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Tecnologia

​O Homem Que Vislumbrou a Internet Antes dos Computadores, Sem Computadores

Décadas antes do primeiro microchip, Paul Otlet previu telas na mesa de todos e a criação de uma "réseau mondial", uma rede global.

Há algumas formas diferentes de se contar "a história da internet". Tem aquele lance da infraestrutura militar que virou ferramenta acadêmica e se espalhou pelo mundo. E tem também aquele lance todo do Whole Earth Catalog (publicação contracultural editada entre 1968 e 1972, e espaçadamente até o ano de 1998), poder-para-o-povo etc e tal. Apesar de opostas, são duas narrativas válidas e a importância conferida a ambas tem mais a ver com políticas pessoais do que qualquer outra coisa.

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Mas aí entra em cena a história de Paul Otlet. Vivendo na época da Bélgica Imperial, os problemas que Otlet, empreendedor e visionário, enfrentou são os mesmos com os quais lidamos hoje: nacionalismo, guerra, e excesso de informação. As soluções desenvolvidas por Otlet ecoam até os dias hoje, talvez em nenhum lugar mais surpreendente que o meio pelo qual você está lendo este artigo agora.

Décadas antes mesmo do primeiro microchip, Otlet já falava de telas nas mesas de todos e a criação de uma "réseau mondial", uma rede global. Ou, sim, a web.

"Tudo no universo, e tudo que é do homem, seria registrado a uma distância enquanto era produzido", escreveu Otlet em 1934, imaginando uma espécie de proto-internet numa pegada steampunk/Brazil de Terry Gilliam, feita de cartões e microfichas. "Desta forma, uma imagem em movimento do mundo será estabelecida, um espelho verdadeiro de sua memória. À distância, todos poderão ler um texto, ampliado e limitado ao tema desejado, projetado em uma tela individual. Desta forma, todos em suas poltronas poderão contemplar a criação, em partes ou por completo."

Premonitório, não?

TODOS EM SUAS POLTRONAS PODERÃO CONTEMPLAR A CRIAÇÃO, EM PARTES OU POR COMPLETO.

Otlet nasceu em 1868 e passou sua vida trabalhando em cima de projetos grandiosos e ambiciosos – uma rede mundial de conhecimento, uma cidade mundial internacionalista – nenhum deles realizado por completo.

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A biografia recém-publicada de Otlet escrita por Alex Wright, Cataloging the World, mostra Otlet como alguém cujas ideias não chegaram a dar frutos em vida, mas chegaram mais perto da realidade desde sua morte. O livro de Wright documenta a vida de Otlet como pai das ciências da informação, e alguém cujos herdeiros espirituais poderiam facilmente incluir o saudoso Aaron Swartz bem como o bibliotecário local. Otlet pensava que a informação era distribuída malmente por estar presa à livros. Ao passo em que ele provavelmente nunca disse que "gostaria que fosse gratuita", Otlet dedicou sua vida à reduzir a fricção que a impede de ser compartilhada.

Otlet amadureceu em um mundo que logo se via às voltas com o telégrafo, o despertar de nossa era da informação. Com notícias viajando na velocidade da eletroestática, jornais proliferaram-se, bem como organizações internacionais. A produção em massa do Séc. XIX incluía literatura produzida em massa, e os índices de alfabetização subiram no Oeste Europeu e na América do Norte. Para colocar alguma ordem no número crescente de publicações, a informação teria de ser padronizada em prol da eficiência. Logo, o catálogo de cartões é a combinação de Fordismo e Taylorismo aplicada à informação: uma forma padronizada de se classificar informações de forma a tornar seu acesso facilitado.

Otlet e seu conterrâneo Henri La Fontaine trabalharam em cima da obra de Melvil Dewey e seu sistema decimal para criar a Classificação Decimal Universal, utilizada em mais de 130 países e 150.000 bibliotecas atualmente, apesar de Dewey ter estipulado que não seria possível traduzir seu sistema para o inglês. A CDU não só organiza livros, como também pode ser aplicada a qualquer outro tipo de texto, incluindo filmes e gravações em aúdio, além de permitir a interligação de textos – uma espécie de hyperlink análogo.

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Com ilustrações

Otlet e La Fontaine também faziam parte daquela linhagem de pessoas que tentou catalogar toda a informação do mundo, ou pelo menos, criar uma bibliografia de todo o conhecimento já publicado.

Seu plano era organizar fatos em cartões de índices, e permitir que as pessoas fizessem perguntas que outras responderiam mediante taxa, algo que Wright chamou de "sistema de buscas analógico" no artigo de 2008 do New York Times sobre o tema Fundada em 1910, a base física de dados alcançou mais de 12 milhões de registros, respondendo a mais de 1500 solicitações por ano, antes do governo belga cortar o financiamento e deixar que a visão de Otlet se esvaísse.

Um internacionalista cujos sonhos e pátria foram destroçados por duas guerras mundiais – muito de seu trabalho foi destruído pelos nazistas na ocupação de Bruxelas – Otlet morreu com sua gigantesca bibliografia sendo enviada ao depósito. Mas sua reputação tem ascendido nos últimos anos, ao passo em que o mundo começa a lembrar a visão que Otlet tivera.

Em 1998, seus arquivos foram reabertos ao público em um museu na Bélgica. Um documentário sobre Otlet saiu em 2002, e agora temos o livro de Wright.

Wright faz um belo trabalho em linkar o trabalho de Otlet e linha de pensamento persistindo durante o tempo a discursos de H.G. Wells, que também imaginava um "cérebro mundial", além da Vannevar Bush, cujo ensaio " As We May Think" supostamente inspirou cientistas da computação que modelaram a internet como a conhecemos.

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A história de Otlet da internet é contada através das "ciências da informação", mas mesmo deste ponto de vista, o belga não pode ser ligado diretamente a o que veio se tornar internet, então tentar encaixá-lo em sua história soa esquisito.

"Ao passo em que não há evidência que nenhum dos inventores anglo-americanos da internet tivesse conhecimento direto da obra de Otlet, existem provas circunstanciais suficientes para sugerir que suas ideias estavam 'no ar' nos anos 30 e 40, quando gente como Vannevar Bush e Doug Engelbart começaram a contemplar a ideia de sistemas de obtenção automática de informações", afirmou Wright via email.

A INTERNET É MAIS QUE UMA INOVAÇÃO TECNOLÓGICA RECENTE; ELA É TAMBÉM A CULMINAÇÃO DE UMA SÉRIE COMPLEXA DE EVENTOS.

É uma nova forma de ver a internet, e a melhor possível – um compêndio padronizado de conhecimento humano que pode ser acessado de onde você estiver. Vendo assim, todos os trolls e a frivolidade das listas se vão, e a internet parece, de fato, um triunfo.

"Para mim, Otlet é importante não por sua influência direta (ou falta dela) na invenção da internet, mas porque seu trabalho aprofunda nosso entendimento das forças históricas em ação", disse Wright. "A internet é mais que uma inovação tecnológica recente; ela é também a culminação de uma série complexa de eventos englobando a história das bibliotecas, a segunda revolução industrial ao final do Séc. XIX e o idealismo social progressivo da Belle Epoque europeia (dentre muitas outras coisas, é claro)."

Sob a luz de Cataloging the World, o eufórico e grandioso potencial da internet parece mais merecido do que um aplicativo que afirmará "mudar o mundo" ao nos permitir pedir pizza de forma mais eficiente.

Tradução: Thiago "Índio" Silva