​O Obsessivo Mundo dos Legendadores de 'Sherlock' na China
Crédito: Yuan Liyang

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​O Obsessivo Mundo dos Legendadores de 'Sherlock' na China

“O governo não mostra nenhum tipo de interesse em promover as artes. Parece que preenchemos essa lacuna.”

É difícil não sentir a presença do ator britânico Benedict Cumberbatch no pequeno quarto de Cassie, de 26 anos, na cidade de Wuhan, na China. O astro da série Sherlock está com olhar compenetrado sobre a cama na capa da revista TIME, sedutor em um calendário de 2013 na mesa de trabalho e de braços abertos em um pôster grudado à parede.

Cassie é mais do que uma "Cumberbitch" habitual. Ela é a chefe do iSherlock, um grupo de 200 legendadores amadores voluntários que se dedicam a traduzir para o mandarim o universo da série de TV Sherlock a seus 59.000 de seguidores no Weibo, a versão chinesa do Twitter.

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"As tramas de Sherlock são intrigantes e seus heróis atraentes e carismáticos", Cassie me contou. "Li os livros originais quando a série foi lançada e senti uma ligação com a minha vida. A forma como o herói expressa suas emoções é diferente de qualquer pessoa que já conheci."

Ano passado, grupos inexpressivos de legendadores chineses (ou "fansubbing" em inglês; uma mistura de fan, de fã, com subtitling, de legendar) como o iSherlock estavam ofuscados por organizações de legendadores muito mais influentes. Mas desde que as autoridades chinesas fecharam o cerco contra as infrações de direitos autorais dos legendadores, os grandes grupos sofreram muitas baixas. Sobraram vários pequenos times.

O portal Shooter.cn e o YYeTs, um grupo de fãs legendadores que operava igual a uma grande empresa, com milhares de legendadores não remunerados, foi fechado pela Administração Nacional de Direitos Autorais ano passado. Os YyeTs se tornaram alvo em 2013 e, no mesmo ano, outro grupo,o Silu HD foi removido. Oito de seus chefes foram presos.

Cassie. Crédito: Yuan Liyang

Grandes grupos de fãs dubladores surgiram no início dos anos 2000. A motivação era o desejo de consumo de programas de TV estrangeiros, como Friends, que era consumido e recomendado por estudantes chineses que estudavam fora. Como o governo central considerava esses programas uma forma de arte sem valor — o presidente Xi Jinping sugeriu não faz muito tempo que a arte chinesa deve, primariamente, servir para promover o socialismo — e baniu muitos programas populares de seus canais, sites transgressores com filmes e legendas se tornaram portais indispensáveis para os chineses terem acesso à cultura estrangeira.

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"O governo proibiu um número muito grande de programas sem nos dar qualquer motivo para isso, então os grupos de legendadores serviram como embaixadores reais da disseminação da cultura", Cassie afirmou. "O governo não mostra nenhum tipo de interesse em promover as artes. Parece que preenchemos essa lacuna."

"Não me sinto muito como uma 'chefe' porque somos um grupo de voluntários. Somos democráticos e ouvimos as ideias e opiniões de todos os membros."

O governo mantém domínio sobre aquilo que considera conveniente exibir. Apesar do controle, é fácil acessar a TV e os filmes com legendas chinesas na mídia predominante. Sites de streaming, como Iqiyi e Youku, oferecem versões legais de shows como Sherlock, o que significa que o papel dos grupos de fãs legendadores que se dedicam a um programa ou interesse especifico, como o iSherlock, precisaram se tornar muito mais do que apenas ferramentas de acesso.

"Não vejo muitos grupos grandes com milhões de seguidores por aí", afirmou Zack Lin, que trabalha da indústria cinematográfica de Pequim e investigou o interesse público chinês no Sherlock e nos grupos de fãs legendadores em sua tese na universidade de Warwick, na Inglaterra, em 2013. "As pessoas vão a qualquer lugar para conseguir o que querem porque agora elas podem", acrescentou. "Antigamente, você não podia conseguir essas coisas dos grandes websites, então era preciso cavar mais fundo. Para aquelas séries que não são tão populares, ainda há espaço para os grupos de fãs legendadores."

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O iSherlock compete pela atenção dos 69 milhões de espectadores chineses com outros grupos de fãs legendadores como o AllForBC. A diferença foi que o iSherlock manteve um público cativo ao oferecer um streaming constante de Sherlock, Benedict e Martin Freeman a eles.

Eles traduzem entrevistas, notícias e aparecimentos em programas de entrevistas, bem como "Sherlockepisódios", criando sua rede social própria de fãs. "É raro encontrar pessoas na vida real com quem compartilhar gostos", afirmou Cassie, que, com frequência, se encontra ao vivo com membros do iSherlock. "Fico muito feliz em saber que posso fazer algo para outros fãs porque tenho um bom domínio do inglês. Fiz muitos amigos por causa do site."

Todos os voluntários de Sherlock trabalham em casa. Cassie supervisiona os departamentos de transcrição, pesquisa de notícias, pós-produção e design. Muitos voluntários são estudantes universitários e cerca de um terço deles mora fora do país.

Crédito: Yuan Liyang

Assim que um episódio novo de Sherlock é disponibilizado na internet, em inglês, a equipe do iSherlock parte para a ação. O vídeo é dividido e cada segmento é designado a um tradutor para legendá-lo. Em seguida eles entregam seu trabalho a revisores e trabalhadores de pós-produção, que junta todas as partes por meio de programas de conversão, como o Format Factory e o Time Machine. É um processo meticuloso. A prioridade, diz Cassie, é a qualidade da tradução, não a velocidade com que é feita. Se um episódio fica disponível às cinco da manhã, os legendadores tentam publicar a versão para o iSherlock antes das sete da manhã do mesmo dia.

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O inglês e o mandarim são idiomas bem diferentes. Traduzir de um para o outro é uma habilidade que exige conhecimento aguçado de emoções, linguística e das culturas. A precisão da legenda é sempre subjetiva. É por isso que há muitas versões de legendas pelos sites. Cada canal tem sua marca, seu estilo.

Crédito: Yuan Liyang

Alguns usuários desejam traduções simples e ficam mais apegados aos grupos que oferecem isso. Já outros querem se aprofundar.

"Em Sherlock há diversas referências culturais que os chineses não têm conhecimento, além de muitas gírias, então alguns grupos colocam explicações em legendas adicionais", Lin afirmou. "Alguns legendadores querem ficar o mais próximo possível do significado original. Já outro tipo de legendador vai traduzir usando gírias chinesas para simplificar e ajudar as pessoas a compreender uma situação."

"O Sherlock é muito popular aqui na China", afirmou Cassie. "Apesar de ter outros grupos de fãs legendadores da série, as pessoas têm ideias e opiniões distintas sobre as mesmas frases. Alguns legendadores sentem as emoções dos personagens de forma mais intensa do que outros. As pessoas podem escolher suas versões favoritas, mas nossa principal preocupação é a qualidade básica da tradução."

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Não é fácil ser aceito como voluntário do iSherlock. Aqueles que almejam espaço no grupo precisam fazer um rigoroso teste de tradução on-line aplicado por um membro mais velho. "É bastante restrito", Cassi afirmou. "Os atores de Sherlock falam muito rápido, é um desafio de verdade. Metade dos que tentam, passam; a outra metade, não." Ela afirma também ter passado pelo teste: traduzir uma fala rápida em inglês. Apesar do nervosismo, passou.

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Cassie disse que passa cerca de um terço do dia trabalhando no iSherlock, que foi criado em 2012. "Definitivamente senti mais pressão desde que me tornei a chefe no ano passado e aumentamos o número de seguidores no Weibo", ela disse. "O chefe anterior tinha muitas expectativas sobre mim. Mas não me sinto muito como uma 'chefe' porque somos um grupo de voluntários. Somos democráticos e ouvimos as ideias e opiniões de todos os membros."

Ela concorda que grupos como o iSherlock têm perspectivas a longo prazo melhores do que os grupos maiores que estão na mira do governo. Ainda assim, como muitos chineses, Cassie tem pouco conhecimento das questões de direitos autorais. Ela pula de afirmações como "é mais ou menos infração quando reproduzimos um vídeo porque a equipe de produção faz muito esforço, e não temos permissão" para "a maioria dos vídeos que traduzimos está disponível no ciberespaço e é difícil definir se é infração de direitos autorais". (Vale lembrar que sim: reproduzir um vídeo que você não criou, sem permissão, é infração de direitos autorais.)

"Espero encontrar uma forma de continuar nosso trabalho"

Na China, as leis quase sempre são propositadamente nebulosas e somente são levadas a sério quando a implantação é rigorosa. Por anos, os grupos de fãs legendadores foram deixados em paz e se desenvolveram com grande vigor até ocorrer o arrebatamento repentino.

"Os grupos de legendadores costumavam ser uma área cinzenta da China, então se o governo quisesse regulá-los, seria uma boa notícia", Cassie me contou. "Mas poderia funcionar melhor em termos de coordenação. Manteria os fãs informados a respeito das regras. Não é possível ter, da noite para o dia, regras rígidas em um lugar quando já há muitos grupos de fãs na China. Eles não podem ir tão longe sem qualquer aviso."

Se as autoridades chineses começarem a mirar grupos pequenos como o iSherlock, Cassie diz que aceitaria o encerramento das atividades. Mas mesmo que o iSherlock encerre sua atividade de legendagem dos episódios, o grupo deve sobreviver. A rede de fãs obsessivos do serviço é bastante forte e pode muito bem iniciar um novo pretexto, na forma de fã-clube, para compartilhar artigos e agregar amigos Cumber-heads.

"Espero encontrar uma forma de continuar nosso trabalho", afirmou Cassie. "O Benedict é dedicado. Ao assistir a sua performance, eu sinto exatamente o que ele quer expressar. Espero que continuemos a fazer algo para ajudar os heróis desse drama."

Com informações adicionais de Cissy Young.

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri