A banda larga brasileira virou uma estrada congestionada e mal sinalizada
Crédito: Giphy

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

A banda larga brasileira virou uma estrada congestionada e mal sinalizada

Com discurso paliativo, governo ainda não apresentou medidas concretas para coibir expansão de franquia de dados na internet do Brasil. Onde isso vai dar?

Com discurso paliativo, governo ainda não apresentou medidas concretas para coibir expansão de franquia de dados na internet do Brasil. Onde isso vai dar?

Tal qual na política, o estado da internet brasileira continua confuso. Na segunda-feira da semana passada, dia 18, o presidente da Anatel, João Rezende, convocou uma coletiva de imprensa para esclarecer a posição da Agência frente a polêmica das franquias de dados na banda larga fixa e foi, para dizer o mínimo, bem infeliz quando decretou "o fim da era da internet ilimitada". A frase sugeriu que o governo comprou o lado das operadoras na discussão. Para tentar apagar o fogo, o ministro das Comunicações, André Figueiredo, anunciou a negociação de um acordo que obrigaria as operadoras a garantir a a opção de planos ilimitados. O estrago estava feito, porém.

Publicidade

Enquanto os termos precisos de tal acordo não são anunciados — Figueiredo deu até a primeira semana de maio para resolver a questão —, a Anatel suspendeu os planos de banda larga fixa com limites de dados. Previstos em lei, eles poderão ser retomados a partir do momento em que as operadoras cumprirem todos os pré-requisitos para tal, como dispor de um mecanismo em que os assinantes podem acompanhar o quanto da franquia já foi consumido, além de um gráfico com um perfil de consumo mês a mês, entre outras ferramentas de transparência.

Depois que a Anatel comprovar a capacidade da empresa de cumprir todas as normas, há um prazo de 90 dias até que ela seja liberada para fazer a cobrança de franquia de dados. Em outras palavras, dá e sobra tempo para seguir o plano de generalizar os contratos com limite de banda a partir de 2017. "Não podemos trabalhar com a noção do usuário que utiliza um serviço ilimitado sem custo adicional", disse Rezende. O argumento usado por ele segue na linha da diferenciação entre os usuários compulsivos da rede com os casuais.

Em uma resposta confusa, o presidente da Anatel acabou por afirmar que não é justo alguém que consome pouco de determinado recurso (como água ou gás dentro de um condomínio, exemplifica) pague mais pelo excesso de outra pessoa e o mesmo vale para a internet. Rezende citou jogos online e, bem, virou mene.

Embora muita gente tenha feito piadas sobre a declaração, alguns especialistas dizem que a afirmação tem sentido. Segundo Rafael de Sousa, professor de engenharia de redes de telecomunicação da Faculdade de Tecnologia da UnB, a internet não é algo infinito. "A infraestrutura da internet tem uma capacidade total finita de tráfego. Se o volume for muito grande, os protocolos de controle vão baixar a velocidade automaticamente para que todos se mantenham conectados", explica. Na sua opinião, o ideal é que consumidores, governo e empresas discutissem juntos uma maneira mais eficiente e menos brusca de solucionar a equação. "Do contrário, fica um cobertor curto, para todo lado que puxa alguém fica descoberto", diz.

Publicidade

Numa comparação beeem grosseira, a internet funciona como uma série de sistemas rodoviários. As operadoras tem diversas redes locais de estradas (cabos de fibra ótica que correm junto às linhas telefônicas, na realidade) que, por sua vez, conectam-se à grandes rodovias arteriais por onde trafegam o volume mais significativo de dados. Essas rodovias, no caso, são o backbone (a fundação, digamos) da internet em cada país. No Brasil, a maior parte dela é pública. Assim como nas ruas reais, elas podem se congestionar. Mas, assim como nas ruas reais, isso tende a acontecer em horas específicas. E é aqui que a cura parece perder a razão de ser frente a doença.

"O modelo proposto pelas operadoras de banda larga vai danificar um mercado com potencial enorme para trazer receita de exportação ao Brasil"

Em matéria publicada no site Convergência Digital, o repórter Luís Osvaldo Grossmann cita dois estudos americanos sobre como, do ponto de vista tecnológico e econômico, não há necessidade de impor limites de tráfegos para desatolar a infraestrutura. No artigo "Capping the Nation's Broadband Future?", publicado em 2012 na New America Foundation, um grupo de pesquisadores chama atenção o fato de que, por mais que as redes fiquem congestionadas nos horários de pico, ao usar um limite de dados para combater isso, as operadores de banda larga também restringem o uso da internet quando a rede está livre e, portanto, descongestionada. Além disso, a pesquisa demonstra a disparidade em que os custos envolvidos na operação de banda larga decrescem em relação ao aumento do consumo - ou seja, as empresas (americanas, pelo menos) gastam menos a medida que ganham mais.

Publicidade

Já em "Data Caps: Creating Artificial Scarcity as a Way Around Network Neutrality", publicado em 2015 no Santa Clara High Technology Law Journal, Robert Klein avalia que os limites de banda são uma maneira encontrada pelas empresas de banda larga para contornar a neutralidade de rede que, em resumo, significa não diferenciar o preço do tipo de serviço utilizado pelos usuários. Ainda na analogia do sistema rodoviário, a ideia é que cada carregamento transportado pelas estradas tem a mesma importância, pague as mesmas taxas e receba o mesmo tratamento. Apesar do forte lobby de gigantes do setor no Brasil, a neutralidade de rede está inclusa no Marco Civil da Internet.

Frente às franquias de dados, no entanto, os provedores de conteúdo ou serviço cujos carregamentos são mais volumosos, como o Netflix ou o YouTube, podem se ver forçados a firmar parcerias com as operadoras de banda larga para que sejam tratados como exceção dentro do limite. A alternativa é perder mercado. É uma jogada em que as empresas de internet ganham duas vezes: recebem dos usuários, que pagam pela internet, e do provedor de conteúdo/ serviço, que paga para ter o privilégio de ser "excluído"do limite de banda e, portanto, não perder mercado. Há exemplos disso nos Estados Unidos. O que também pode ocorrer é a aplicação dessa exceção à serviços complementares da própria operadora. Para o público, um diferencial atraente. Para a neutralidade da rede, uma facada.

Publicidade

Games como boi de piranha

O Brasil é o quarto maior mercado do Steam, a principal plataforma de distribuição de jogos na internet. São sete milhões e meios de jogadores registrados que, nas últimas duas últimas semanas, passaram em média 23 horas em mundos virtuais, segundo dados do Steam Spy. De acordo com os argumentos pró-franquias, um monte de gente saiu prejudicado nessas, certo? Provavelmente, não. Jogar na internet, como diria sua mãe, gasta pouco volume de banda - de dezenas a poucas centenas de MB por hora, dependendo da preferência do viciado. Para comparação, uma hora de Skype fica em torno de 30 MB, uma hora de Spotify em alta qualidade beira 120 MB, uma hora de YouTube capenga fica perto de 700 MB e uma hora de Netflix no talo pode atingir 3 GB.

Claro, antes de relativizar o consumo por hora, é preciso levar em consideração necessidade de fazer o download dos jogos (os três líderes de preferência nacional no Steam: Counter-Strike: Global Offensive, 5 GB, Dota 2, os mesmos 5 GB, e GTA 5, perto de 60 GB), mas, depois disso, não faz tanta diferença, principalmente quando se consideram dados da pesquisa TIC Domicílios 2014, do CGI (Comitê Gestor da Internet), segundo a qual 37% dos brasileiros com acesso à internet jogam online, contra 57% que ouvem música por streaming e 58% que veem vídeos na web. "Não faz sentido essa distinção entre 'heavy user' e usuário comum", já havia me dito Carlos Affonso Souza, presidente do ITS (Instituto de de Tecnologia & Sociedade do Rio), think tank do setor, e professor de Direito da UERJ, uma semana antes da declaração do presidente da Anatel.

Publicidade

"Mesmo o usuário comum usa um conjunto de serviços da internet que consome um volume significativo de dado. Vídeos, por exemplo, são a maior parte do conteúdo trocado em redes sociais que, em tese, deveriam ser uma plataforma que não demanda uma fatia grande dos dados", explicou na época.

A insistência nos jogos como vilões mostra, ainda, uma ignorância sobre o crescimento do valor dessa indústria no mundo, e o potencial do Brasil de tomar parte nisso. As empresas de banda larga não tem nada a ver com a questão, claro, mas o governo deveria se interessar. Estima-se que o mercado de videogames movimente hoje perto de US$ 80 bilhões anuais. "Apesar de termos crescido muito nos últimos anos, ainda temos uma participação quase nula nesse market share, mesmo o Brasil sendo o 11º maior consumidor de jogos no mundo", afirma Paulo Luís Santos, vice-presidente da Abragames (Associação Brasileira de Desenvolvedores de Jogos Eletrônicos) e fundador do Flux Game Studio).

"Não faz sentido essa distinção entre 'heavy user' e usuário comum"

"E mudar esse cenário fica mais difícil com a limitação de consumo de dados, uma medida que pode ter consequências nefastas a longo prazo para a indústria", conta Santos. Ele explica que a transferência constante de grandes volumes de dados é uma constância dentro do fluxo de trabalho de um desenvolvimento de jogos e, para contornar a franquia de dados, seria preciso fazer remendos no processo produtivo. Ainda que o mercado seja bilionário lá fora, no Brasil grande parte das empresas são de pequeno porte e ainda batalham para manter as contas no azul, segundo o Mapeamento da Indústria Brasileira e Global de Jogos Digitais, publicado em 2014 pelo BNDES.

Publicidade

Segundo o estudo, são 133 empresas de desenvolvimento de jogos no Brasil e quase 75% delas têm faturamento anual inferior a R$ 240 mil reais. "O modelo proposto pelas operadoras de banda larga vai danificar um mercado promissor, que tem um potencial enorme para trazer receita de exportação para o Brasil", diz o vice-presidente da Abragames. Como dano colateral, Santos conta que muitos profissionais freelancers brasileiros que trabalham para estúdios estrangeiros e tem ganhado espaço pela alta qualidade e custo relativo baixo seriam atingidos. "Artistas de modelagem 3D, por exemplo, precisam remeter o trabalho diversas vezes para revisão e são arquivos muito grandes. Como vão fazer isso com limite de dados pequeno?"

A calmaria que precede o caos

Por ora, o clima está tranquilo, mas a batalha parece longe de ser vencida. Frente ao revide forte do público contra a medida e à espera do acordo com o Ministério das Comunicações, a Vivo recuou e suspendeu por "tempo indeterminado" a implementação dos planos com limites de dados. A empresa, porém, não desistiu. O modelo continua previsto por contrato.

Pior: enquanto o Marco Civil da Internet define do acesso à rede como serviço essencial, a interpretação desse ponto tem causado confusão. Organizações como o Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor) até admitem que as empresas estabeleçam franquias de dados, mas exigem que o serviço seja apenas reduzido ao final do plano e, de forma alguma, cortado. Sentada ao lado de João Rezende na coletiva da Anatel, a superintendente de relação com consumidores da Agência, Elisa Leonel, foi categórica ao afirmar que "depois que as franquias forem liberadas, as operadores podem suspender o acesso quando o plano acabar, desde que informem o usuário com antecedência".

Nesse ponto, o professor Rafael de Souza concorda com as vozes contra a franquia de dados: "Isso é inadmissível", diz. "Cortar a internet é injusto, até porque não há economia ou vida moderna sem internet."