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Tecnologia

O Dentista Forense Que Está Ressuscitando Cadáveres Não-Identificados no México

Quais os ingredientes para chegar ao processo? "Água", diz, sorrindo, o doutor Alejandro Hernández Cárdenas.

CIUDAD JUÁREZ – O corpo tem um formato marcante. Ele está morto há dois anos – vítima de atropelamento e fuga, me disseram, deixado sangrando ao lado de alguma estrada empoeirada numa cidade fronteiriça do México com os Estados Unidos. O acidente fez um furo em sua testa. De onde eu estou, debruçado sobre uma maca na qual seu corpo está esparramado com as mãos deitadas sobre seu quadril, eu posso ver seu cérebro em conserva.

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Se eu já não soubesse da verdade, poderia dizer que ainda há vida nesse homem.

Faz 120 horas desde que o doutor Alejandro Hernández Cárdenas começou o trabalho. Foi nessa altura que Hernández Cárdenas, um modesto dentista local que divide seu tempo praticando sua profissão e ensinando cursos de odontologia forense na Universidade Autônoma de Ciudad Juárez, submergiu o corpo seco pelo sol e nodoso desse homem no que ele carinhosamente chama de Jacuzzi.

O tanque translúcido do tamanho de uma banheira comporta até 60 galões (pouco mais de 227 litros) de uma fórmula química desconhecida – o caldo secreto de Hernández Cárdenas – que reidrata corpos para identificação. Nós acompanhamos essa vítima de atropelamento com fuga, um homem mais velho cujo corpo Hernández Cárdenas escolheu a dedo de um dos refrigeradores de cadáver municipais, durante o curso de uma semana de trabalho enquanto mergulhado na Jacuzzi.

Ao longo do processo, o doutor e sua equipe vêm catalogando e todas características reconhecíveis, como cicatrizes, pintas, tatuagens e feridas, que voltaram à luz através do método de Hernández Cárdenas. Depois, eles preparam as mãos revividas da vítima para tirarem sua impressão digital.

Baseados nessas impressões digitais e em conjunto com a evidências combinadas de todas características únicas restauradas graças ao processo de Hernández Cárdenas, esperamos ter uma ideia de quem esse homem era. Ao menos essa é a ideia.

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Esse jarro de água tridestilada foi o único ingrediente nessa solução que Hernández Cárdenas nos permitiu filmar. Imagem: Brian Anderson/ MOTHERBOARD

É um salto forense que chega para reformular a ciência criminal como a conhecemos. A ideia, em resumo, é voltar brevemente no tempo, transformando um corpo com aparência de uma múmia encolhida a algo muito mais parecido com um saco de carne e osso morto recentemente.

Quando você morre, seu corpo passa por sete estágios de decomposição. A técnica proprietária de Hernández Cárdenas supostamente reverte dois desses estágios, restaurando efetivamente um corpo para seu estado natural. Há o estágio cinco, ou putrefação, quando as proteínas em seu corpo se desfazem a ponto de seus tecidos e músculos apodrecerem. E há o estágio seis, ou a decomposição propriamente dita, quando a água restante em seu corpo se seca. No terreno deserto árido e varrido pelo vento ao redor de Juárez, a combinação mortal desses dois fatores rapidamente torna um corpo ainda quente em uma múmia.

É quando a técnica de Hernández Cárdenas, cuja patente ainda está pendente, entra em cena. Como ele nos conta, um mergulho completo em sua infusão pode revelar a identidade real de um corpo e até a causa de sua morte.

Ele passou as últimas duas décadas reparando as imperfeições, começando com os dedos, e então orelhas, mãos, braços, cabeças e em um caso uma camada toda de pele, até que um dia um escritório local de promotoria criminal perguntou a ele por que ele não tentava a técnica em um corpo inteiro.

Isso foi em 2008. Hernández Cárdenas agora é uma pequena celebridade no mundo de ciência criminal. Ele já fez centenas de reidratações parciais de corpos, e até agora executou por volta de uma dúzia de submersões de cadáveres na Jacuzzi. Ele está criando uma infraestrutura de baixa tecnologia para um dia ampliar sua técnica, na busca de resolver crimes e identificar os não-identificáveis para muito além do México, cobrando 60 dólares pelos produtos químicos necessários para conseguir uma submersão de corpo inteiro.

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 “O que vai na sua solução?”, perguntei.

“Água”, ele diz, com um sorriso amarelo.

Para garantir uma distribuição uniforme na infusão da Jacuzzi do doutor, é  preciso virar os corpos a cada oito a 12 horas. Aqui está Hernández Cárdenas virando um corpo depois de 72 horas. Foto: Brian Anderson/MOTHERBOARD

Ninguém sabe exatamente o que vai dentro dessa infusão, ou exatamente como ela funciona. Hernández Cárdenas toma cuidado para não divulgar nada específico sobre seu truque frankensteiniano. Se seu pedido de patente for aprovado, ele está para se tornar o pai de uma nova era da ciência forense, e também ganhar algum dinheiro. Até onde sabemos, sua solução é mesmo só água.

Dito isso, ele não está sozinho nesse jogo. Em 2005, pesquisadores forenses americanos da Universidade do Sul do Mississipi obtiveram uma patente para uma técnica similar de reidratação, porém apenas para obter impressões digitais de pontas de dedos reidratados.

Isso é parte integrante do trabalho de reidratação de escala relativamente pequena sendo desenvolvido no Consultório de Medicina Legista de Pima County (PCOME, em inglês) em Tucson,  Arizona, a mais ou menos quatro horas a oeste de Juárez. Esse é indiscutivelmente um antro de casos envolvendo pessoas não-identificadas encontradas mortas nas areias do lado americano da fronteira – desde 2001, mais de 2.000 pessoas morreram tentando entrar no Arizona pelo vasto Deserto de Sonora, segundo o jornal The New York Times – e coloca o PCOME na posição única de ter sido pioneiro na técnica revolucionária de reidratação das papilas dérmicas das pontas dos dedos.

A técnica PCOME, como é chamada, usa hidróxido de sódio, um composto inorgânico altamente cáustico, comumente conhecido como soda cáustica. É um balé delicado, de acordo com o doutor Bruce Anderson, antropologista forense que trabalha no consultório e que vem aperfeiçoando essa técnica inovadora há pelo menos uma década. O hidróxido de sódio incha o dedo ou mão até certo ponto, antes de os dissolver inteiramente. Se você deixar esse dedo ou mão mergulhados por muito tempo no hidróxido de sódio, a evidência simplesmente desaparecerá.

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Esse é o risco que você corre. Você tem que poder reconhecer quando for o suficiente, quando for hora de tirar o dedo ou a mão, para então serem secos e pintados para poderem tirar a impressão digital.

O hidróxido de sódio pode muito bem ser parte do processo de Hernández Cárdenas. Mas isso não passa de um palpite nosso. Quando perguntei a Anderson se o laboratório de Tucson cogitaria fazer uma hidratação de corpo inteiro, seja em hidróxido de sódio ou qualquer outra coisa, ele expressou reservas.

“Logisticamente é muito difícil”, Anderson disse. “Eu não nos vejo indo tão longe.”

Do ponto de vista de Anderson, ao menos que você esteja procurando por pintas, cicatrizes e tatuagens, não faz sentido enfiar um corpo inteiro num tonel de soda cáustica. Além disso, continua, “não temos um lugar para colocar contêineres do tamanho de banheiras para 20, 30, 40 pessoas que poderiam se beneficiar disso”. Ele acrescentou que não sabe da existência de nenhum consultório de medicina legista nos Estados Unidos realizando hidratações de corpo inteiro.

A doutora Elizabeth Gardner, pesquisadora forense da Universidade de Alabama- Birmingham, corroborou essa alegação. Ela também disse que não conhece ninguém nos Estados Unidos que esteja fazendo reidratação de corpo inteiro ou pesquisas semelhantes ao de Hernández Cárdenas. Gardner é, no entanto, uma das poucas pessoas na comunidade forense internacional que viu um corpo mumificado sendo reidratado na Jacuzzi de Hernández Cárdenas, no laboratório forense de Juárez.

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“Foi bem incrível.  Parecia um corpo relativamente fresco”, Gardner se relembra. “Eu acho que ele faz um ótimo trabalho.”

Uma cultura de morte arrebatou grande parte do México. Em santuários discretos por toda Juárez, assassinos de cartéis de médio porte, bem como civis, fazem oferendas à Santa Morte, a santa folclórica reverenciada como a personificação da morte. Foto: Brian Anderson/MOTHERBOARD

Pode ser que nunca saberemos como Hernández Cárdenas faz o que faz. Mas o que sabemos é que seu trabalho lhe cai como uma luva.

Juárez pode até não ser mais a cidade mais perigosa do mundo, um título que  levou até o recente ano de 2009. Mas a cidade não é estranha à morte. Ela fica na intersecção de um cobiçado local de contrabando de drogas (cerca de 90% da cocaína que chega aos Estados Unidos atualmente é levada por meio de mulas pelo México, imagine só), um terreno de despejo de mulheres trabalhadoras exploradas, e uma travessia intensa de imigrantes.

Para dar uma ideia geral do alcance desse derramamento de sangue: quase 140 mil homicídios foram registrados no México entre 2007 e 2013, de acordo com os números da Comissão Nacional de Segurança Pública do México e do Instituto Nacional de Estatística, Geografia e Informática.

Os números americanos pintam uma figura similarmente trágica: os Relatórios Nacionais de Práticas de Direitos Humanos de 2013 do Departamento de Estado dos Estados Unidos colocam os números de pessoas desaparecidas no México entre 2006 e 2012 em 26.121. De todos os cadáveres não-identificados e fechados em sacos para cadáveres e estocados em congeladores no necrotério ou postos para descansar em túmulos em massa ao redor do México, o relatório acrescenta, 7 mil remetem àquele mesmo período de seis anos, a época mais sangrenta na contínua guerra contra as drogas.

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Se essa onda de violência possibilitou o surgimento de alguma coisa, foi o surgimento de uma classe de especialistas em vários campos, de balística e analistas corporais à odontologia forense, muitos dos quais olham a Hernández Cárdenas como um tipo de mentor. A questão é, então, por que ele faz o que faz? Por volta da marca das 96 horas, depois de virar o cadáver na Jacuzzi, o doutor nos levou ao Panteão Municipal San Rafael, um túmulo em massa alastrado na periferia de Juárez. Aproximadamente 5 mil corpos estão enterrados lá, muitos deles não-identificados. Se um cadáver está suficientemente putrificado, ele será automaticamente marcado como não-identificado, e mesmo se o corpo eventualmente for identificado, por razões de segurança os restos mortais devem ficar no mesmo lugar por cinco anos.

E, no entanto, à medida que os cadáveres são identificados, famílias podem prestar homenagens para seus entes queridos. É a vontade de pôr um senso de encerramento às famílias em luto, deixadas muitas vezes durante anos com pouca ou nenhuma ideia do que pode ter acontecido com um de seus entes, que impulsiona Hernández Cárdenas a continuar pagando de seu próprio bolso (e, veja bem, na cara da violência contínua e do espectro de cartéis de drogas) para demonstrar o valor real de seu método. Em alguns casos, ele me disse, pode significar que a família terá a oportunidade de realizar um funeral de caixão aberto.

Nosso cadáver se espalhou durante um exame completo pós-Jacuzzi. Foto Brian Anderson/MOTHERBOAD

O doutor autoriza que eu toque o rosto da vítima. Seu nariz, bochechas e lábios estão inchados, aparentemente revigorados. Os dedos, juntas e membros estão maleáveis. Eu consigo ver pequenas cicatrizes e marcas causadas pelo acidente. Seus antebraços estão cheios de cicatrizes de feridas auto-infligidas, e rabiscados por incontáveis tatuagens grotescas, o tipo de tatuagem que você ganha depois de perder uma briga na prisão. Uma delas carrega uma semelhança impecável com um pênis ejaculando. Outra, em uma das pernas do homem, diz: “memórias tristes”.

Essas marcas– as características naturais, as feridas, as tatuagens amadoras de cadeia, as impressões digitais – serão as evidências cruas sobre as quais investigadores criminais vão olhar com atenção no intuito de colocar um nome para o rosto. Se eles encontrarem uma equivalência, autoridades vão avisar as famílias da vítima. Se nada aparecer, ele vai encontrar seu local de descanso final num túmulo não identificado. O que quer que aconteça,  Hernández Cárdenas continuará acumulando um tipo de trabalho macabro, ainda que redentor.

Três meses depois de termos visitado Hernández Cárdenas e observado seu processo de reidratação de corpo inteiro pessoalmente, fomos informados de que um equivalente foi encontrado baseado nas impressões digitais retiradas das mãos reidratadas da vítima. Sua família foi informada. Isso faz desse o terceiro caso resolvido de pessoas desaparecidas não-identificadas, um resultado da técnica de corpo inteiro do doutor.

Tradução: Julia Barreiro