O Dragão e o Marciano

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O Dragão e o Marciano

“Ao menos estou criando vida para um mundo vivo, não uma armadilha mortal árida.”

Lokesh queria criar um dragão, mas ele não queria ser criado.

"Odeio dragões como Darwin odiava cracas", reclamou após sua 200ª tentativa malsucedida – um verdadeiro marco. A maioria dos organismos sintéticos foram para o laboratório depois da 30ª.

"Talvez você devesse deixar de lado syns de criptídeos", sugeriu Max. Lokesh havia criado uma reputação ao engendrar animais fantasiosos como grifos, pássaros-do-trovão e unicórnios, vendidos então para clientes endinheirados nos Claustros Globais. Deprimia Max ver tamanho talento desperdiçado com esse tipo de coisa.

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"Deixar os criptídeos e fazer o quê?", resmungou. "Mini-elefantes ou gatos que brilham? Pelo amor de Deus."

"É só que… É meio que um mercado de nicho", respondeu Max, evitando olhar em seus olhos.

"Disse o cara que faz aliens", zombou Lokesh. "Ao menos estou criando vida para um mundo vivo, não uma armadilha mortal árida."

"Discutível." Como se quisesse dar peso ao argumento, uma sirene soou à distância. Mais rebeliões nos campos.

Lokesh revirou os olhos. "O universo sempre cuida da gente", suspirou, girando sua cadeira para encarar sua última monstruosidade. "Mas que saibam que mesmo um mundo moribundo é melhor que um já morto."

"Pelo contrário", disse Max. Ele se esticou para pegar seu vidro de Fique-Bem. "Morto é melhor que moribundo. Um passo mais próximo do renascimento."


Por que ele fala essas coisas tão alto? Lokesh percorria o último lote de insetos. Renascimento? Não em Marte, meu irmão. A xaninha daquele planeta não vai parir uma civilização, não importa o quanto seu culto o idolatre. Olha só o que vocês fizeram com seu amado profeta.

Seu parceiro de laboratório estava certo sobre o dragão, porém. Ele teria que fazer dar certo na próxima tentativa, porque ir além de 200 seria constrangedor. A reputação tinha o levado àquele ponto, mas a SynWare não financiaria simulações inúteis de dragões para sempre. Ainda mais depois do fiasco com os unicórnios. Amadores. Ele balançava a cabeça, como se para agitar as memórias soltas. Se eles tivessem seguido meu modelo, ninguém teria sido chifrado.

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Olá, Micromegas martis. O micróbio simulado parecia agonizantemente calmo para Max, dormindo em seu útero binário. O sequenciamento do omatídeo continuava dando erros, mas isso não era um entrave. Mike não precisava de visão perfeita. Não é como se você precisasse fugir de predadores em Marte. Max deslizava cuidadosamente as pontas de seus dedos na tela, admirando os estiletes arqueados, a cutícula resistente à radiação, a completude segmentada.

Ele fuçava sua mesa em busca de mais Fique-Bem. Não faria mal dar fim no vidrinho. Afinal, hoje era um dia especial: Mike estava pronto para nascer. Assim que fosse feita a transferência, o primeiro esboço seria bioimpresso no decorrer da semana. O tempo para realização da tarefa era dos mais rápidos com a série Micromegas por já ser tão bem-estabelecida, com aplicações que iam do descarte de resíduos a fins farmacêuticos.

Max foi o primeiro a modificar o syn para astrobiologia fabricada, ao pedido de sua orientadora Ryoko Arden, criador do líquen Xanthoria martis. Conhecido comumente como Triplo-M – musgo milagroso marciano – o X. martis de Arden havia se provado uma potência na colonização de Marte. O líquen vomitava gases de efeito estufa sem fim, por toda a base dos Vales Kasei.

Para Max, isso era mais do que prova dos dons proféticos de Ryoko. Como ela tinha pregado tão fervorosamente, Marte era um mundo à beira do batismo cósmico. O Triplo-M era só o começo.

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Ele imaginou os descendentes de seu micróbio saltitando pela natureza marciana, se enchendo de líquens e curtindo um solzinho. Ao imaginar sua aventuras em micro-escala, ele ria alto.


Não tem nada mais assustador que um colega de cubo que ri histericamente em intervalos aleatórios. Lokesh sabia que felicidade não era um jogo de soma-zero, mas parecia que a tranquilidade exagerada de Max estava exercendo alguma força monstruosa sobre seu próprio equilíbrio psicológico.

Ou talvez ele só estivesse especialmente irritado porque seu dragão era uma cagada dos infernos. A simulação era um embaraço só de algoritmos, mordiscados por bugs no geneware. Ele havia chego mais perto do arquétipo no começo do projeto, há meses atrás, quando a coisa toda foi pras cucuias com uma simulação de um Quetzalcoatlus. Lokesh havia recriado modelo base com uma estrutura muito mais parruda usando o Novo Alfabeto Genético – mas ao custo do voo. Ele até conseguiu simular um focinho, processo já bem-estabelecido nas simulações de dinossauros.

Os chefões ficaram impressionados com aquele esboço. Era apenas o 14º.

Depois disso, os genes das penas lhe deram uma dorzinha de cabeça. Eles estavam incrustados muito profundamente para serem removidos por completo – a sequência completa entraria em colapso. Lokesh começou a ter pesadelos sobre uma criatura imbecil cheia de penas que tacaria fogo em si mesma com o próprio bafo. Synner Responsável Por Unicórnio Psicopata Revela Dragão Imbecil, diriam as manchetes. Bela forma de se arruinar uma carreira.

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Felizmente, ele havia descoberto que melanossomas iridescentes poderiam ser encaixados na sequência, gerando uma camada de penas cor de jade e mercúrio. A análise cosmético sugeriu que isto destacaria as escamas do dragão, ao contrário de afastar o olhar delas. O resultado seria um lindo e aterrorizante animal.

"Às vezes as limitações acabam virando benções", disse Max na época, seu cérebro claramente destruído pelo Fique-Bem.

Lokesh se encolhia automaticamente ao passo em que Max explodia em risos novamente, de forma quase infantile em sua alegria. Tenho que fazer este dragão dar certo, nem que seja para atacar ele.


A chefona Kulik, líder da equipe de vendas da SynWare sales, observou o Micromegas martis ao telescópio. Pelo que Max tinha ouvido, Kulik supervisionava todas as transações da SynWare com valores acima de um bilhão. Haviam boatos também que ela estava por trás da aquisição da LOLcorp, uma empresa com uma linha monstruosamente fofa de bichos de estimação sintéticos, de gatos-elfos à lontras de brinquedo. Ele se perguntava porque ela gostaria de ver de perto um syn microbial que vale só uns 50 milhões, ainda mais depois de a SynWare intermediado sua venda para o Éden Vermelho em antecipação.

Ela ajustou foco, "Este é o esboço final?"

"Sim", respondeu. "Outro conjunto de amostras já está à bordo da Kasei 7. Será lançado esta semana."

"Ouvi falar", disse, mantendo seu olhar firme nas lentes. Max assentiu desconfortavelmente.

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Após longo intervalo, Kulik se afastou com a cadeira e começou a reunir suas anotações.

"Belo trabalho com este pedido", disse. "Suponho que seja só para testes controlados?"

"Isso", respondeu Max. "Mike – digo, Micromegas martis­ – não será lançado 'na natureza' até que tenham certeza de que ele otimizará o Triplo-M". Ele sorriu.

"O trabalho de Ryoko está evidente aqui", ela disse, jogando uma bolsa do tipo mensageiro sobre o ombro. "Eu a conhecia também. Uma pena o que aconteceu. Não combina com ela."

"Não", ele concordou, de leve.

Após a partida de Kulik, Max tomou mais um pouco de Fique-Bem e se atirou ao microscópio. Ele observava todos os pequenos Mikes, nadando em seu mundinho, alheios à grandeza de seu destino. Nenhum deles preguiçoso ou desesperado. Nenhum questionava sua vontade de viver.

Então por que ela o fazia? Ryoko, líder do êxodo, que tanto acreditava no Éden Vermelho. Não muito depois de ter entregue o Triplo-M à sua nova casa, ela mesma se entregou aos braços da morte. Max lembra do infame relatório da equipe do Kasei 6. Eles só puderam observar, horrorizados, enquanto ela retirava seu capacete, sorrindo para o nascer do sol marciano enquanto o sangue fervia em suas veias.

"Vocês se darão melhor", disse Max aos Mikes. "Vocês não podem cair fora."


"Já estouramos o orçamento com esta abominação", disse Kulik. "Leiloe-o logo ou daremos um fim nele."

Lokesh ficou desconcertado. "Você quer largar um dragão em um comprador qualquer?", gaguejou, incrédulo. "Me dê mais um tempo e você estará licenciando projetos para todos os zoológicos syn do mundo! Até mesmo resolvi o problema do quociente Bombardier. Ele consegue cuspir fogo agora!"

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"E seus unicórnios conseguem empalar adolescentes", disse Kulik, seríssima. "Sim há um enorme mercado para criptídeos nos Claustros, sem dúvida. Mas sua última série de syns assassinos está nos matando. Os processos pesam mais que os lucros e agora que temos um problema com unicornes ferais, duvido que tenhamos visto o último – ou mesmo o pior – de nossos problemas legais."

"Dessa vez não será assim", disse Lokesh. "Consigo criar com parâmetros de segurança. Podemos fazer os compradores assinarem concessões."

"Desista ou saia da SynWare", repetiu Kulik. "Se quiser ficar, não exagere no próximo projeto. Faça um criptídeo dócil, pra variar. Tipo um jackalope. Ou um Pokémon."

Uma veia pulsava sinistramente na testa de Lokesh. "Meus syns não são mascotes locais ou modas infantis", disse lentamente, meio que rugindo. "As lendas nos deixaram estes monstros como legado, e eu os transformo em realidade. Eles trarão equilíbrio de volta ao mundo, como queriam nossos ancestrais. Você não entende a magnitude deste trabalho?" Ele se sentia como um deus primordial ao deixar estas palavras no ar, se aproximando de Kulik com passos decididos. Ela ficou parada, sem qualquer expressão.

"Vocês cretinos da SynWare não reconheceriam um gênio nem mesmo se ele queimasse essas suas caras feias", rosnou, "e espero que meu dragão faça isso".

"Acabou", disse Kulik, com um alívio palpável. "Em nome do conselho, estou dando início ao seu processo de demissão, por ter ameaçado um executivo. Com um dragão."

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Lokesh piscou incrédulo e deu um passo para trás, como se acordasse de um devaneio. Enquanto Kulik passava por ele, virou-se para ver a bioimpressão do quarto dragão, ainda jovem, preso em sua estéril jaula. 272 quilos de escamas e garras encolhiam-se sob seu olhar.


"Kasei 7, tempo."

"Operacional."

"Fido."

"Operacional."

"CAPCOM."

"Operacional."

"Orientação."

"Operacional."

Dez mil Mikes saracoteavam alegremente em seus cercados de petri.

Ten thousand Mikes blithely sauntered around their petri paddocks.


O dragão cuspia fogo mesmo. Lokesh tinha implantado sequências de gentes do besouro Bombardier, inseto capaz de lançar jatos quentíssimos de peróxido pela bunda, em seu palato. O fluxo era acendido por uma roda acionadora implantada nos dentes incisivos do dragão, pós-impressão, e sua boca e focinho eram protegidos por uma camada à prova de fogo de biomalha. Era um projeto realmente engenhoso. Até Kulik deve ter reconhecido isso.


"Propulsor K."

"Operacional."

"Propulsor M."

"Operacional."

"Aqui é o setor de voo, estamos prontos para decolar."

"Dez, nove, oito, set, seis…"

Dez mil Mikes se esbarrando como boias em um parque aquático.


No final das contas, Lokesh havia esquecido de levar em consideração a mais importante variável: como o dragão se sentia com esse negócio de ser um dragão. Era só um animal. Não rugia com majestoso terror, como os monstros das lendas. Era exatamente o contrário. O dragão tinha medo de seus poderes.

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Ele odiava o cheiro, o gosto e o calor alienígena daquelas chamas. Os cuidadores haviam retirado a roda acionadora e desligado quimicamente o reflexo Bombardier, mas as lembranças de seu bafo incendiário ainda assombravam a besta. Ela choramingava no canto enquanto Lokesh entrava na jaula.


"…cinco, quatro, três, dois, um …"

"Kasei 7, decolamos."

Dez mil Mikes, prontos para polinizar um planeta.


Lokesh queria criar um dragão. Mas o dragão desesperadamente não queria ser criado. Ele aproximou-se do animal trêmulo com passos calmos, e segurou sua linda cabeça em seus braços. O olhar em seus olhos cor de âmbar era devastadoramente infantil. Ele mal resistiu quando Lokesh cortou sua garganta com a roda acionadora, e manteve o olhar por muito depois do rio escarlate ter virado apenas um filete.

Max estava certo, pensou. Morto é melhor que moribundo. É um passo mais próximo do renascimento. E Lokesh decidiu agradecer ao seu colega por ajudá-lo a ver a luz.


Max convidou Lokesh para dormir em seu bunker até lhe passarem um novo trabalho. Seu desonrado colega havia perdido sua suíte junto com o emprego; ele acabaria indo parar nos campos, se não fosse assim.

Lokesh sentou no beliche extra, observando a casa sem janelas de Max. "Não quero forçar a barra", disse Max, oferecendo o vidrinho de Fique-Bem. "Mas isso aqui ajuda."

Lokesh fez cara feia, mas aceitou de qualquer forma. "Nunca experimentei", disse, ao despejar duas pílulas na palma da mão. Então as ingeriu, sem água. "Me falaram do lançamento", prosseguiu. "Você acha mesmo que uns bichos daqueles podem terraformar aquele inferno?"

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Max riu. "Não sei. Espero que sim."

Lokesh começou a rir também. Foi a primeira vez que Max o viu sorrindo, quanto mais vocalizando algo que parecesse alegria. "Sabe, nunca entendi", ele disse, "esse culto ao Éden Vermelho".

"Eu sei", Max sorriu. "Você não é lá muito sutil."

"Não, acho que não", ele admitiu.

"Digo, você literalmente chama a coisa de culto", disse Max, rindo.

"É um culto, literalmente", respondeu Lokesh. "E agora é um culto suicida também, já que Arden não se aguentou."

Max engoliu em seco. "Aceitei o que ela fez."

"Estava destinado ao fracasso", seguiu Lokesh, alheio. "Mesmo que se espalhe vida por lá, não será o bastante para sustentar a humanidade. É preciso gravidade, uma magnetosfera, pressão de verdade. Uma atmosfera só não resolve tudo."

"Não mesmo", disse Max. "Mas você está supondo que seres humanos fazem parte do plano."

"Agora eu não entendi mesmo."

Max lhe deu o vidro com os comprimidos de novo, e Lokesh aceitou agradecidamente. "Ryoko costumava pregar que o Éden Vermelho superaria o bíblico, porque era criado por humanos, não por algum Deus distante e punitivo". Ele balançou a cabeça e olhou para Lokesh. "Acho que final das contas, ela decidiu que era tudo a mesma coisa."

Lokesh deu de ombros. "Eu poderia ter te dito isso."

"Eu não teria ouvido", disse Max. "Fora isso, ainda sou um crente. Só porque os seres humanos não terão uma segunda chance não quer dizer que a vida não deveria ter. Talvez em um bilhão de anos os Mikes evoluam para algo melhor."

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"Aquelas proteínas SynWare fraquinhas?", resmungou Lokesh. "Duvido."

"Entretenha-me."

"Beleza", ele cedeu. "Acho que poderia acontecer."

"E o seu portfólio?" cutucou Max. "Havia um significado maior na criação de amaroks e unicórnios e dragões ou você é só um nerdão?"

"Não é óbvio?", zombou Lokesh. "Veja bem, ao contrário de você, aceitei nossa extinção iminente há tempos atrás. Tudo que queria era criar um anestésico."

"Isto aqui é o anestésico", disse Max, balançando o vidrinho de Fique-Bem. "Dragões são bestas infernais míticas."

"Não seja caipira assim", disse Lokesh. "Ninguém quer morrer assim. Quarentenas. Bloqueios. Planos de divisão de rações. Um apocalipse lento, chato. Até pros dinossauros foi mais divertido."

"Rápido e delicioso", concordou Max. "E não auto-inflingido."

"Exatamente", disse Lokesh, se levantando. "Queria dar às pessoas – a mim – um gostinho do medo do Velho Mundo. Desencadear nossa ancestral lembrança da magia, do monstruoso e belo, antes que todos morramos de varíola aérea, ou abates sorteados, ou overdoses de Fique-Bem."

"Tipo aquele lance de que a sua vida deveria passar diante dos seus olhos quando você morre", disse Max, sonhadoramente.

O corte foi rápido, mas limpo. E profundo.

"Exatamente assim", disse Lokesha. "Rápido e delicioso. E não auto-inflingido."

Max levou ambas as mãos à garganta. Ele parecia confuso, e então desamparado, e por fim, morto.

Bem mais fácil de matar do que o dragão.

O criador-de-dragões então tomou o resto das pílulas de Fique-Bem e revirou o bunker em busca de suprimentos, vagamente ciente do triste coro de sirenes ao fundo. Em algum outro lugar do universo, um rebanho de unicórnios selvagens pastava em um antigo aterro, e dez mil pequenos peregrinos dormiam em uma estrela cadente.


Este envio faz parte do ​Terraform​, nosso novo lar online para a ficção futurista. Arte de Patrick Savile.

Tradução: Thiago "Índio" Silva