Do Avatar para a Vida Real
Veronica relaxa na praia de Second Life. Crédito: cortesia de Veronica Sidwell

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Do Avatar para a Vida Real

Como o avatar de uma mulher trans em Second Life impulsionou sua transição de homem para mulher.

​Eu conheci Veronica Sidwell, o avatar, em um mirante branco ao lado de Alamo. Durante nossa conversa, que passou por história americana até terapia hormonal, o sim olhou na direção das ruínas do local turístico mais popular do Texas. Aqui, no mundo virtual do Second Life, no universo online 3D de Linden Labs, estávamos sozinhos

Veronica estava vestindo um cardigã bordô conservador. Seu cabelo estava preso em duas partes com penas no topo de sua cabeça. Apesar de sua postura caída, Veronica me confidenciou que, depois de seu tempo no tranquilo no cenário digital de Second Life, ela nunca mais se sentiu confortável em sua própria pele.

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Originalmente, Veronica era meramente um avatar. Agora, Veronica Sidwell é uma transmulher de 37 anos trabalhando como molduradora de fotos em Atlanta, Georgia. Veronica, que não revelou o nome sobre o qual viveu a maior parte da vida, mudou legalmente seu nome para combinar com seu avatar de Second Life. Foi um gesto de respeito ao simulador que a ajudou a criar coragem para se transformar de mulher para homem na vida real. A experiência de Veronica com um avatar com corpo feminino no mundo virtual, ela me disse, a convenceu de que ela viveria uma vida mais completa e feliz em uma forma feminina.

Em um contexto de papéis, os usuários de internet são frequentemente encorajados a mudar de rosto, adotar qualidades e identidades diferentes das próprias. Em 1995, a professora de cultura americana Lisa Nakamura, nomeou o termo de "turismo de identidade" ao mundo digital. Nakamura​ escreveu que na "alucinação consensual definida como ciberespaço", participantes tinham um controle sem precedentes sobre suas representações. "Turismo de identidade", para ela, referindo-se às mini férias de identidade que as pessoas tiram em plataformas de papéis digitais.

Mas para Veronica e muitos como ela, "turismo" é um termo muito superficial para descrever quanto somos fortemente afetados pelos nossos eus digitais, o quanto deles carregamos conosco depois de nos afastarmos de nossos teclados.

Como nossas encarnações digitais, avatares são mais do que um amontoado de pixels em nossos laptops. Nós podemos vesti-los em nossas roupas. Podemos alimentá-los com nossas comidas favoritas e colocar nossas palavras em suas bocas. Mas ao invés de agirem como perfeitos espelhos da nossa vida no mundo real, avatares podem pular fora do copo para serem e fazerem coisas que nós não podemos no cotidiano. Para algumas pessoas, é empurrar um machado de dois gumes na barriga de um dragão. Para outras, é possuir um corpo do gênero oposto. Como uma identidade alternativa.

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Os dias acumulados que Veronica passou como um avatar de corpo feminino, deram a ela habilidade de explorar sua identidade feminina de formas impossível na vida real. A confiança e o autoconhecimento de que ela ganhou na segunda vida foram trazidos para sua primeira. Ela nunca se sentiu tanto ela mesma.

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Veronica sempre soube que era trans. Mas ela nunca pensou que ela poderia "passar" por mulher. Seus traços nítidos, ela preocupava, provocaria risadas quando ela usasse maquiagem. "Para muitas pessoas transgênero", ela me disse por chat de voz no Second Life, "sair em público pode ser uma coisa assustadora. Você corre o risco de atrair risadas e, em casos extremos, ser atacada."

Second Life foi um "espaço seguro" para ela; uma realidade amigável anônima, em que ela podia usar um vestido e mostrar o rosto – com traços mais delicados – em cafés no Second Life, clubes e lojas. Tudo que Veronica precisava para ser ela mesma estava ativado em bares customizados.

Sua vida no jogo a permitia oportunidades sem precedentes para ela experimentar em sua segunda pele. Com trepidação, Veronica entrou em alguns grupos transgênero dentro do jogo, onde avatares de indivíduos trans se encontravam em casas do Second Life para socializar. Ela começou a discotecar em clubes virtuais de música punk. Em um hotel virtual, ela se encontrava com amantes com quem ela tinha experiência sexuais.

"Quando eu loguei", ela disse, "eu não tinha que me preocupar com 'passar por' uma mulher. Eu podia ser eu mesma. Me encorajou a perceber que é algo que eu queria viver na minha vida real e não só na minha segunda vida".

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Alguns meses depois de fazer seu avatar, Veronica começou a procurar no YouTube vídeos sobre injeções de hormônio. Ela percebeu que ela se sentia em casa em sua pele feminina, e depois de mais alguma pesquisa, finalmente se sentiu entusiasmada para continuar sua transição. Em 2012, Veronica voou para a Tailândia para a cirurgia de reconstituição de sexo. Hoje, ela está há quatro anos e meio em terapia hormonal. Ela mudou seu nome para Veronica Sidwell, a marcação de seu avatar, já que ela sempre amou o nome.

Veronica fuma um cigarro em frente da zona "Fallen New York" em Second Life. Crédito: cortesia de Veronica Sidwell

Em 1995, dois anos antes de Origin Systems lançar seu primeiro comercial MMORPG (massively multiplayer online role-playing game), Ultima Online, Nakamura previu quão libertadoras – e quão opressivas – as identidades podem ser.

Focando no jogo de personagens baseados em textos LambdaMOO, uma comunidade virtual online, Nakamura dividiu os jogadores brancos que escolheram escrever qualidades asiáticas estereotipadas em suas descrições de jogador. Empunhando espadas, roupas de samurai e outros estereótipos "orientais" (ou pior, um quimono solto), esses jogadores exploraram o "exótico" sem enfrentar o racismo que os asiáticos enfretam todos os dias no mundo real. Nakamura lamentava como a realidade virtual se transformou em um lugar onde estereótipos abusivos eram reforçados, ao invés de um lugar para exploração de uma identidade positiva – um lugar onde indivíduos poderiam se separar das pressões sociais do mundo real.

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Hoje, a visão de Nakamura tem sido baixada nas cabeças de milhões de jogadores. MMORPGs e mundos virtuais como Second Life permitem usuários diferentes acessarem milhões de identidades para visitar, algumas das quais, me contara, são as que eles suportam para o resto de suas vidas.

Nick Yee, um psicólogo de mundos digitais que se inspirou muito em Nakamura, é a última pessoa a ficar surpresa com o fato de que carregamos nossos eus avatares para a vida real, e vice versa. Ele gastou 10 anos pesquisando quão fina é a barreira entre nossos eus na vida real nossos corpos virtuais.

Em cinco anos, Yee pesquisou 35 mil jogadores de MMORPG em suas experiências dentro do mundo. Acontece que mais de um quarto dos jogadores de MMORPG veem seus avatares como versões idealizadas de si mesmos. Assim como quase metade desses jogadores acreditam que seus avatares são extensões deles mesmos. Uma média de 20 horas por semana gasta na forma de avatar, Yee sustena, pode confundir o limite entre seu eu verdadeiro e seu eu digital.

Em 2007, Yee cunhou o termo "The Proteus Effect" ("O Efeito de Proteus", em português). Proteus, seu homônimo, foi um deus grego que transformou sua aparência, alterando sua auto representação. Para Yee, o termo se refere a quanto os humanos alteram suas auto representações através de avatares: enquanto pessoas se debruçam sobre suas reencarnações digitais, suas reencarnações digitais têm impacto em suas vidas diárias.

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Para sustentar a ideia de que o comportamento no mundo real pode ser impactado pelos avatares, Yee conduziu um estudo no qual ele ligou a cabeça dos participantes a dispositivos de realidade virtual. Usando CVEs (ambientes virtuais colaborativos, em português), Yee seguiu os movimentos e olhares dos participantes na vida real e transformou-os em paisagens virtuais através de avatares. Alguns avatares eram bonitos e com bochechas altas e olhos e pele claros. Os rostos de outros eram esticados, em baixa resolução e de nariz arrebitado.

Confiança, parece, pode ser osmótica, transferida do digital para a carne e osso.

Yee descobriu que os participantes com avatares mais atraentes ficariam pertos de outros avatares e divulgariam mais informação pessoal – sinais de confiança. Em um estudo relacionadom Yee deu aos participantes avatares altos. Já que altura é considerado um indicador de competência, quando dada uma tarefa de negociação, avatares maiores negociariam com mais agressividade. Dessa forma, Yee provou que a aparência do avatar afeta como o utilizamos.

Mas Yee deu um passo à frente. Ele estava curioso para saber como a autoestima dos participantes ficaria depois de desligar do CVE. Após tirar óculos de realidade virtual dos participantes, Yee pediu-lhes para preencher um estudo "não relacionado" de namoro online. Eles foram convidados a escolher dois rostos de pessoas no site em que eles estavam mais interessados em conhecer. Os participantes, que tiveram avatares mais atraentes pegaram parceiros mais atraentes, demonstrando a sua opinião levantada de si inspirada pelo seu avatar.

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Confiança, parece, pode ser osmótica, transferida do digital para a carne e osso.

Laura Kate Dale, uma escritora na Inglaterra, escreveu um artigo tocante para o Guardian ano passado sobre como World of Warcraft facilitou sua transição de gênero de homem para mulher. Ela vinha questionando sua identidade de gênero antes de descobrir WoW, mas nunca teve um espaço seguro para explorar suas incertezas.

Quando a puberdade chegou, Dale sabia que alguma coisa não estava certa. Seu novo proeminente pomo de Adão e pelos na cara a enojavam. De primeira, isso frustrou seu desejo de socializar, e logo, se tornou em uma agorafobia. Ela sabia que ela tinha atração por mulheres, e apesar de suas qualidades de gênero queer, ela também sabia que o termo "gay" não parecia encaixar.

O personagem de Dale em WoW, uma mulher paladina, foi uma versão idealizada de como ela queria ver a si mesma. Durante o verão de 2006, Dale se jogou em WoW e em seu novo corpo digital feminino. Ela conversava diferente com estranhos, ela disse, com animação e confiança. Quanto mais ela jogava, menos confortável ela ficava com sua aparência no mundo real e mais ligada ela ficava a seu avatar. Vivenciar seu gênero no espaço seguro virtual, ela disse, a ajudou a perceber que a transição era algo que ela queria.

"Um dos grandes problemas eu enfrentei em termos de identidade de gênero é que, quando você diz às pessoas que está tendo problemas com a identidade de gênero, as pessoas rapidamente encaram como algo com o qual você está se comprometendo. Todas as consequências negativas de vêm junto com se assumir transgênero acontecem rápido", ela me contou. "Quando você diz que não tem certeza e quer experimentar com apresentação de gênero, muitas bolas começam a rolar rapidamente. É tão assustador."

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World of Warcraft ofereceu a Dale a liberdade de experimentar sem sofrer julgamentos de seus pares. Foi um ambiente livre de consequências para ela se apresentar como mulher. "Se eu me apresentasse como mulher e não me sentisse bem", ela me disse, "eu poderia parar de usar a conta e nada aconteceria."

Em 2012, ela começou sua transição. Ela gastou os últimos três anos na terapia hormonal. Assim como Veronica, o tempo de Dale dentro de seu corpo feminino digital influenciou seu desejo de viver como mulher fora do mundo virtual.

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Alguns perguntam se avatares, e não apenas identidades virtuais no geral, são condutores de revelações de identidade. Avatares são normalmente humanoides, nos implorando para nos transferirmos para formas pixeladas. Mas de acordo com o antropólogo digital, Tom Boellstorff, Facebook, Twitter e até nosso Skype podem ser igualmente vias de exploração de identidade.

"Temos muitas representações de nós mesmos online", me disse Boellstorff. "Bem todo mundo tem braços e pernas – por exemplo, um perfil de Facebook". Na sua opinião, quem é você no Facebook – o resumo total de tudo que você já postou – pode ser mais detalhado do que um corpo de avatar.

Em 2008, Boellstorff escreveu Coming of Age in Second Life, uma antropologia do mundo digital. De primeira, o livro parece uma ode ao avatar, uma exploração de como aprendemos e crescemos com corpos digitais. No entanto, Boellstorff está desencantado com a ideia de que nossos eus virtuais precisam de rostos para refletir nossas identidades e desejos. Ele disse que não precisamos de formas pixeladas quando podemos ter formas em texto.

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Ele reconhece que avatares customizados permitem jogadores a oportunidade de explorar a vida em outro corpo. Mas ele também acha que há um poder incrível no anonimato.

O Facebook que até recentemente facilitou uma startup de game chamada Cloud Party. Mas porque o Facebook é ligado aos seus amigos, família e colegas de trabalho, Boellstorff disse, ele se opões a uma experimentação de identidade.

"Se você acha que pode ser transgênero e vai até o Cloud Party assim, alguém pode dizer, 'Ei, Tom, por que você está usando um vestido?'" Por causa das ramificações da vida real do Facebook, não é uma boa via para isso. Pior, a política de "nome verdadeiro" do Facebook, que impediu drag queens de colocarem seus nomes nas contas de mídias sociais, não se permite ser um escape produtivo.

Apesar da visão não sensacionalista de Boellstorff do mundo virtual 3D e dos avatares, ele admitiu que as qualidades imersivas podem ser poderosas para usuários que buscam expandir seus horizontes.

Na verdade, ele recentemente recebeu 280 mil dólares da National Science Foundation para pesquisar as experiências de pessoas deficientes nos mundos virtuais. Ele espera descobrir como o paraíso digital muda o autoconhecimento ao permitir que eles andem, dancem, interajam com outras pessoas de formas que seria impossível para eles. Boellstorff escolheu conduzir esse estudo em um mundo virtual 3D porque deficientes podem ser como quiserem, socializar confortavelmente, e realizar tarefas como jardinagem e construção que são análogas àquelas permitidas a pessoas não deficientes.

"Estamos no limiar de possibilidades interessantes de como mundos virtuais e realidades virtuais podem ter implicações na forma como as pessoas pensam sobre seus corpos e identidade corporal", acrescentou Boellstorff.

Veronica da vira real tirando uma selfie. Crédito: cortesia de Veronica Sidwell

Veronica e eu estávamos saindo da simulação 3D de Alamo quando eu perguntei a ela porque seu avatar era tão instrumental para sua transição. "Second Life é especial porque você pode fazer sua própria persona", ela disse. "Você pode moldar sua própria vida da mesma forma. Eu não era tão impotente para fazer isso quanto eu pensava."

Veronica disse que a mulher que introduziu ao Second Life está muda, e o o MMORPG permitiu a ela socializar e se desenvolver de formas que ela não poderia fora do mundo virtual. Sua amiga desativada, de fato, ajudou Veronica a customizar deu corpo digital, ensinando-a como adaptar seu cabelo de avatar e físico à sua versão dela mesma.

Hoje, Veronica anda confiante por Second Life de uma forma que ela ainda tem dificuldade fora do mundo digital. Um dia não passa sem que ela não se preocupe demais sobre como as pessoas vão encarar seu rosto e corpo. Passeando pela vívida reconstrução de Londres do Second Life e seus destinos de praia em sua forma feminina pixelada perfeita ajudou a emergir duas Veronicas.

Second Life sustentou Veronica durante sua transição. Mas hoje, ela não precisa habitar um corpo feminino digital para se sentir o melhor dela mesma. "Foi uma experiência muito positiva para mim", ela disse "mas uma vez que minha identidade aqui cruzou a vida real, eu senti que não precisei mais tanto".

"Você tem o poder de moldar sua própria vida", ela acrescenta. "Não é só limitado ao mundo virtual."