​‘O Despertar da Força’ traz de volta a mística de Guerra Nas Estrelas

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​‘O Despertar da Força’ traz de volta a mística de Guerra Nas Estrelas

JJ Abrams explica só o suficiente para manter o público em transe.

JJ Abrams foi a pessoa certa para fazer o reboot de Guerra Nas Estrelas.

Apesar de ser uma longa homenagem, O Despertar da Força deixa bastante coisa nas entrelinhas e faz com que o universo da trama pareça algo no qual vale a pena mergulhar de novo.

Abrams é absurdamente bom em criar ações realistas. O filme trata menos de explosões, perseguições e tiros; o foco está mais mais em indivíduos aceitando as consequências daquela ação, mortal ou não.

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O diretor também não deixa o público descansar: ele deu ao filme uma sensação de tensão claustrofóbica que confere à série uma violência inexistente na franquia até então, algo inspirado no estilo dos filmes de terror mais do que eu poderia esperar. O Despertar da Força é o único da série em que senti temor. (Tal efeito foi ampliado por ver o filme em 3D – surpreendentemente bem planejado; também comi algum docinho de reggaeiro que era bem mais forte que o esperado, o que no mínimo contribuiu para que eu exclamasse vários "puta merda".)

Pessoas morrem em O Despertar da Força e com uma brutalidade nunca antes vista em Guerra Nas Estrelas. A franquia sempre suavizou o fato de que seus personagens estão lutando uma guerra. Tem gente alvejada e caindo, mas não assassinada na frente de um personagem ensanguentado diante do horror e da violência da qual fez parte.

A magia está em não explicar cada como ato mágico ou heroico se deu, e sim mostrar ao público o suficiente para que possam preencher os espaços em branco como quiserem.

Quando se lida com um enredo composto por um épico heroico relativamente comum – bem contra o mal, os heróis se fodem e então se dão bem – é essencial mostrar, não contar. A magia está em não explicar cada como ato mágico ou heroico se deu, e sim mostrar ao público o suficiente para que possam preencher os espaços em branco como quiserem. Não há digressão extensa sobre como o estilingue de Davi funciona; a noção de que ele é guiado por uma força divina é o bastante. Abordar a narrativa de forma religiosa foi o que elevou a trilogia original para além da série de filmes de ações surgidos posteriormente porque pedia ao público fé em algo que não tinha como ser explicado. Felizmente, Abrams está bem ciente de que Oz só é interessante quando as pessoas acreditam ter mesmo um mago por trás de tudo.

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Apeguei-me a Finn, interpretado por John Boyega não por sua pieguice (o cara vive com sede, convenhamos), mas por causa da sua respiração. Talvez ele seja o melhor ator de respiração pesada olhando para o nada desta era, e falo bem sério. Finn aceitando o que está seu redor – digamos que eu falei muitos palavrões quando ele aparecia – é um dos melhores momentos de mostrar-e-não-falar-nada. Eu não fazia ideia do que seria o personagem.

Isso não aconteceu nas prequels em que Lucas dava informação o suficiente sobre todos os personagens-chave a ponto de você não pensar no que aconteceria ou não se importar de verdade. Por outro lado, adoro o argumento de que Grand Moff Tarkin era a pessoa mais competente na trilogia original precisamente por causa da falta de conhecimento sobre sua história, o que possibilitava tamanha especulação. O fato de que Tarkin é um personagem descartável e com tanto peso é sinal da disposição de Lucas em deixar a história viver por si só. Se Tarkin estivesse nas prequels, teria acabado com uma cena estendida para contar uma história a) desnecessária e b) que não teria como competir com a imaginação dos espectadores.

Os saltos de fé inspirados pela trilogia original são a razão pela qual ainda falamos dela. George Lucas é um talentoso contador de histórias, claro, e mostra brilhantismo no desenvolvimento de personagem para desempenharem papéis com os quais sabe que o público se identificará. Mas a trilogia original tem um efeito tão duradouro por se assemelhar à poesia: ele deixou o suficiente nas entrelinhas para que qualquer um com paixão o suficiente possa interpretar da sua maneira. Ele é bem-sucedido o bastante na suspensão da crença nos momentos exatos para que os espectadores vejam o filme por meio de suas próprias lentes.

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É um sinal de confiança, e não um golpe no público, Lucas ter descrito as facções como luz e trevas e nada mais. Deixou, assim, um vácuo na história preenchido pelo mistério da Força, um dispositivo brilhantemente simples que ajuda os espectadores a examinarem o enredo de incontáveis ângulos, com uma liberdade que permite que a interpretação de Luke enquanto guerreiro religioso soe plausível o bastante.

Mas a trilogia original tem um efeito duradouro por se assemelhar à poesia: Lucas deixou o suficiente nas entrelinhas para que qualquer um com paixão o suficiente possa interpretar da sua maneira.

Contraste isso com as prequels, em que Lucas tenta construir um épico espacial que seria relegado aos extensos livros escritos por nomes como Peter F. Hamilton. Assisti as prequels pela 1ª vez em muito tempo no final de semana passado, e são bons filmes, ainda que um pouquinho vergonhosos. Nada nos filmes passa sem uma tentativa de explicação. Tomemos como exemplo o desvio absurdo feito por Obi-Wan para saber sobre o exército de clones. Ok! Podemos entender tudo aquilo sem uma tentativa longa de humanizá-los ao falar de sua criação, treinamento e qualidades semelhantes às de máquinas. Eles foram criados, literalmente, para serem autômatos sem rosto, e aqui estamos nós aprendendo mais sobre eles de forma a eliminar qualquer mistério. "Não pense em mais nada, olha aqui como funciona", é o que Lucas parece dizer, esquecendo que a imaginação foi o que fez tudo funcionar em primeiro lugar.

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Mesmo em quase sete horas de filme, Lucas segue incapaz de fazer jus à rocambolesca história empreendida por si mesmo. Em vez de deixar a religiosidade inerente da série transparecer – estamos falando de guerreiros mágicos da justiça defendendo o universo do mal em estado bruto, meu deus – os filmes se perdem no histórico de uma saga da qual já sabíamos o final. Não há maior indício dessa obsessão inacabada sobre detalhes do que Lucas explicando a força, parte mais importante da mística da série, com uma referência porca e inexplicável à biologia sem sentido dos midichlorians.

As prequels eram a enciclopédia de Lucas, o lugar em que tentou responder a todas as perguntas deixadas pela trilogia original. O Despertar da Força não se preocupa com sua razão de ser, apenas é. Ao passo que o filme é cheio de referências à trilogia original, é através do seu novo senso de propósito teológico, e a incrível habilidade de Abrams em criar momentos com os personagens que parecem muito pessoais que O Despertar da Força traz de volta a mística dos originais.

Dando força àquelas trevas não está um político acima da média com sangue mágico em um mar cheio de incompetentes, mas sim a ideologia. O filme é desavergonhadamente religioso: como se não bastasse o sabre de luz em forma de cruz de Kylo Ren, a Primeira Ordem, os novos vilões, tornaram o louvor ao lado negro da Força uma experiência realmente digna de igreja. E não estou dizendo que o Papa é do mal, mas não há como negar que a instituição carrega um peso que parece muito com monges entoando cânticos na sua cabeça. Abrams pegou essa sensação e a colocou na figura do Supremo Líder Stoke, uma força do lado negro que parece menos previsível e ainda mais perigosa que no passado. Darth Vader metia medo nos seus, e o Imperador é um operador político que acaba agindo nas sombras. Stoke, que fica de boas num dos templos mais assustadores que já vi, é um cara que pode inspirar as hordas a lutarem uma guerra santa.

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Há uma cena em O Despertar da Força que se baseia em luz suave vindo de uma janela – aqui que a coisa fica de igreja mesmo – que poderia muito bem parecer exagerada. Mas como tudo fica a cargo da imaginação e não foi dito explicitamente em um longo monólogo, a luz ali é menos clichê e mais um ponto de virada visual para a especulação que completa a história.

A ênfase do lado negro em decoração e apresentação geral preta roubada do visual dos nazistas sempre foi um negócio meio forçado, mas aqui, este visual é equilibrado com um climão roubado de uma catedral antiga assustadora. O foco na imagem religiosa inerente à cinematografia dá uma sensação de força anciã, infraestrutural, e que tudo sabe que o Império nunca teve. E como a Força parece menos um truque barato – olha, dedos que dão choque! – e mais um poder zeloso, pela primeira vez, o lado negro parece mesmo coisa ruim.

O filme é realista, algo que há muito era necessário; como primeiro na nova trilogia, ele se dedica a estabelecer mais o lado negro do que o luminoso, o que só contribui para sua intensidade. Mas a razão pela qual parece um filme da série e não um título de ação qualquer, é o fato de que Abrams conseguiu colocar o máximo de narrativa nele sem a necessidade de diálogos sobre a ação com explicações meia-bomba. Sim, Han Solo é rei da Sarcasmolândia e Kylo Ren é o Cara Mau Muito Mau, já Rey foi feita de forma a não deixar claro o que é, o que é ousado à sua maneira. Mas suas histórias se juntam de forma a fazer tudo parecer mais coisa divina do que um conto sobre intriga política jamais poderia.

Fazer um épico heroico legítimo significa deixar o público preencher os espaços em branco um pouco, e ao fazer isso Abrams criou um filme amplo em que tanta coisa doida rola – sério, não tem pausa pra respirar – sem estraga-lo.

Em seu âmago, Guerra Nas Estrelas tem uma premissa profundamente boboca: um grupelho de guerreiros religiosos defende o universo inteirinho graças a uma força mística que é uma espécie de amálgama de todas as teologias de guerreiros de todos os tempos. O único jeito disso dar certo é sem pensar muito, porque o públcio tem que comprar a ideia. (Dito isso, tem uma cena em que o diálogo é tão forçado que surtei rindo).

Creio que ao assistir o filme novamente, talvez fique cansado da falta de sutileza na série de homenagens à trilogia original, mas todas as piadas forçadas logo dão lugar ao filme que foi feito para restabelecer a boa fé da série e criar espaço para uma nova saga. Não faço ideia do que vem por aí, e isso é ótimo.

Tradução: Thiago "Índio" Silva