TV favoritos por meio de operações de pirataria que fazem o upload de mídia estrangeira por cerca de 1 dólar por gigabyte para seus pendrives.

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Assim como o blogueiro de Bitcoin Garrett Keirn especulou, um princípio semelhante poderia ser potencialmente aplicado aos mercados de Bitcoin cubanos, cujos membros poderiam baixar um cliente de Bitcoin pré-sincronizado em uma base semanal e, assim, atualizar a cadeia de blocos com transações de Bitcoin cubanos. Isso já é feito pelos equivalentes do Craiglist cubanos revolico.com e cubisima.com, que permitem às pessoas baixar uma versão atualizada do site a seus pendrives em uma base semanal.

Mesmo que em sejam em teoria viáveis para o Bitcoin, os recursos para a ação seriam mais problemáticos do que uma solução, dado o tamanho crescente da cadeia de blocos e da instabilidade das conexões à internet cubana de fora das melhores instituições governamentais.

Na verdade, introduzir o Bitcoin em Cuba pode estar distante, mas as atividades da CAC podem sem dúvida atrair a ira das autoridades cubanas. Seus membros alegam terem submetidos a intimidações incessantes, sequestros, espancamentos e prisões como resultado de suas operações políticas pouco secretas. Chartrand admite que o abuso físico e mental constante se torna cansativo, apesar de que ele não tem mais medo disso. Seus problemas políticos começaram muito antes e, nesse ponto, táticas de intimidações se tornaram só mais um episódio em sua vida.

Chartrand tem 50 anos e está desempregado. Antes, ele ganhava seu pão como advogado no ministério cubano de comércio internacional. Ele trabalhou lá durante décadas até ter sido preso em 2008 por buscar exílio na embaixada da República Dominicana.

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Uma rua de Havana. Foto: Daniel Oberhaus.

"Os cubanos não podiam viajar tão livremente como agora", explicou. "Fiquei muito frustrado, então, em protesto, eu me apresentei à embaixada da República Dominicana. Teoricamente, eles tinham extraterritorialidade, mas assim que o cara que mandava chegou lá, ele me entregou para as autoridades cubanas."

Chartrand foi sentenciado a dois anos de prisão, mas seu treinamento como advogado o permitiu negociar a sentença para oito meses. Em sua soltura, ele descobriu que não somente foi banido de trabalhar em Cuba, como também foi proibido, de forma legal e financeira, de sair do país.

"Fui à embaixada da República Dominicana por dois motivos: um era protestar pelo direito humano básico de ir e vir, e o outro, para ver se eu conseguia sair de Cuba", afirmou. "Hoje as coisas estão diferentes. Não quero mais sair de Cuba. Quero que o estado saia daqui."

Desde que saíra da prisão e fora a proibido de trabalhar de modo legítimo, Chartrand tem uma existência cada vez mais pobre. Ele sobrevive de manga e água com açúcar e ganha um salário irrisório em uma cidadezinha a algumas horas de distância de Havana.

Perguntei a Chartrand o que ele faz para sobreviver, já que trabalhar seria ilegal para ele, mas ele abanou a mão sobre a minha pergunta, como se ela fosse uma nuvem de moscas voando pelo café. "Você não acreditaria se eu contasse."

Seu tempo na prisão moldou suas visões políticas. Em vez de diminuir sua força de vontade, ele saiu da prisão com uma nova razão de viver. "Comecei a ser livre na prisão", ele disse. "E agora que provei o néctar na liberdade, não quero perdê-lo jamais."

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As visões socioeconômicas de Chartrand, que sempre foram ambiguamente libertárias, começaram a se aglutinar em uma perspectiva e estratégia mais explícitas ao longo dos cinco anos depois da saída da prisão. Suas ideias foram influenciadas pelos economistas Friedrich Hayek e Lorenzo Infantino. A dissidência contra as políticas do governo de Castro foi enfim consumada em março de 2014, quando Chartrand cofundou o Clube Anarcocapitalista Cubano, sob a direção de Joisy Garcia, seu amigo de longa data e membro da imprensa independente cubana.

"Começamos o clube para dar esperança aos cubanos pois não há liberdade aqui", afirmou Chartrand. "Vivemos há mais de meio século sob um estado que impôs um modo de pensar prejudicial às pessoas. Esse governo esmagou a individualidade e a força para lutar de todos. Estamos nos tornando um país de autômatos. Tentamos oferecer outro modo de pensar."

Desde o início as atividades do CAC permaneceram amplamente ideológicas. Os membros do grupo criaram bibliotecas independentes ao redor de Cuba, que oferecem seleções de leitura tipicamente banidas no país, além de oferecer debates sobre matérias como a lei policêntrica e a internet. Até então, as reações populares à mensagem do CAC foram mistas.

"Todos os dias, as pessoas estão tentando compreender como vão fazer para sobreviver. Elas estão recebendo salários de merda e estão conscientes de que seus pagamentos não são suficientes, aí, no Memorial Day, a maioria vai ao shopping center adorar os deuses no poder. Não faz sentido", afirmou Chartrand, acrescentando que aqueles que ousam discursar contra o governo encontrarão um tipo de punição, quase sempre de natureza física. "É um conceito bastante deprimente: as pessoas que passam pelas mesmas dificuldades que você são capazes de prejudicá-lo física e emocionalmente quando veem que você luta por liberdade."

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Garcia, o jornalista amigo de Chartrand, foi embora para os Estados Unidos este ano a convite da Universidade Internacional da Florida após anos de abuso físico e mental pelas autoridades cubanas. Seu crime, diz, era ser membro atuante da imprensa independente e ilícita de Cuba.

"Eles não querem que espalhemos nossas ideias. Tive duas vértebras quebradas pelos espancamentos."

"Sempre fui perseguido", afirmou Garcia. "Eles não querem que espalhemos nossas ideias. Tive duas vértebras quebradas pelos espancamentos – surras, sequestros e ameaças são nosso pão de cada dia."

Por fim, Garcia, Chartrand e os 21 membros oficiais do CAC descobriram que a luta puramente ideológica contra o estado cubano era insuficiente. Sua busca por linhas de subversão mais práticas finalmente os levaram a considerar as criptomoedas como ferramentas valiosas, com as quais poderiam proporcionar reformas socioeconômicas mais sérias à ilha.

Apesar de um número crescente de opções para que os cubanos participem de atividades empresariais tenham aparecido sob o governo de Raul Castro, a economia cubana ainda está amplamente centralizada e sujeita às instruções do regime. O CAC deseja subverter esse paradigma econômico criando as condições para um sistema de livre-mercado em Cuba por meio da descentralização das moedas, tal como acontece com o Bitcoin.

O CAC vai longe em suas visões políticas daquilo que o norte-americano típico pode entender como "libertário", sem meramente buscar um estado reduzido (algo que a CAC vê como ingênuo); o grupo quer o desmantelamento completo da autoridade centralizada.

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"O CAC é anarquista no sentido de que todos têm livre arbítrio para comercializar como quiserem, sem ter o controle pelo governo. Enquanto houver estado, o capitalismo é uma bobagem", afirmou Chartrand, enquanto explicava o programa do CAC para mim. "Nesse sentido, não tem nada a ver com o capitalismo. O papel do capitalismo tem mais a ver com a permissão para que as pessoas façam o que elas bem quiserem em um mercado livre."

É aí que o Bitcoin entra em cena: permite que os cubanos evitem custos altos de importação/exportação e dá a eles maior liberdade monetária.

Espera no Etesca, a empresa de telecomunicações mantida pelo estado. Foto: Daniel Oberhaus.

O CAC começou a aceitar doações em Bitcoin em fevereiro, tornando-se o primeiro grupo sob o regime de Castro a aceitar moedas digitais. Mas Chartrand e Garcia admitem que ainda há sérios impedimentos logísticos à introdução da criptomoeda na ilha.

O problema principal é que Cuba tem uma das menores taxas de penetração da internet no mundo. Enquanto a União de Telecomunicações Internacional anunciou que a penetração de internet em Cuba parou em 25% em 2014, a vigilante pró-democracia Freedom House alegou que somente 5% da população cubana tem acesso à internet total e global. De acordo com um relatório da Freedom House, isso faz de Cuba um dos últimos lugares livres do mundo, até onde a internet vai, fica atrás de países como a China, a Síria e o Irã.

No momento, os únicos cubanos com acesso regular à internet são aqueles com laços estreitos com o estado, como oficiais do partido, funcionários dos diversos ministérios do governo ou aqueles que se encontram em posições amplamente regulamentadas, como médicos ou professores. Se alguém da população em geral deseja acesso total à internet, além da intranet do governo, eles devem ir à Etecsa, a empresa de telecomunicações mantida pelo governo. Lá, os cubanos esperam várias horas, no calor de Havana, e pagam $ 4,50 a hora por uma navegação monitora. Não é nada barato se considerarmos que o salário mensal de um cubano é de cerca de 25 dólares.

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Alguns habitantes criaram uma intranet própria e independente conhecida como SNET, que é tecnicamente ilegal mas acabou permitida em 2001 contanto que quem se conecte se recuse a discutir qualquer assunto remotamente político ou a participar de fóruns de pornografia. Uma intranet independente é, de fato, um passo na direção certa em termos de liberdade de internet. Mas o estado geral da web em Cuba está bem longe das condições exigidas para introduzir a criptomoeda como uma fonte intensiva como o Bitcoin.

"Muitas pessoas em Cuba nunca se conectaram à internet – esse é o grande obstáculo agora."

Essa deficiência de infraestrutura com respeito à internet é algo de que Garcia e Chartrand estão cientes. Tanto é que eles adaptaram suas táticas na introdução do Bitcoin em Cuba.

"Muitas pessoas em Cuba nunca se conectaram à internet, esse é o grande obstáculo agora", afirmou Chartran. "É um longo caminho. Queremos somente plantar a semente nas mentes das pessoas. Trabalhamos para as futuras gerações."

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Assim, o processo de introduzir o Bitcoin em Cuba permanece como uma lenta infiltração ideológica. Como Chartrand me disse, tentar aquecer as pessoas ao Bitcoin e às justificativas políticas do CAC são lutas suficientes até então.

"As pessoas respondem com medo, o que é lógico dentro da sociedade por aqui. É muito clandestino e os alunos têm muito medo", afirmou Chartrand.

Agora que as tensões estão começando a diminuir entre os Estados Unidos e Cuba pela primeira vez em meio século, espalhar as boas-novas do Bitcoin começou a apresentar uma urgência peculiar para o clube. Promessas de trabalho em direção ao fim do embargo foram feitas dos dois lados do corredor. O esforço deve empurrar Cuba na direção da conexão com a internet global.

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Um café com internet mantido pelo estado em Havana. Foto: Daniel Oberhaus.

Um pouco de progresso já foi feito nessa direção: empresas como a Netflix e a AirBnb começaram a oferecer seus serviços na ilha no início do ano. A IDT Corp, com sede em New Jersey, se tornou a primeira empresa de telecomunicações norte-americana a conectar diretamente linhas telefônicas com Cuba em março. Representantes do Google fizeram uma visita de investigação à ilha no mesmo mês. De acordo com um porta-voz norte-americano do departamento de estado, Cuba se comprometeu em prover acesso à web para 50% de seus habitantes até 2020, o que significa que o Bitcoin pode se tornar uma opção viável no país em breve.

Esta é a opinião de Ramon Quesada, cofundador do avalBit, uma associação espanhola dedicada à promoção de projetos do Bitcoin, que também serve como orientador de Garcia em todas as questões do Bitcoin. Quesada mencionou a aposta recente do Google em levar wi-fi grátis a Nova York por meio do Sidewalk Labs como exemplo de como levar conectividade sólida à internet a locais novos para usar bitcoin está se mostrando muito mais fácil.

"A tecnologia está crescendo em uma taxa exponencial", ele me disse. "Talvez eu seja um sonhador, mas vejo que estamos nos aproximando todos os dias."

Apesar dos ganhos tecnológicos, a natureza secreta das atividades do CAC dificultou as demonstrações de solidariedade entre seus membros, o que, de acordo com Chartrand, somente reforça a mentalidade pequena da população cubana e dificulta bastante a discussão de ideias.

"Existem pessoas que pensam de modo diferente, mas elas sabem que serão derrotadas pelos imbecis do governo por pensarem de forma diferente, então elas não falam nada", afirmou Chartrand. "Então as pessoas continuam pensando que a maioria quer esse sistema."

Mas ele acredita que a luta, no fim, valerá a pena.

"Acredito que todos temos a anarquia dentro de nós. Está em nossa natureza. Todos queremos liberdade. Buscamos isso", afirmou. "Acho que as pessoas são boas de coração, mas ficam assustadas quando ouvem a palavra 'anarquia' ou 'anarcocapitalismo'. São só nomes. Tirem os rótulos, pensem no bem-estar da humanidade."

Tópicos: criptomoeda, bitcoin, cuba, Futuros, dinheiro, economia, Internet, Nelson Chartrand, sanções, Fidel Castro, Clube Anarcocapitalista Cubano

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri