Como a Pele Artificial Acabará com os Testes em Animais
Um coelho é submetido a um teste para toxinas aprovado pelo FDA, no qual produtos químicos são aplicados nos olhos de animais e seus efeitos registrados. Crédito: PETA/Wikimedia.

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Como a Pele Artificial Acabará com os Testes em Animais

Uma parceria entre uma marca de comésticos e uma empresa de bioimpressão podem acabar com a detestável prática de sacrificar coelhos, ratos, porquinhos-da-índia e outros bichos.

Quando você tomou banho hoje (ou ontem, vai saber), usou produtos que precisaram ser testados por meio de diversas leis ao redor do mundo. Um dos métodos mais comuns para provar a segurança desses cosméticos soa bastante cruel: aplica-se o produto químico na pele depilada de animais que, não bastasse o risco de serem machucados durante o processo, são sacrificados logo depois do experimento.

Com as justas proibições a esses testes, muitas empresas estão correndo para encontrar alternativas. Os métodos vão desde simulações por programas de computador a testes em pele de alta tecnologia criada em laboratório.

Publicidade

O desenvolvimento mais recente nesse domínio veio na forma de uma parceria entre a empresa de cosméticos L'Oréal e a startup de bioimpressão em 3D Organovo anunciada no início do mês passado.

Os produtos são friccionados na pele e nos olhos dos animais, causando danos com frequência.

O projeto vai permitir que a fabricante de cosméticos imprima pele humana em 3D para testar seus produtos. A alegação dos autores do projeto é que há potencial de automatizar o processo de fabricação de pele para a produção em massa. Assim, estaríamos mais ou menos perto de nos livrar por completo dos testes em animais.

A SITUAÇÃO DOS TESTES EM ANIMAIS

As leis sobre os testes variam de país pra país, mas as empresas de beleza foram solicitadas a provar que seus produtos são seguros antes de chegar ao mercado norte-americano desde 1938, quando o congresso aprovou a lei de Federal Food, Drug, and Cosmetic (FDC). A lei foi aprovada em resposta a tragédias envolvendo produtos que não foram testados, incluindo um rímel que causou cegueira em mulheres em razão de queimaduras químicas.

Embora a lei não exija testes em animais, pede que os fabricantes comprovem a segurança dos produtos e seus componentes de alguma forma. Os sujeitos vivos são quase sempre a primeira opção.

De acordo com dados da Humane Society, centenas de milhares de camundongos, porquinhos-da-índia, ratos e coelhos são submetidos a testes ao redor do mundo todos os anos para determinar a segurança de produtos como batons, pigmentos para os cílios, xampus e colônias.

Publicidade

Os produtos são friccionados na pele e nos olhos dos animais, causando, com frequência, danos como irritação, úlceras e cegueira. Os animais não recebem alívio para essa dor e são, em geral, sacrificados por asfixia, estrangulamento ou decapitação após os testes, de acordo com a Humane Society.

Nos últimos anos, houve um distanciamento maior do teste de cosméticos e outros produtos em animais, pelo menos na União Europeia e nos Estados Unidos. Quem diz é Kim Paschen, um gerente do programa de certificação de isenção de crueldade Leaping Bunny, uma entidade gerida por uma coalizão de oito organizações protetoras dos animais nos Estados Unidos e no Canadá.

"Mesmo as empresas estabelecidas no mercado internacional não são capazes de produzir mais de 2.000 pedaços pequenos de pele por mês"

A Leaping Bunny certificou mais de 600 empresas nos Estados Unidos e no Canadá, e muitas mais na Europa, afirmou Paschen. Mas o quebra-cabeça de requerimentos federais de testes ao redor do mundo dificulta a completa abolição de testes em animais.

"Os testes em animais estão diminuindo no total, mas há produtos novos o tempo todo, que acabam sendo testados em animais", ela afirmou. "Nos Estados Unidos, não é mais tão comum, mas em países como a China, o regulamento e os requerimentos são mais rígidos. A China tem um grande problema, porque eles exigem testes em animais em muitos casos."

A Humane Society relatou anteriormente que até 300.000 animais são executados somente na China por ano em razão dos testes. Ano passado, o país afrouxou seus regulamentos, que antes exigiam testes em animais para todos os cosméticos vendidos no país. Agora, segundo o governo chinês, empresas nacionais têm a opção de usar métodos de testes alternativos seguros antes de vender seus produtos. Mas nem todas. Alguns cosméticos ainda exigem o teste em animais, a exemplo de produtos importados e outros de "uso especial", como tinturas de cabelo, tônicos capilares, desodorantes e protetores solares.

Publicidade

Paschen afirmou que o afastamento de testes em animais em nível mundial foi incentivado não por grupos em prol dos direitos dos animais, mas também pela busca das próprias empresas por testes mais precisos. "Os testes em animais não são eficazes porque você compara um organismo que não é humano aos humanos", ela afirmou. "Mais empresas estão simulando a pele humana e desenvolvendo outros métodos não animais para os testes."

QUANDO TESTE EM HUMANOS É A OPÇÃO MAIS BARATA

Afirmar que os testes em animais caíram em desgraça seria uma meia-verdade. De acordo com a Humane Society, 81% dos canadenses, 73% dos norte-americanos e 81% dos australianos defendem a proibição de testes de cosméticos em animais. A União Europeia proibiu os testes para produtos cosméticos finais em animais em 2004 e eliminou os testes de ingredientes individuais nos bichinhos em 2013. A proibição veio após uma campanha agressiva do PETA, que incluiu protestos públicos, ligações e mais de 20.000 e-mails.

Como preparação à proibição da EU nos testes em animais, as maiores empresas de cosméticos trabalharam para buscar alternativas. Elas investem centenas de milhares de dólares em pesquisas e, em alguns casos, são forçadas a colaborar com competidores. A maioria continua a desenvolver métodos alternativos, como modelos em computador e a produção de pele artificial.

"Pessoalmente, não gosto de saber que testamos em humanos."

Publicidade

A L'Oréal alega ser uma das primeiras entidades a desenvolver tecnologia de cultivo de peles com esse propósito, reconstruindo do suas inovações atuais desde os anos 1970.

"Quarenta anos atrás se sabia muito pouco sobre a fisiologia da pele. Era possível cultivar pele em laboratório que se comportasse como a pele de verdade?" um porta-voz da L'Oréal disse ao Motherboard. "Dois cientistas da L'Oréal atenderam a essa necessidade e, em 1975, foram capazes de exibir a primeira pele de verdade cultivada in vitro antes que qualquer outro órgão vivo fosse reconstruído."

A história se tornou parte das crenças da empresa, mas o Motherboard não conseguiu corroborar essa alegação e a L'Oréal se negou a fornecer mais informações sobre isso. Entretanto, de acordo com o livro Case Studies in Innovation for Researchers, Teachers and Students [Estudos de caso em inovação para pesquisadores, professores e alunos], uma pesquisadora da L'Oréal chamada Marcelle Régnier se tornou a primeira pessoa a reconstruir com sucesso a pele humana em 1983.

Na mesma época, a pesquisadora francesa Estelle Tinois desenvolveu um kit de pele artificial enquanto trabalhava no laboratório Imedex, em Lyon, de acordo com o livro. Ela desenvolveu o método para cultivar pele a partir de células queratinocitas doadas, predominante na camada mais superficial da pele, a epiderme, e o chamou de Episkin. A L'Oréal adquiriu a tecnologia da Episkin em 1997, e a partir dela as outras empresas poderiam comprar Episkin desde 2001.

Publicidade

As células queratinocitas vêm de tecidos doados por pacientes de cirurgias plásticas. As células epiteliais colhidas das amostras são cultivadas em uma epiderme artificial usando uma matriz de colágeno. A pele reconstruída cresce em camadas, como a pele de verdade, e leva cerca de uma semana para se formar. A Episkin oferece vários modelos de epiderme reconstruída, incluindo vários tons de pele e de idades variadas.

A L'Oréal integrou essa tecnologia em um kit chamado de modelo Episkin, um conjunto constituído de 12 tubos de teste, cada um contendo a epiderme construída. Em 1998, o Centro Europeu para Validação de Métodos Alternativos (CEVMA, sigla em inglês: ECVAM) validou o modelo da Episkin para testes alternativos na União Europeia. O objetivo da L'Oréal era fazer os kits da Episkin disponíveis comercialmente para segurança, e agora, mais de 100 empresas cosméticas, farmacêuticas e químicas podem adquirir a tecnologia para testar a segurança de seus produtos.

Nadia Shakoor, uma pesquisadora que trabalhou na L'Oréal de 2005 a 2009 afirmou que a empresa já tinha eliminado testes em animais em seus produtos finais naquela época. Em vez disso, eles usavam uma combinação de pele humana e Episkin.

Ela afirmou que a Episkin poderia determinar traços como absorção, dispersão, sensação, mudança de cor e, de certa forma, irritação, mas, em razão de seu preço, eles optariam, com frequência, por testes em humanos em certas etapas.

Publicidade

A L'Oréal não comentou sobre os custos da Episkin, mas havia relatado anteriormente que se tratava de 70 dólares por amostra. Nos testes em humanos, os sujeitos receberiam um teste de contato de 48 horas em troca de uma compensação monetária.

"Pessoalmente, não gosto de saber que testamos em humanos", Shakoor afirmou. "Assim como todos os cosméticos, às vezes as pessoas têm alergias ou são sensíveis a certos componentes químicos, mesmo quando se tratar de somente 1 ou 2 por cento da população. Eu preferia ter testado em animais ou em peles substitutas como a Episkin do que em pessoas que, por precisarem do dinheiro, estão dispostas a colocar seus corpos e sua saúde em risco."

A L'Oréal continuou a desenvolver modelos de pele e alternativas aos testes em animais e humanos. Além da Episkin, a L'Oréal também comprou 81 por cento do capital social da SkinEthic, uma antiga competidora que utiliza outro método de reconstrução de pele, em 2006.

Outros pesquisadores também estiveram trabalhando para descobrir meios mais eficientes de produzir pele artificial mais próxima da verdadeira. Em 2009, o centro alemão de pesquisa Fraunhofer-Gesellschaft anunciou que estava desenvolvendo o primeiro sistema de produção automático de modelos de pele de duas camadas.

Jörg Saxler, um cientista do centro, explicou a demanda pela produção de pele em massa na época.

"A produção é complexa e envolve muito trabalho manual", ele afirmou em um comunicado à imprensa. "Mesmo as empresas estabelecidas internacionalmente não são capazes de produzir mais de 2.000 pedaços pequenos de pele por mês. E com a solicitação de mais de 6,5 milhões de unidades somente na UE, no entanto, a demanda industrial excede em muito toda a capacidade de produção disponível no momento."

Publicidade

Em 2011, a L'Oréal inaugurou uma instalação na França que produz 100.000 unidades de pele reconstruída por ano usando as duas tecnologias, e cada amostra tem 0,5 centímetros quadrados de tamanho. De acordo com Bloomberg, a L'Oréal utiliza cerca de metade da pele que produz para seu próprio trabalho e vende o restante para outras empresas cosméticas.

"O foco da L'Oréal está em continuar a ampliar a eficácia e a replicação consistente do processo de engenharia da pele."

Em março de 2013, a L'Oréal afirmou que pretende eliminar o teste de seus produtos e ingredientes em animais. O anúncio veio um ano após o lançamento de sua Incubadora de Tecnologia estabelecida nos laboratórios de pesquisa e inovação da empresa, que desenvolver tecnologias novas nessa área e em outras.

Além de modelos de pele reconstruída, a empresa também utiliza análises preditivas, incluindo programas de computador e projetos assistidos por computador de moléculas químicas para estimar como os ingredientes vão interagir e afetar os humanos.

"A L'Oréal acredita que o futuro da avaliação da segurança reside no desenvolvimento de estratégias alternativas e 'preditivas'", afirma o website da empresa a respeito dos testes em animais. "Essa abordagem está fundamentada no progresso científico substancial feito nos campos dos modelos de pele reconstruída, modelagem molecular e processamento de dados de alto desempenho."

O CAMINHO PARA A PRODUÇÃO DE PELE EM MASSA

Publicidade

Organovo é a mais nova companhia que a L'Oréal a se voltar para essa abordagem. A empresa de medicina regenerativa foi fundada em tecnologia de bioimpressão na Universidade do Missouri-Columbia, em 2005 e incorporada oficialmente em 2007.

A Organovo trabalhou para desenvolver uma variedade de tecidos humanos utilizando tecnologia de bioimpressão no passado, incluindo o tecido hepático para testes toxicológicos. A Organovo realiza muito de seu trabalho por meio de parcerias com empresas, mas essa é a primeira vez em que sua tecnologia será usada na indústria da beleza.

"Todos os nossos tecidos são feitos de células humanas", a Organovo disse ao Motherboard. "É melhor pensarmos nisso como um tecido humano bioimpresso em 3D."

A bioimpressora da Organovo tem 18 por 24 polegadas e cabe em um armário de biossegurança padrão para manter todas as células e tecidos estéreis. Ela retira células humanas vivas e as coloca em uma matriz 3D, onde podem crescer até virar um tecido funcional.

"No caso da pele, significa que é possível ter diferentes tipos de células em camadas, por exemplo, e diferentes quantidades de certos tipos de células em cada camada", afirmou um representante da Organovo.

Fotografia de um modelo de tumor de mama bioimpresso que se assemelha à pele bioimpressa em 3D vista pelo microscópio. Crédito: Organovo.

Recriar a pele requer um processo similar ao que a empresa usou para bioimprimir tecidos no passado, um representante da empresa informou, mas cada tecido novo tem uma curva de aprendizado.

"A pele tem características específicas que a fazem interessante, incluindo, é claro, diversas camadas, folículos capilares, células imunológicas e o fato de que ela está naturalmente exposta ao ar", informou um representante da empresa.

Publicidade

O representante disse ao Motherboard que, até onde se tem conhecimento, a Organovo é a única empresa que produz tecidos bioimpressos em 3D totalmente celulares. A L'Oréal terá direitos exclusivos à tecnologia de pele impressa em 3D da Organovo.

"Algumas das maiores vantagens em potencial da bioimpressão em 3D é a velocidade de produção, bem como o nível de precisão que a impressão em 3D pode conseguir", Guive Balooch, vice-presidente global da incubadora de tecnologia da L'Oréal, disse ao Motherboard. "Ainda estamos na fase de pesquisa preliminar da parceria, mas o foco da L'Oréal no momento está em continuar a ampliar a eficácia e a replicação consistente do processo de engenharia da pele."

A bioimpressora em 3D da Organovo. Crédito: Organovo.

Enquanto isso, outras empresas de cosméticos estão desenvolvendo suas próprias tecnologias. Em janeiro de 2014, a Procter & Gamble desenvolveu sua alternativa própria sem testes em animais para o teste de alergia cutânea. O método inclui a combinação de ingredientes de produtos com peptídeos que mimetizam tecidos epiteliais em pequenos tubos de testes e medem a reação.

A Unilever, a empresa por trás de marcas de cosméticos como Dove e Axe, investe três milhões de euros, ou 3,3 milhões de dólares por ano no desenvolvimento de alternativas para o teste com animais, incluindo modelos matemáticos para prever alergias cutâneas e outros métodos de predição.

As empresas também estão autorizadas a utilizar o teste de permeabilidade e opacidade corneal bovina e o teste de olho de galinha isolado, os quais reutilizam olhos de animais mortos para a alimentação em vez de usar animais vivos em testes para irritações oculares.

Outros fornecedores de cosméticos utilizam somente ingredientes já estabelecidos como seguros em seus produtos, eliminando a necessidade de testes em animais.

Apesar de a parceria com a Organovo estar no início, trata-se do último passo nos esforços para encontrar alternativas tecnológicas e acessíveis para o teste em animais. Como Shakoor observou, as alternativas atuais aos testes em animais têm um custo.

"É fácil reclamar quando se trata de animais, mas quando as organizações de direitos dos animais forçam a indústria a testar exclusivamente em humanos, isso também traz consequências", ela afirmou. "Ficarei muito feliz quando os testes forem validados para superfícies artificiais como a pele 3D."

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri