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O Pânico em Torno do Ebola no Brasil É Racista

Mesmo sem nenhum caso confirmado da doença no país, o circo está armado e os casos de racismo e preconceito se espalham.
Crédito: Anna Mascarenhas/VICE

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais de 4.800 pessoas já morreram por causa do ebola no mundo. A doença existe na África desde os anos 70, mas ganhou as páginas dos jornais mundiais esse ano após casos serem registrados fora do continente africano. No Brasil, dois casos de suspeita foram descartados – ou seja, não existe ebola por aqui.

Por enquanto, nosso país está livre da epidemia. No entanto, parece que não estamos livres da histeria. Nem do racismo ou da xenofobia. O desespero e preconceito das pessoas chegaram a um ponto em que uma das palavras mais associadas ao ebola nas redes sociais é "preto". A iminência da doença tem despertado o que há de pior na sociedade.

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O primeiro caso de suspeita apareceu na cidade paranaense de Cascavel no início de outubro. O guineense Souleymane Bah apresentou sintomas de febre, tosse e dor de garganta. Isso não foi suficiente para confirmar a doença, mas foi suficiente para que se começasse um show de horrores na internet e algumas pessoas inclusive começaram a pedir para o governo fechar as fronteiras para imigrantes africanos. Só isso já é um baita problema, mas como se não bastasse, até imigrantes haitianos foram colocados nessa roda do preconceito, apenas por também serem negros.

A questão aqui não tem a ver com saúde. A questão é racial.

Perguntei a Cristiane Santana, do Núcleo de Educação Étnico-racial da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo se ela acha que o racismo no Brasil ainda é velado. Ela respondeu que não acredita que seja algo velado, mas que o racismo aparece para nós como um racismo institucional, por isso é mais difícil identificá-lo visualmente. "Não se trata somente de um confronto, uma agressão física ou verbal, mas do cerceamento das oportunidades."

Para ela, o preconceito ainda é fruto da desinformação, por isso é preciso desconstruir algumas generalizações. Ela afirma que as pessoas ainda veem a África como um país, não como um continente, e por isso pensam que qualquer imigrante africano pode ser disseminador da doença.

"À medida que a gente vai trabalhando um conhecimento maior sobre a África, sobre aspectos culturais e políticos e sociais, você vai contribuindo para que as pessoas conheçam melhor essa população e diminui a possibilidade das ações de xenofobia ou de discriminação", ela reflete. Cristiane também aponta problemas no material didático distribuído nas escolas, que reforça estereótipos e tem consequências na criação da identidade das crianças negras, que não se reconhecem, e das crianças brancas, que alimentam um sentimento de superioridade.

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Educadores se valem da lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares no Brasil para tentar sanar esse aspecto do problema.

"Se uma pessoa fala algo ruim, racista, para mim, eu vou ajudá-la a entender, informa-la", diz Thierry Olivier. Crédito: Anna Mascarenhas/VICE

A falta de conhecimento também é levantada por quem vem de fora. Visitei a Casa do Migrante, no Glicério, para conversar com alguns imigrantes que buscam trabalho no Brasil e bati um papo com Thierry Olivier, nascido em Camarões. Ele falou que já sofreu preconceito aqui por ser africano e acredita que ainda falta informação. "As pessoas acham que todo africano tem ebola, mas se alguém me disser alguma coisa, eu vou responder, vou explicar o que é o ebola, porque tem muito brasileiro que não sabe", disse. "Acham que a África é um só país, mas é um continente com 54 países. Isso é ignorância. Se uma pessoa fala algo ruim, racista, para mim, eu vou ajudá-la a entender, informá-la."

Altino Mulungu, gestor do Escritório de Assistência à Cidadania Africana em Pernambuco (EACAPE), afirma que "apesar de sermos o segundo país mais negro do mundo, perdendo apenas para Nigéria, o Brasil é preconceituoso quanto à cor das pessoas" e o imigrante africano é tido como uma ameaça à saúde pública por falta de esclarecimento.

Para Cristiane, o ebola é o estopim para as pessoas externarem seus preconceitos, acaba sendo um viés, que não aumenta ou potencializa o racismo. "Poderia ser o ebola ou qualquer outra demanda. É uma situação de conflito que torna mais evidentes as visões que as pessoas já tinham antes em relação aos imigrantes africanos e negros, até haitianos têm sido vítimas de discriminação. Só que agora você tem uma justificativa para barrar essa entrada, sob essa ideia do medo da doença", disse.

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Essa atitude indica que pouco aprendemos com o passado. Nos anos 80, a mesma paranoia aconteceu com o estouro da AIDS. Ninguém sabia direito como se pegava, quem poderia ter e as pessoas começaram a segregar os chamados "grupos de risco", que hoje não existem mais, mas costumavam ser os homossexuais, usuários de heroína e hemofílicos. E de bônus, mais uma vez, os africanos.

O padre Paolo Parise, diretor da Missão Paz, disse ao Motherboard que as autoridades brasileiras estão se preparando para enfrentar a crise. Ele afirma que foi organizada uma reunião no Hospital Emílio Ribas com outras entidades públicas para debater esse assunto. Os próprios funcionários da Missão Paz foram chamados para esclarecer questões referentes ao ebola.

A Dra. Elaine Cristina, médica responsável pelo eixo de saúde da Missão Paz confessa que as pessoas estão com medo, mas que, uma vez que as dúvidas de como a doença se espalha e onde ela está presente são sanadas, elas lidam de forma mais racional. "Conforme a informação vai chegando, o comportamento muda", assegura. Ela também aponta que é preciso ter em mente que os riscos da doença chegar ao Brasil são baixos, mas que é preciso se preparar e conversar com as pessoas para que tudo fique mais esclarecido.

Mani nos contou um pouco sobre a situação do ebola em Togo. Crédito: Anna Mascarenhas/VICE

Mesmo com risco baixo de chegada do ebola no Brasil, o pânico está declarado. Se por aqui já é assim, o eletricista industrial Mani Ounon, nascido em Togo, me contou que em seu país, as autoridades realmente barraram pessoas vindas da Nigéria, um dos países afetados esse ano, mas que não apresenta nenhum novo caso há quase 60 dias. Ele disse que lá, as escolas também adiaram o início das aulas devido ao surto da doença.

No Brasil há apenas um mês, Mani conta que não sofreu nenhum preconceito e acredita que o governo brasileiro está preparado para lidar com a crise. Ele acha que o ebola "não deve chegar ao Brasil, é um país mais desenvolvido. Aqui eu acho que as pessoas não vão sofrer como na África, lá falta tudo, aqui tem muitos especialistas". Sinceramente, espero que o caso e o futuro imaginado por Mani, sem doença e sem preconceitos, se confirme.