"Não Quero Desrespeitar a Memória de Ninguém", Diz Diretor de 'Steve Jobs'
Crédito: Universal Pictures

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"Não Quero Desrespeitar a Memória de Ninguém", Diz Diretor de 'Steve Jobs'

Conversamos com Danny Boyle sobre as licenças poéticas de seu filme sobre o ex-CEO da Apple.

Em um primeiro olhar, ao lado do ágil roteiro de Aaron Sorkin, a direção de Danny Boyle em Steve Jobs parece invisível. Com um pouco mais de atenção, porém, vemos um grande cuidado do cineasta inglês com as minúcias técnicas do longa-metragem.

Boyle filmou cada um dos três atos do filme — ambientados durante o lançamento de três produtos importantes — em um formato diferente: 16 mm (associado aos documentários), 35mm e o formato digital dos grandes estúdios. (Graças ao compositor Daniel Pemberton, cada fase do filme recebe uma versão própria da música-tema — começa com os sintetizadores dos anos 80 e evoluindo a partir daí.) Os truques representam a passagem do tempo, a ascendência mística de Jobs e a transição tecnológica catalisada pelo protagonista.

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No resto, a direção de Boyle é elegante e controlada. Sua atenção se direciona para o drama humano que impulsiona a história. A formação teatral de Boyle e Sorkin, unida à natureza lírica da ação, dão à cinebiografia o sabor de um filme sobre os bastidores de um musical da velha Hollywood em que produtores e artistas tentam montar um espetáculo em meio a vários obstáculos.

Para mim, as cenas íntimas e os diálogos rápidos do filme também se aproximam do teatro. Boyle não tem tanta certeza. "Não acho que o filme se pareça com uma peça, mas as forças dos bastidores teatrais e dos diálogos longos estão no DNA de Sorkin", disse Boyle em um telefonema. "E como diretor sei que, quando bons atores entram no ritmo da cena, só faltam sapatear."

Crédito: Universal Pictures

Boyle não só capturou a performance acelerada dos atores — que se aproxima do ritmo de A Rede Social, outro roteiro de Sorkin: ele a acelerou na ilha de edição ao remover as respirações entre frases e palavras.

"Esses atores fazem cenas incríveis e, como todo bom ator, eles controlam a ação, então quando eles respiram você mal pode notar", disse. "Mas durante a edição, podemos retirar os segundos de respiração — apagar esses momentos para acelerar a cena. Assistindo ao filme, fica claro que é impossível que os atores estejam realmente falando tudo aquilo sem respirar. É incrível; nós temos uma pasta inteira cheia de respirações."

O teatro é "algo que se observa", disse Boyle, que dirigiu Trainspotting, Quem Quer Ser Um Milionário e a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres de 2012. "A peça pode ser incrível ou incrivelmente chata — o espectador sempre observa a ação. Outro dia vi Hamlet interpretado pelo Benedict Cumberbatch, e eu observei a peça." O cinema é diferente, disse. "É possível se imergir mesmo num filme ruim. Sei que não deveria ser assim, mas é isso que acontece. Nós gostamos de nos perder em algo."

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"Não estou tentando desrespeitar a memória de ninguém. Levamos isso muito a sério."

É por isso que Sorkin é fascinado por essa mídia, reflete Boyle. "Ele está implorando para que o diretor, os produtores e os colaboradores façam uma obra na qual seja possível se perder. Nesse caso, o público se perde num personagem, e não na trama."

O retrato desses três dias da vida de Jobs trazem à tona a questão central do filme: um visionário exigente e revolucionário pode ser uma boa pessoa?

Em uma cena, Jobs, em sua fase jovem e fã de Bob Dylan, diz para o futuro CEO da Apple, John Scully (interpretado por Jeff Daniels), que o Mac será uma "bicicleta para a mente" — ele revolucionará o mundo e trará mais eficiência para a humanidade. Num segundo momento, Jobs pergunta nervosamente a Scully — agora uma década mais velho — como as pessoas podem cogitar abrir mão do controle. Jobs profere lemas de libertação e controle; nunca está ciente de onde sua revolução nos levará. O filme faz o público pensar, ao menos por algum tempo, sobre quem controla nossas informações (as empresas e o Estado) e sobre o que Jobs pensava sobre esse tema.

"Esse é o núcleo da história do Steve Jobs", disse Boyle. "Ele destrói a IBM por eles serem controladores, mas ele só ganha todo seu poder quando ele passa a controlar o mercado."

O roteiro de Sorkin e a atuação de Fassbender encontram na adoção de Jobs, que recebe pouca atenção na biografia escrita por Walter Isaacson, uma motivação central para o personagem. "Se essa fosse uma história ficcional, isso soaria ridículo, mas isso aconteceu— embora ele tivesse sido criado por ótimos pais e fosse bem-sucedido, ele não conseguia perdoar o fato de ter sido abandonado", disse Boyle. "Isso se manifesta em sua obsessão pelo controle e, mais do que isso, acredito que isso se manifesta no amor que ele era incapaz de sentir e na devoção do público aos seus produtos."

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Crédito: Universal Pictures

A "obsessão e o amor" que as pessoas sentem pelos produtos da Apple, disse Boyle, "são uma manifestação do que ele queria, mas era incapaz de receber".

Apesar do esforço conjunto de Sorkin e Boyle para retratar a ironia de Jobs — libertar as massas com a criação do computador pessoal para, em seguida, prendê-las num ciclo eterno de produtos da Apple — o filme ignora um tema essencial: a rede digital que o iMac e o iPhone trouxeram para nossas casas; foram esses dispositivos, afinal, que nos conectaram à grande máquina de mineração de dados.

Trailer de "Steve Jobs"

Mas embora o filme esteja mais interessado nos relacionamentos de Jobs — tanto profissionais quanto pessoais — Boyle defende que o filme aborda o tema da mineração de dados, ao menos indiretamente, ao examinar a psicologia dos sistemas fechados.

"Costumávamos ter diários, mas as informações que lançamos hoje na internet vão muito além das confissões de um diário — elas dizem tudo sobre nós", disse. Ainda assim, "para ser justo, Jobs era um dos melhores criadores em relação ao controle de privacidade, e o foco da Apple não é monetizar esses dados."

O retrato pouco lisonjeiro que Boyle fez de Jobs rendeu algumas críticas. Embora ele não tenha citado nomes, Boyle comentou que algumas pessoas próximas ao ex-CEO da Apple criticaram o filme. Jonathan Ive, chefe de design da Apple, disse que o filme "sabotou" Jobs e que ele "sentia muito" por seus amigos e familiares. Laurene Power Jobs, viúva de Jobs, Tim Cook, atual diretor-executivo da Apple, e Bill Campbell, membro do conselho da Apple, também atacaram Boyle e Sorkin. "Acho que muitas pessoas estão sendo oportunistas e eu odeio isso", disse Cook a Stephen Colbert.

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"Já disse que não estou tentando desrespeitar a memória de ninguém. Levamos isso muito a sério", disse Boyle. "Qualquer manifestação desse tema é importante para o diálogo que estamos tentando estabelecer."

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"Precisamos de mais filmes como esse", continuou Boyle, "precisamos criar nossas próprias versões, como em A Rede Social, ou como em O Círculo, de Dave Eggers, porque essas pessoas estão moldando o mundo em que vivemos. E eles estão criando um mundo à sua imagem e semelhança — é isso que acontece quando se cria algo. Precisamos entender que imagem é essa, o que ela gera, como ela se desenvolve, quem ela fere. Tudo isso para chegar nas grandes questões sobre o poder e sobre quem está no controle desses dados."

Boyle citou algumas recentes batalhas de privacidade, como o caso da União Europeia, que forçou o Facebook a retirar a confirmação automática do Moments, um aplicativo de fotos que usa a tecnologia de reconhecimento facial. "É fácil associar isso à forma como nos comunicamos", diz. "É só olhar para a Rússia e a China, dois países obcecados com o controle de suas respectivas redes domésticas."

"Quando você junta o poder do Google e da Apple, você gera algo que elimina todas chances de revolta. Algo imbatível e cuja aceitação é sempre automática"

Boyle citou "heróis" da internet como os criadores do Wikipedia, Tim Berners-Lee e outros que querem tirar a informação das garras das grandes empresas. "A preocupação é que se a informação for controlada por uma empresa, estaremos a mercê de outra IBM", disse Boyle.

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A era da informação deu a luz a "piratas e rebeldes, como Steve Jobs era no início", acrescentou Boyle. Mas toda revolta tem uma data de expiração. Hoje as empresas de tecnologia estão tentando ocupar um espaço cada vez maior em nossas vidas; elas comandam os dados gerados pela união entre hardware e software.

"Em certo ponto, essa união pode gerar o que Eggers mostra em O Círculo — quando você junta o poder do Google e da Apple, você gera algo que elimina todas chances de revolta, algo imbatível", disse Boyle. "Algo cuja aceitação é sempre automática."

Não se Boyle puder evitar, é claro.

No Brasil, Steve Jobs estréia no dia 21 de janeiro de 2016.

Tradução: Ananda Pieratti